minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Moradores retiram o corpo de um homem morto em operação da polícia no Complexo do Alemão, em 2022 Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

questões de justiça

A impunidade é um crime letal

Ao menos nove em cada dez casos de homicídio no Rio de Janeiro continuam sem responsabilização depois de cinco anos – e o crime organizado agradece

Joana Monteiro, Julia Guerra, Maria Eduarda Couto e Afonso Borges | 10 out 2023_10h24
A+ A- A

Um fio de linha, ao ser puxado, pode revelar a complexidade de toda uma teia. É assim no caso dos três médicos assassinados no Rio de Janeiro, em 5 de outubro. O crime brutal mostrou as disfunções que envolvem a investigação e o controle de homicídios no Brasil. Os indícios apontam que uma das vítimas foi confundida com um miliciano, o que teria motivado a execução. Os assassinos, ao que tudo indica, também foram executados e tinham relação com uma rede que une tráfico de drogas e milícias da Zona Oeste do Rio, e que vinha causando outras mortes. Eram criminosos reincidentes. A ineficácia da Justiça criminal, incapaz de elucidar e punir crimes de homicídio, permite que casos como esse continuem a acontecer.

A grande maioria dos homicídios no Rio de Janeiro não são investigados e julgados. Um estudo realizado em 2020 pelo Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Cenpe/MPRJ) apontou um cenário preocupante. A pesquisa acompanhou os 3,9 mil casos de homicídios dolosos que foram registrados no Rio em 2015 e concluiu que, até o final de 2019, nove em cada dez casos ainda não tinham recebido sentença do Tribunal de Júri. Como não existe um sistema integrado que permita acompanhar a trajetória desses casos em todas as instâncias do Judiciário, o levantamento foi feito a partir de um cruzamento de dados entre Polícia Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça.

O estudo aponta dois gargalos no processamento de homicídios pela Justiça: o baixo percentual de conclusão de investigações – que é responsabilidade da Polícia Civil e do Ministério Público – e a demora nas decisões judiciais. Até dezembro de 2019, ao menos 60% dos homicídios de 2015 ainda estavam sendo investigados. Daqueles que já tinham passado da fase de investigação, 20% haviam sido arquivados e 15% tinham resultado em denúncia. Não foi possível obter informações de 5% dos casos. Os dados revelam que os primeiros anos de investigação são cruciais para o resultado do processo, pois a maioria das denúncias ocorre até cem dias depois do crime. Depois desse prazo, elas se tornam raras. O estudo conclui que, passados dois anos do homicídio, a chance de elucidar o crime é quase nula. 

No Tribunal de Justiça, o cenário também é preocupante. Mesmo considerando, hipoteticamente, que os casos sem informação tenham obtido sentença do tribunal do Júri, não mais do que 10% dos 3,9 mil casos de homicídio terão sido concluídos depois de quase cinco anos. Só 2% dos casos que foram investigados até o final resultaram em condenação. As estatísticas são do Rio de Janeiro, mas refletem um problema que, em maior ou menor grau, se repete em outros estados. A impunidade para homicidas é a regra. Isso talvez ajude a explicar o ciclo da violência que tira a vida de milhares de brasileiros, ano a ano.

 

Por que nossa sociedade aceita a impunidade de um crime tão grave? As respostas são várias. No Brasil, três em cada quatro vítimas de homicídios são negros e, em geral, pobres, um perfil de vítima que, num país racista e marcado por desigualdades profundas, costuma gerar pouca comoção social. O senso comum diz que essas pessoas ou eram criminosas ou se colocaram em situação de risco, o que justificaria sua morte precoce.

Esse julgamento social se reflete na forma com que diferentes tipos de homicídio são tratados. No grupo das mortes violentas intencionais há homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e morte por intervenção de agentes do Estado. Casos de latrocínio (isto é, roubo seguido de morte) costumam receber grande cobertura da imprensa e, não raramente, causam grande comoção. Esse tipo de crime representa menos de 1,4% das mortes violentas no estado do Rio, mas é tratado com especial atenção por existir, implicitamente, a justificativa de que se trata de um crime contra um “cidadão de bem”. As mortes causadas pela polícia, embora muito mais numerosas, não costumam chocar.

Priorizar a investigação de homicídios, entretanto, não é apenas uma questão de garantir equidade na Justiça. É também uma forma de aumentar a eficiência da Justiça criminal. O sistema está afogado em milhões de processos que aguardam julgamento. Definir prioridades é etapa básica de qualquer modelo de gestão. Enquanto isso não for feito, a Justiça continuará privilegiando casos de fácil resolução ou que geram maior repercussão.

Os homicídios são uma parcela pequena do volume total de inquéritos abertos na Justiça, mas envolvem uma investigação de alta complexidade, o que é difícil de se obter num país que pouco investe em perícia e tecnologia investigativa. A segurança pública, apesar de já ter recebido investimentos vultosos, prioriza outras frentes. Trata-se de um erro estratégico. Isso porque a investigação de homicídios não se limita à punição de casos isolados. Como muitos assassinatos são cometidos num contexto de disputas dentro do próprio crime, eles servem como pistas da presença e da atuação de grupos criminais. Identificar seus autores é uma forma de chegar, por exemplo, até a liderança de grupos milicianos, de esquemas de contravenção e de facções que traficam drogas.

Uma das primeiras medidas que devem ser discutidas, se quisermos mudar a situação, é considerar que toda morte violenta intencional merece atenção. Uma forma simples e efetiva de fazer isso é criar um grupo com integrantes das polícias, do Ministério Público e do Executivo para analisar todos os casos recentes, suas inter-relações e possíveis motivações e monitorar o avanço das investigações e tramitação na justiça. O acompanhamento de homicídios pode ser uma pauta capaz de promover, enfim, uma melhor coordenação entre Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e gestores do Poder Executivo – instituições que frequentemente trabalham com prioridades incompatíveis entre si, mesmo tendo atribuições interdependentes ou relacionadas.

A análise proativa de dados pode ajudar o poder público a aplicar três princípios fundamentais para crimes desse tipo: concentração, prevenção e coordenação. As evidências criminológicas produzidas nas últimas duas décadas são muito consistentes em apontar que a violência é um fenômeno persistente, altamente concentrado em locais específicos, que envolve um pequeno conjunto de pessoas e se reflete em comportamentos específicos. Uma análise feita em quatro cidades do Rio de Janeiro e quatro cidades colombianas demonstrou que metade dos homicídios ocorrem em menos de 1,3% das ruas. Para alcançar reduções significativas de violência, os recursos deveriam estar concentrados nesses locais onde podem fazer mais diferença. Ou seja, em um contexto de elevados níveis de homicídio, os pontos de alta concentração de homicídios indicam um caminho.

Não é uma tarefa fácil, é claro, porque se trata de um problema social complexo e com muitas nuances. Mas, hoje, nosso maior desafio é político. Para aprimorar de verdade a Justiça brasileira, é preciso adotar um receituário que não demanda muitas verbas e não rende manchetes impressionantes. É uma agenda silenciosa, que, para piorar, mexe com os interesses de muitos grupos que hoje se veem representados na política. Mas é preciso adotá-la. Os números evidenciam o descalabro da Justiça criminal no Brasil. Se isso não mudar, continuaremos vivendo numa sociedade que aceita e banaliza a morte alheia.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí