O ministro Gilmar Mendes (quarto, da esq. à dir.) e Carlos Ivan Simonsen Leal, presidente da FGV (quinto), em um seminário no Rio: a PF batizou a operação de Sofisma para mostrar que a alardeada credibilidade da fundação é enganosa CRÉDITO: ALLAN DE ABREU_2023
“Um poder político extraordinário”
Como a FGV enterrou investigações de corrupção de seus diretores – e os investigadores acabaram sendo investigados
Allan de Abreu | Edição 210, Março 2024
Nos últimos dias de junho do ano passado, as festas mais animadas do XI Fórum Jurídico de Lisboa, um evento que reúne a elite econômica, política e jurídica do Brasil do outro lado do Atlântico, aconteceram entre restaurantes e bares da capital portuguesa. Em alguns desses eventos, havia duas presenças notórias: o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o economista Carlos Ivan Simonsen Leal, presidente da Fundação Getulio Vargas (FGV), ambos patrocinadores do encontro em Lisboa*.
É durante o Fórum Jurídico que Gilmar Mendes, o mais político e belicoso ministro da Corte, exibe sua figura de ministro poderoso, a tal ponto que o evento ganhou o jocoso apelido de Gilmarpalooza. A ocasião, porém, é ainda mais especial para a FGV e Simonsen Leal, um senhor alto, cabelos ralos e rosto pálido. Fundação respeitada pela produção acadêmica, a FGV é um sinônimo de prestígio em áreas que vão da economia à administração pública.
Como o próprio nome indica, a fundação nasceu umbilicalmente ligada ao governo Getúlio Vargas, em 1944. Seu objetivo inicial era melhorar o nível técnico dos servidores públicos, sobretudo os do Rio de Janeiro, então capital federal, por meio de cursos de graduação. Embora formalmente fosse uma fundação privada, era considerada um braço do governo federal, que financiava quase integralmente o novo órgão. Coube à FGV criar alguns dos primeiros indicadores econômicos do país, como um índice de preços (existente até hoje), a estimativa da renda nacional e o registro das transações financeiras do Brasil com os demais países. Em depoimento prestado à cientista política Maria Celina D’Araujo para o livro Fundação Getulio Vargas: concretização de um ideal, Genival de Almeida Santos, professor da FGV na década de 1950, resumiu assim o trabalho da fundação: “Criamos três grandes instrumentos que nos permitiram acompanhar o desenvolvimento da economia brasileira.”
A expertise acadêmica, associada à proximidade com o poder político, fez com que inúmeros professores do quadro da FGV ascendessem a ministro de Estado. Até hoje foram dezenove, de Eugênio Gudin a Paulo Guedes, incluindo oito presidentes do Banco Central, de Carlos Langoni a Armínio Fraga. A grande maioria são economistas de formação liberal, a linha acadêmica da fundação. “O retrato empírico da economia brasileira no século XX foi moldado pelas estatísticas produzidas pela FGV. O IBGE somente ocupará essa posição de produtor de estatísticas na segunda metade da década de 1980”, diz Matheus Assaf Cosendey, professor de história do pensamento econômico na Universidade de São Paulo.
A subvenção do poder público, principal fonte de financiamento da FGV, fluiu sem percalços até 1983, quando o então ministro do Planejamento, Antonio Delfim Netto, cortou os repasses, depois de criticar a metodologia usada pela fundação para calcular a inflação da época. Desde então, o repasse direto de dinheiro público pelo governo federal seguiu um curso irregular – em um ano o aporte chegava com fartura, no seguinte minguava. Isso obrigou a cúpula da entidade a buscar fontes alternativas de financiamento.
A mais exitosa delas foi criada em 1997: a FGV Consulting, depois rebatizada como FGV Projetos. É um braço de consultoria que presta assessoria técnica a empresas e, principalmente, ao poder público, seja para o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. Esses contratos, em geral, são assinados sem licitação, com base na lei que permite ao poder público contratar diretamente instituição de ensino e pesquisa que detenha “inquestionável reputação ética e profissional e não tenha fins lucrativos”. É o caso da FGV.
