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    Um homem com tuberculose sendo examinado no Hospital Ary Parreiras, em Niterói Foto: Victor Moriyama

questões sanitárias

Tuberculose à espreita

A pandemia enfraqueceu o combate à doença no Brasil, que agora vive uma escalada preocupante de infecções

Leandra Souza | 06 dez 2023_11h14
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Josué Costa sentiu, cerca de um ano atrás, que algo estava errado com seu corpo. Passou a acordar de madrugada com calafrios, que se estendiam pela manhã. A persistência do sintoma fez com que ele desconfiasse que não se tratava de uma gripe comum. Debilitado, certo dia não conseguiu levantar para trabalhar. Decidiu então procurar a médica que presta serviços à empresa onde ele trabalha como funcionário terceirizado, limpando resíduos hospitalares. A médica, ao ouvir o relato, pediu a ele que fizesse um exame de laboratório para averiguar se não se tratava de um caso de tuberculose. O resultado saiu no mesmo dia, positivo.

Naquele momento, Costa deu início a um extenuante tratamento que se arrastou por seis meses, com prescrição de antibióticos diários. Embora seja jovem tem 36 anos , passou por maus bocados. Sentia-se baqueado, incapaz de cumprir tarefas básicas do cotidiano. Emagreceu rapidamente. “Eu sempre pesei 54 kg, mas passei a ter uns 30 kg”, relembra.

No Brasil, a enorme maioria dos casos de tuberculose (cerca de 93%) resultam em cura. Não é uma estatística desprezível: considerando o total de doentes, isso equivale a mais de 4 mil mortes por ano. Quanto mais cresce o número total de casos, mais crescem as mortes, e o Brasil vive hoje uma escalada da doença. O fenômeno vem ocorrendo desde 2017. O número de novos infectados por tuberculose, que costumava ser de 70 mil por ano, subiu gradualmente e beirou os 80 mil em 2019. Houve um refluxo no primeiro ano de pandemia provavelmente devido à subnotificação , mas em seguida os números voltaram a crescer. Com um agravante: o índice de mortalidade aumentou depois da pandemia. Em 2021, 5 mil brasileiros morreram de tuberculose, uma taxa de 2,38 mortes por 100 mil habitantes. Tanto a taxa quanto o número absoluto são os maiores da década, segundo o Ministério da Saúde.

A explicação, acreditam os especialistas, está na pandemia, quando as pessoas se fecharam em casa e deixaram de ter acesso ao diagnóstico da doença, que então se espalhou com maior facilidade. O número de testes rápidos de tuberculose feitos pelo SUS caiu de um patamar de 40 mil por mês, entre janeiro e março de 2020, para cerca de 30 mil nos meses subsequentes, um reflexo da Covid que tinha acabado de paralisar o Brasil. Na mesma época, houve uma queda significativa no número de bebês vacinados com a BCG, imunizante que protege contra a bactéria da tuberculose (em 2021, a cobertura atingiu o menor nível em dez anos). 

“Como consequência, espera-se que ocorra mais transmissão comunitária da infecção e, consequentemente, um aumento no número de pessoas desenvolvendo TB [tuberculose] nos próximos anos”, prevê um relatório do Ministério da Saúde divulgado em março deste ano.

Outros países vivem um cenário semelhante. No começo de novembro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório alertando para o aumento no número de casos de tuberculose no pós-pandemia, o que se atribui, em parte, à ampliação dos serviços de diagnóstico. Estima-se que 7,5 milhões de novos casos tenham sido registrados em todo o mundo no ano passado, o maior número da série histórica da OMS, iniciada em 1995.

A organização destaca treze países onde o número de casos caiu em 2020 ou em 2021, mas que lidam hoje com um aumento no número de diagnósticos. Entre eles, Índia, Vietnã, Congo, Gabão, Filipinas, Indonésia e Brasil.

 

Autodeclarado pardo e morador da periferia de Ananindeua, cidade vizinha a Belém do Pará, Josué Costa se encaixa no perfil típico das vítimas da tuberculose. A doença está entre aquelas que a comunidade médica chama de “socialmente determinadas” – isto é, que costumam proliferar em áreas pobres, seja por falta de saneamento básico ou acesso a água potável, seja porque as políticas de prevenção do governo não chegam até essas localidades. A esquistossomose e a malária estão nesse rol de doenças, mas a tuberculose é a principal delas, porque afeta um número maior de brasileiros. Não por acaso, o grupo de trabalho criado pelo governo para combater essas enfermidades chama-se “Comitê Interministerial para Eliminação da Tuberculose e de outras Doenças Socialmente Determinadas”.