A fase mais produtiva do braço técnico da FGV começou em 2000, quando a fundação passou a ser presidida pelo economista Carlos Ivan Simonsen Leal. Sobrinho de Mário Henrique Simonsen, duas vezes ministro dos governos militares e celebrado professor da fundação, Leal apostou no braço de consultoria – à época, ainda se chamava FGV Consulting – para turbinar as receitas. Em 1992, apesar da inconstância do financiamento público, 80% das receitas da fundação vinham de repasses diretos da União. Dez anos depois, em grande parte graças ao sucesso do trabalho de consultoria, esse percentual estava em apenas 0,9%.
Nos últimos dez anos, a FGV recebeu 1,57 bilhão de reais por meio de 1 107 contratos, boa parte sem licitação. A grande maioria desses acordos (904) foi celebrada com o governo federal. Outros (162) foram assinados com os estados (cem deles com o Rio de Janeiro), de acordo com o levantamento feito pela piauí. No Judiciário, houve 32 contratos, que somaram 33 milhões de reais. A FGV prestou consultoria para tudo: organização de concursos públicos, “análise do clima empresarial” no estado do Rio, assessoria na construção de um estaleiro para submarino nuclear pela Marinha, formação de professores baianos com foco na educação indígena. Também há contratos vagos, como o “aprimoramento da gestão judiciária” no Tribunal de Justiça do Pará e a implantação de um “modelo sistêmico e integrado de governança da segurança pública” em Goiás.
Com seu histórico de serviços ao Executivo, de onde extrai o grosso de suas receitas, a FGV também começou, a partir da última década, a estabelecer laços com o Judiciário. Mas a fundação, que décadas atrás tinha uma imagem imaculada, passou a enfrentar maus bocados. Nos últimos anos, tem sido torpedeada por investigações do Ministério Público e da Polícia Federal que apontam graves indícios de malversação de recursos na casa dos milhões de reais, descontrole contábil, corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Em meio a esse caos, cercar-se de autoridades do Judiciário, como as que frequentam o Gilmarpalooza em Lisboa, pode ser uma garantia de bom tratamento nos tribunais.
Em 1998, um ano depois da criação da FGV Consulting, a Prefeitura do Rio de Janeiro tornou-se a primeira instituição a questionar as finanças da fundação. A Procuradoria Geral do Município ingressou com uma ação judicial solicitando o fim da imunidade tributária da entidade, sob o argumento de que, com a recém-criada FGV Consulting, a fundação se transformara em uma empresa privada, lucrando por meio de contratos assinados com o poder público sem licitação. A procuradora Eliana da Costa Lourenço, anos depois, argumentou: “Não é necessária grande erudição jurídica para se concluir, sem medo de errar, que o eventual reconhecimento da pretendida imunidade tributária [à FGV] lhe colocaria em posição de extrema vantagem em relação às empresas que com ela competem no mercado.”
A investigação da procuradoria, cujo conteúdo é revelado agora pela piauí, concluiu, entre outros pontos, que a entidade mantinha ao menos três contas bancárias nos Estados Unidos com saldos milionários, o que contraria a lei: o Código Tributário Nacional obriga as instituições isentas de tributos, como a FGV, a aplicarem todo o seu dinheiro no Brasil. Os peritos também constataram que havia saques nessas contas sem motivação formal, nem identificação do destino do dinheiro. Ao analisar o caso, porém, a Justiça do Rio de Janeiro manteve a imunidade tributária da FGV sob o argumento de que todos os recursos recebidos pela fundação, ainda que uma parte estivesse em bancos no exterior, haviam sido aplicados nas atividades institucionais da entidade.
Passados cinco anos do início do processo movido pela prefeitura do Rio, surgiram os primeiros indícios de corrupção na FGV. Em 2003, uma reportagem da revista IstoÉ revelou que, depois de ganhar bons contratos com o poder público sem licitação, a FGV Consulting estava subcontratando empresas que pertenciam aos próprios diretores da fundação para executar o serviço contratado. Dos 29 contratos assinados pela FGV em 2001 e 2002, com um total de 25,8 milhões de reais, em valores da época, a fundação repassou 77%, (ou 19,9 milhões), para empresas de funcionários da fundação, algumas delas dos seus diretores. Na ocasião, Simonsen Leal confirmou a denúncia, mas justificou: “Só usamos o artifício de subcontratar as empresas de nossos funcionários para não gerar novos encargos trabalhistas.” O Ministério Público Federal instaurou inquérito para investigar a denúncia, mas o caso simplesmente evaporou. Os procuradores não se lembram do que aconteceu, o MPF não conseguiu localizar o inquérito e ninguém sabe o fim da história.
No mesmo ano de 2003, cinco meses depois da publicação da IstoÉ, a FGV assinou um contrato de 21,8 milhões, em valores da época, com a Prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy. Mais uma vez, a FGV terceirizou a realização dos serviços. Neste caso, porém, os terceirizados não eram empresas dos diretores da fundação, mas pessoas físicas e jurídicas ligadas ao PT. Segundo o Ministério Público, havia um problema adicional: o contrato fora superfaturado em 340% e só uma parte dos serviços – “incremento da qualidade do processo pedagógico e de gestão das escolas públicas” – foi efetivamente prestada. Na época, a FGV defendeu sua contratação sem licitação e negou o superfaturamento. O caso foi parar na 9ª Vara da Fazenda Pública, em São Paulo, que em 2014 condenou a FGV e a então secretária municipal de Educação, Maria Aparecida Perez, por improbidade administrativa. (Há pouco, o Tribunal de Justiça anulou a sentença e determinou novo julgamento, em razão de falhas processuais.)
Apesar dessas suspeitas iniciais, a vida administrativa da FGV correu abaixo do radar durante anos até que, em 2016, entrou em cena uma mulher chamada Daniela Faria Tavares. Ela assumiu uma das três Promotorias de Fundações da capital fluminense, que são responsáveis por fiscalizar as fundações sem fins lucrativos como a FGV. Tradicionalmente, as promotorias faziam vista grossa para as irregularidades contábeis da FGV, mas Tavares assumiu decidida a mudar esse histórico, pois suspeitava que a fundação malversava suas receitas – e a vida da entidade começou a virar de cabeça para baixo.
Com mais de duas décadas no Ministério Público, Tavares se viu diante do maior desafio de sua carreira até então. Conseguiu seis contadores e, com o auxílio dos promotores do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc), mergulhou na papelada da FGV. Os promotores e peritos encontraram uma bagunça contábil completa. A piauí teve acesso a um relatório de 237 páginas que faz uma descrição minuciosa da situação: os lançamentos contábeis não guardavam relação com a respectiva conta bancária; ocorriam saques na boca do caixa em benefício do presidente Simonsen Leal; não havia transparência sobre as finanças das filiais da fundação, incluindo um escritório em Colônia, na Alemanha.
Os promotores também descobriram um duto de desvio de dinheiro da FGV diretamente para o bolso dos seus diretores, sobretudo os da FGV Projetos. Era um sistema de bonificação equivalente a 3% do lucro líquido anual da fundação. Esse dinheiro era repassado a empresas de fachada em nome dos diretores, disfarçado sob as rubricas “remuneração variável”, “bônus por desempenho”, “prêmio por desempenho” e “antecipação de pagamento de prêmio”.
Examinando o tal sistema de bonificação, os investigadores descobriram que, apenas entre 2017 e 2018, quatro diretores ligados à FGV Projetos, incluindo o então vice-presidente da entidade, Sérgio Franklin Quintella, receberam pelo menos 15 milhões de reais das empresas de fachada. Era um drible evidente na lei, que proíbe fundações sem fins lucrativos de distribuírem lucros aos seus diretores – cujos salários médios, na época, eram de cerca de 50 mil reais mensais. A legislação prevê que toda a sobra orçamentária de uma fundação deve ser investida na própria instituição.
Tantas irregularidades, de acordo com os promotores, só prosperavam porque, na prática, o setor de compliance da FGV inexistia – tampouco a fiscalização da Promotoria das Fundações, quase sempre inerte. “As instâncias de controle acham-se estabelecidas e acomodadas de maneira a não criar embaraços à vontade de seus principais dirigentes”, escreveram os promotores. A própria assembleia geral da FGV, a quem também caberia fiscalizar a instituição, se tornara uma ficção. Em 2017, Simonsen Leal e o vice-presidente Sérgio Franklin Quintella, sozinhos, aprovaram as contas da fundação referentes ao ano anterior e reconduziram a si mesmos aos respectivos cargos. Para viabilizar a manobra, apoiaram-se em procurações de 76 membros do conselho, ou 60% do total.