A tuberculose é conhecida da humanidade há milhares de anos. Chamada também de tísica pulmonar ou peste branca, causou grande mortandade nos tempos do Brasil colônia. Só foi categorizada cientificamente em 1839, quando o patologista alemão isolou o bacilo causador da doença e o nomeou: Mycobacterium tuberculosis. Dali em diante, a ciência avançou no combate à bactéria. A vacina BCG, que é obrigatória no Brasil para recém-nascidos, data dos anos 1920. O tratamento resultou numa diminuição mundial dos casos de tuberculose no século XX, mas, sobretudo nos países periféricos, a doença não chegou a ser erradicada.

Um relatório do Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Igualdade Racial mostrou que, no Brasil, o principal grupo de risco da tuberculose são homens negros, com idades entre 20 e 34 anos, pobres e moradores de periferias. O documento, publicado há cerca de um mês, aponta que 63% dos contaminados em 2022 eram negros – porcentagem levemente superior ao recorte racial da população brasileira, que no último Censo tinha 56% de negros. Os estados com maior incidência de tuberculose no ano passado foram Amazonas, Rio Janeiro e Roraima. A doença cresceu entre as crianças: 3,5% dos contaminados tinham menos de 15 anos, a maior proporção para essa idade na série histórica, iniciada em 2012.

“Entre as pessoas mais vulneráveis à tuberculose no nosso país, geralmente estão aquelas mais desprotegidas socioeconomicamente”, atesta Carlos Alberio, médico especialista em tuberculose do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), em Belém. Além da população negra, fazem parte desse grupo pessoas em situação de rua, imigrantes e presos. “O risco de adoecimento da população carcerária é 50 vezes maior do que a média”, estima.

O boletim publicado em março pelo Ministério da Saúde destaca que as condições sociais não apenas explicam o contágio, como também dificultam a cura. Em locais onde o acesso à saúde é limitado, é comum que as pessoas não consigam levar até o fim o tratamento recomendado pelas autoridades médicas. Dados do Ministério mostram que, entre as pessoas em situação de rua diagnosticadas em 2021 com tuberculose, 18,4% morreram da doença; entre imigrantes, a proporção foi de 9,1%. A média brasileira, naquele ano, foi de 7,6%.

Josué, apesar das dificuldades, conseguiu superar a tuberculose. Obteve um atestado médico e ficou seis meses afastado do trabalho, recuperando-se em casa. Recebeu, segundo ele, um tratamento exemplar no SUS, e, passado o susto, retornou à vida normal em abril deste ano.

 

Segundo Alberio, a dificuldade de levar os tratamentos médicos até o fim é um problema crônico do Brasil, o que a longo prazo tende a agravar a doença para a população como um todo. “A falta de adesão ao tratamento gera casos de tuberculose que evoluem para a resistência”, explica o médico, referindo-se a infecções que resistem ao tratamento convencional e evoluem mais facilmente para casos graves. No linguajar técnico, são conhecidas como tuberculoses drogarresistentes. “Hoje a gente está recebendo muitos pacientes com tuberculose resistente, gente que nunca teve tuberculose antes. Por quê? Porque as pessoas com tuberculose resistente estão transmitindo para outras pessoas.”

No Brasil como um todo, em 2022, foram registrados 1.104 casos de tuberculose resistente a tratamento. É o maior número pelo menos desde 2015, primeiro ano com dados do Ministério da Saúde. Trata-se de uma minoria, no quadro geral, mas seu aumento é preocupante porque o índice de mortalidade em casos de tuberculose resistente é o triplo da tuberculose comum.

Os números alarmaram o Ministério da Saúde, que incluiu o combate à tuberculose em sua agenda prioritária. Em setembro, o SUS adicionou ao seu rol de medicamentos a Pretomanida, novo antibiótico que promete reduzir o tempo de tratamento e a letalidade da tuberculose resistente. O anúncio foi feito dias depois da Reunião de Alto Nível sobre a Luta contra Tuberculose, realizada em Nova York, da qual participou a ministra Nísia Trindade. 

A Pretomanida é recomendado pela OMS, e sua adoção foi comemorada por entidades da área da saúde, como a Fiocruz. Como nas últimas décadas houve poucos avanços no combate à doença, a novidade tem sido recebida com otimismo pelos médicos, já que, além de tudo, trata-se de um remédio mais simples, de ingestão oral, e que causa menos efeitos colaterais.

De acordo com Alberio, espera-se que o antibiótico consiga reduzir o tempo médio de tratamento da tuberculose resistente de um ano e meio para seis meses. Com cuidados adequados, a taxa de cura pode alcançar 90% dos casos, prevê o médico. À piauí, o Ministério da Saúde afirmou que o remédio está em processo de aquisição e deve chegar a todos os estados até junho de 2024. Trata-se da principal aposta do governo para cumprir a meta estabelecida pelo comitê interministerial: reduzir, até 2030, a incidência de tuberculose para menos de dez casos por 100 mil habitantes (hoje são 38 por 100 mil) e o número de mortes para menos de 230 por ano (hoje são cerca de 5 mil). Até 2035, a meta é que a doença tenha sido erradicada do país. Há um longo caminho pela frente.

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