Em 2018, as investigações de Tavares e do Gaecc ganharam um novo impulso com a deflagração da Operação Golias, da Lava Jato do Rio. A investigação queria entender o papel da FGV na venda das ações do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Berj), criado para absorver as dívidas do antigo Banerj. A FGV fora contratada pela administração da governadora Rosinha Garotinho com o objetivo de precificar as ações do Berj. Pelo contrato, a FGV receberia 2,45 milhões de reais, mais 3% sobre o valor total da venda do Berj, razão pela qual interessava à fundação que o banco fosse vendido pelo maior preço possível.
Em um e-mail obtido pelos procuradores, está descrito o esforço do então diretor técnico da FGV Projetos, Ricardo Simonsen, filho do ex-ministro Mário Henrique Simonsen e primo de Simonsen Leal, para subir o preço do banco. “Minha avaliação do Berj está em 400 milhões de reais […]”, diz ele. “Estou preocupado. Seria bom acharmos coisas para o banco valer mais.” A FGV subcontratou o Banco Prosper para o serviço e, no final das contas, embolsou 28,6 milhões de reais. Não é incomum que o contratado se empenhe para aumentar sua remuneração, mas o problema da FGV apareceu na hora de dividir o dinheiro.
Já se sabia que, dos 28,6 milhões, a FGV Projetos repassou 9,7 milhões para o Prosper, que, por sua vez, destinou parte do valor para as contas do então governador Sérgio Cabral, sucessor de Rosinha Garotinho, e seu secretariado. Mas a piauí apurou que a divisão não parou por aí. Outra parte, 2,1 milhões, foi paga para uma empresa de fachada, que, por seu turno, repassou um cheque de 251 mil reais para uma segunda firma, a SFQ Consultoria e Gestão Empresarial. A SFQ – sigla que coincide com as iniciais de Sérgio Franklin Quintella, vice-presidente da FGV – fora aberta oito meses depois do leilão do Berj. A descoberta remeteu os procuradores a um e-mail de 2008, no qual Ricardo Simonsen escreveu: “Se atendermos essa correria final, a venda sai e todos faturaremos logo.” Demorou três anos, mas faturaram.
Para acobertar esses desvios, de acordo com o Ministério Público, Simonsen Leal e Quintella ordenaram à controladoria e à contabilidade da FGV que não houvesse “lançamento contábil relevante” nos anos de 2006, 2011 e 2013 (os anos da assinatura do contrato com o governo do Rio e dos pagamentos). Ao tomar conhecimento do esquema para ocultar os dados, os promotores escreveram: “O ocupante da cúpula da estrutura fundacional [Simonsen Leal] tem integral conhecimento das ilegalidades que afloram no seio da entidade que preside e que deliberadamente se abstém de lhes interromper.”
Diante de tudo isso, o Ministério Público reprovou as contas da FGV referentes aos anos 2017, 2018 e 2019. A desordem orçamentária e os desfalques de recursos minavam a imunidade tributária da entidade e, com base nisso, o poder público poderia pedir à Justiça a cobrança de impostos da fundação. Além do mais, em agosto de 2020, Tavares e o Gaecc entraram com uma ação na 28ª Vara Cível do Tribunal de Justiça pedindo a destituição dos seis diretores da fundação, incluindo o presidente e o vice, além da quebra dos sigilos bancário e fiscal das empresas ligadas aos diretores. A ação caiu como uma bomba nos corredores das duas imponentes torres em frente à Enseada de Botafogo, na Zona Sul do Rio, onde fica a sede da FGV. Nunca a poderosa fundação fora tão desafiada pelo Ministério Público.
A revanche de Simonsen Leal e companhia viria a galope.
A reação contra o rigor da promotora Tavares e do Gaecc começou em dezembro de 2019, logo depois da reprovação das contas da FGV. Na ocasião, o Confies, conselho que reúne fundações de ensino superior do país (a FGV não integra o órgão), pediu “providências” ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contra a Promotoria de Fundações do Rio. Alegou que o trabalho da Promotoria “tem causado muita insegurança jurídica” nas fundações fluminenses e estava “ameaçando a própria sobrevivência” dessas entidades ao atrasar a análise das suas contas e, em alguns casos, rejeitá-las. O Confies encerrava pedindo ao CNMP uma liminar que impedisse a Promotoria de reprovar contas das fundações sempre que a análise ultrapassasse o período de um ano. Pedia também que suspendesse a rejeição de contas nas análises que haviam desrespeitado esse prazo – o que contemplava o caso da FGV.
O CNMP concedeu a liminar. Na prática, inviabilizou o trabalho da Promotoria de Fundações. Como são apenas três promotores para quase trezentas fundações, o prazo restrito a um ano era inviável, sobretudo considerando a demora das próprias entidades em fornecer toda a sua documentação contábil.
Em fevereiro de 2020, a FGV alegou que a promotora Tavares vinha cometendo “excessos” e pediram que o CNMP fosse ainda mais radical: destituísse os três titulares, e não apenas Tavares, da Promotoria de Fundações. O texto, ao qual a piauí teve acesso, foi escrito antes que Tavares pedisse a remoção da diretoria da FGV, mas já contemplava essa possibilidade em tom de ameaça: “A FGV[…] possui um poder político extraordinário, que jamais foi utilizado partidariamente e que, em mãos erradas, pode gerar uma agressão sem precedentes para a democracia do país.” Não ficou claro qual o prejuízo que a democracia sofreria, mas estava evidente que os diretores já suspeitavam de um pedido de afastamento.
Depois que a Promotoria de fato pediu a saída dos diretores, o CNMP agendou uma audiência de conciliação para o dia 9 de dezembro de 2020. O que não se sabia até agora é que, na reunião, um dos advogados da FGV, Fábio Medina Osório, que foi palestrante do Gilmarpalooza de 2019, propôs um acordo a Tavares: a fundação retiraria a ação pela sua destituição e, em troca, a promotora faria o mesmo com a ação na 28ª Vara Cível, na qual pedia o afastamento da diretoria, a quebra dos sigilos fiscal e bancário e a rejeição das contas da FGV. Tavares recusou o acordo. (Fábio Osório confirmou a proposta para a piauí. Tavares não quis dar entrevista.) No mesmo dia, à tarde, o juiz Eric Scapim Cunha Brandão, substituto da 28ª Vara, negou a destituição dos diretores e a quebra dos seus sigilos. Brandão apontou falhas processuais, pois o Ministério Público pedia quebra de sigilo de diretores que não constavam na ação e ainda pedia um novo administrador para a FGV sem especificar as atribuições do cargo.
Em torno da 28ª Vara, há toda uma teia de relações. O titular da cadeira de Brandão era o juiz Daniel Vianna Vargas. Ele é professor do mestrado em políticas públicas do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), entidade da qual o ministro Gilmar Mendes é sócio e que, junto com a FGV, promove o Fórum Jurídico de Lisboa. Dois meses depois da sentença prolatada pelo substituto Brandão, Vianna Vargas recebeu um convite do ministro Luis Felipe Salomão para trabalhar em seu gabinete no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Salomão, além de ministro, é corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o órgão que fiscaliza os juízes, e um grande amigo da FGV. Hoje em dia, trabalha como coordenador-geral da FGV Conhecimento, que cuida da organização de concursos públicos para a contratação de servidores. (O artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de 1979, proíbe que juízes ocupem cargos de direção em fundações, mas a assessoria de Salomão diz que sua função não equivale a “cargo de direção na FGV”.)
O Ministério Público do Rio reagiu contra a sentença de Brandão recorrendo ao Tribunal de Justiça. Ao mesmo tempo, propôs uma ação cível no STJ contra a liminar do CNMP que impunha prazo máximo de um ano para análise das contas das fundações fluminenses. O Ministério Público confiava que ganharia a ação, mas suas esperanças se dissiparam quando, por sorteio, o recurso caiu no gabinete de Gilmar Mendes.
O ministro assumiu o caso sem que nenhuma das partes tenha pedido sua suspeição em razão de sua parceria de longa data com a FGV no Fórum Jurídico de Lisboa. Além disso, a FGV contratou para sua defesa o advogado Rodrigo Mudrovitsch, que é advogado particular de Gilmar, seu ex-aluno, também professor do IDP e um dos palestrantes no Gilmarpalooza, na capital portuguesa. Em cinco dias, o ministro negou a liminar pedida pelo MP e manteve a decisão do CNMP que estabelecia o prazo de um ano para análise das contas das fundações. Disse que o conselho tem autonomia para decidir sobre os atos dos promotores, que, no caso do Rio, na opinião do ministro, extrapolaram as “regras constitucionais e legais”.
Depois da decisão de Gilmar, o recurso movido por Tavares e pelo Gaecc contra a sentença de Brandão estava prestes a entrar no Tribunal de Justiça do Rio quando surgiu outra novidade: Tavares foi surpreendida com a notícia de que os outros dois promotores haviam assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Um deles, José Marinho Paulo Junior, acabara de assumir a fiscalização da FGV no lugar de Tavares. A troca é comum, já que há um rodízio trianual entre os promotores que fiscalizam fundações, mas a assinatura do TAC chamava a atenção.
A piauí teve acesso ao documento, que dizia que cabe ao Ministério Público “estimular a solução consensual e proativa dos conflitos e controvérsias […] a fim de que seja reduzida a litigiosidade”. Também dizia que o MP aceitara arquivar a ação civil em que pedia a destituição dos diretores da FGV, as quebras dos sigilos bancário e fiscal e a rejeição das contas. Por fim, a Promotoria renunciava a quatro inquéritos civis que investigavam a FGVe o governo estadual por improbidade no caso do Berj.
Era uma renúncia total a tudo o que fora descoberto e a todas as medidas punitivas. Em troca, a FGV assumia o compromisso de fazer estudos de “reengenharia organizacional” e “reestruturação contábil”, repassar 9 milhões de reais a entidades de assistência social, ceder vagas em seus cursos para servidores públicos estaduais e doar 250 laptops a escolas – obrigações que foram cumpridas. Embora o TAC incluísse investigações por improbidade administrativa contra os diretores da fundação – que eram de responsabilidade de Varas da Fazenda Pública, e não na 28ª Vara Cível –, o próprio juiz Brandão homologou o acordo.
Com isso, o caso estava enterrado – no STF, no CNMP, no Tribunal de Justiça. Logo depois da rasteira que levou, Tavares pediu para deixar a Promotoria de Fundações. Hoje, ela atua em uma vara judicial cível em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Procurada pela piauí, ela não quis se manifestar. Mas aos seus colegas promotores mais próximos, ouvidos pela reportagem, Tavares costuma dizer que está decepcionada com o Ministério Público e pensa em abandonar a profissão e o direito.
Concluídas a troca dos promotores e a assinatura do TAC, nunca mais a FGV teve problemas com o Ministério Público do Rio de Janeiro. O promotor José Marinho Paulo Junior, que assumiu a fiscalização da fundação no rodízio, foi um dos palestrantes do xi Fórum Jurídico de Lisboa. Mediou a mesa “Responsabilidade social: uma emergência”. Em troca de e-mails com a piauí, disse que o TAC só foi assinado “após as sucessivas e contundentes derrotas antes sofridas [no Judiciário], que inviabilizaram o êxito da ação”. As “sucessivas e contundentes derrotas” do Ministério Público são duas: a manutenção da liminar do CNMP por Gilmar e a sentença de Brandão, sendo que o recurso ao Tribunal de Justiça nem chegou a ser julgado. Sobre sua participação no evento da FGV em Lisboa, o promotor disse “repudiar, com veemência, qualquer insinuação de desvio de atuação”. E completou com crítica ao trabalho da piauí: “O jornalismo imparcial e comprometido com a verdade deve lastrear-se nos fatos e não em execráveis aleivosias.”
Depois da assinatura do TAC que encerrou toda a investigação, o Ministério Público do Rio informou ao ministro Gilmar que havia desistido da ação que tramitava em seu gabinete buscando reverter a liminar do CNMP contra as Promotorias de Fundações. (A decisão do conselho continua vigente até hoje.) O ministro, no entanto, não arquivou o processo. Deixou-o em aberto – uma medida que se revelaria muito providencial para a FGV diante da tempestade que estava por vir.
A amizade entre o ministro Gilmar Mendes e a cúpula da FGV remonta a 2002, quando a fundação criou seu curso de direito, sob a coordenação do jurista Joaquim Falcão. Um dos objetivos era aproximar o Judiciário da sociedade e da academia. Quem se incumbiu de construir esse elo foi o advogado Sidnei Gonzalez dos Santos, que chegara à FGV no ano anterior, vindo da Fundação Roberto Marinho, onde era superintendente jurídico. Sob a batuta de Gonzalez dos Santos, a FGV passou a abrir as portas para magistrados ocuparem posições de professor, palestrante e até jurados em premiações de projetos inovadores no Judiciário.
Gilmar Mendes tornou-se assíduo nesses eventos. Afinal, além de ministro do STF, ele era – e ainda é – sócio do IDP, que tem sede em Brasília e filial em São Paulo. Com 367 professores e cerca de 1,3 mil alunos, o IDP tornou-se conhecido no meio jurídico por promover eventos com juízes. Deste modo, o IDP e o curso de direito da FGV encaixaram-se nos seus propósitos como a mão e a luva. Interessava à fundação e também ao ministro.
As investigações do Ministério Público sobre a FGV encontraram um indício da amizade entre a fundação e o ministro. Em julho de 2011, por meio de um e-mail, o então chefe da Casa Civil do governador do Rio, Regis Fichtner, se mostra empenhado em fazer lobby para que seu cunhado, Marco Aurélio Bellizze, seja indicado para uma vaga no STJ. No e-mail, Fichtner pede ajuda para Cesar Cunha Campos, então diretor da FGV Projetos. Em resposta ao seu pleito, Cunha Campos diz: “Liguei para o ministro Gilmar […] para que desse o apoio que o Rio precisava.”
Não se sabe se Cunha Campos efetivamente ligou para Gilmar. Procurados pela reportagem, nem ele nem o ministro quiseram se manifestar. O fato é que Marco Aurélio Bellizze tornou-se ministro do STJ em setembro de 2011, dois meses após o e-mail de Campos para Fichtner. A formação do Judiciário brasileiro, como se sabe desde os tempos do Império, se construiu por meio de relações pessoais, e as conexões de amizade e parentesco estão sempre presentes nas indicações. Quando não se trata de nepotismo, não é crime, nem é ilegal, embora arranhe a impessoalidade que seria ideal nas instituições públicas.
Gilmar Mendes está longe de ser o único a usar sua influência na composição dos tribunais, mas é o mais longevo. É o decano do Supremo, para onde foi indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002. “Ele [Gilmar] se dedica à construção desse poder há muitos anos, por meio de uma ampla teia de relações políticas”, diz o professor de direito constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, cuja independência intelectual, em geral agudamente crítica ao Judiciário, vem causando desconforto entre certas cúpulas dos tribunais – e chegou até a produzir um movimento para seu afastamento da universidade, prontamente abortado pela direção da USP.
A aproximação entre Gilmar e a FGV se consolidou de vez em 2013, com o I Fórum Jurídico de Lisboa, mas acabou por atingir o bem mais precioso de uma instituição de ensino: a liberdade acadêmica. Em 2011, Joaquim Falcão, o coordenador da FGV Direito Rio, criou o projeto Supremo em Números, um levantamento estatístico periódico sobre a produtividade do STF feito a partir da análise de 1,2 milhão de processos judiciais. Até então inédito no Brasil, o Supremo em Números foi inspirado em estudo semelhante da Suprema Corte dos Estados Unidos, produzido desde a década de 1990 pela Washington University School of Law.
Nas duas primeiras edições, os dados para a elaboração do Supremo em Números foram fornecidos pelo próprio STF. Em 2014, porém, o relatório focou no tempo médio que cada ministro da Corte demorava para julgar os processos no seu gabinete ou mesmo para conceder liminares e publicar acórdãos. Os dados causaram mal-estar entre os ministros porque, pela primeira vez, suas atuações eram expostas publicamente em rankings de produtividade. Diante disso, o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do STF, deixou de fornecer os dados para o levantamento. A decisão não inviabilizou a pesquisa, apenas dificultou sua realização. Os pesquisadores passaram a ter de coletar e depurar os dados por conta própria no site da Corte. (A assessoria de Lewandowski disse que o CNJ passou a disponibilizar os dados. A piauí apurou que isso só começou a ocorrer três anos depois que o STF suspendeu o fornecimento das informações.)
Na edição de 2017, o Supremo em Números focou a análise nos julgamentos de réus com foro privilegiado. Ivar Hartmann, um dos autores do estudo, publicou um artigo no jornal O Globo apresentando um resumo dos dados. Informava que, entre 2011 e 2016, a taxa de condenação para detentores de foro no Supremo foi inferior a 1%. Embora o estudo não medisse a taxa de condenação de quem não tem foro privilegiado, para efeito de comparação, o tratamento amistoso dado aos detentores de foro estava claro, já que, por evidente, as sentenças condenatórias superam o 1% nos casos comuns.
O artigo de Hartmann irritou Gilmar Mendes, porque o criticava por ter impedido a posse de Lula como ministro da então presidente Dilma Rousseff, no ano anterior. Nas palavras de Hartmann, que não via fundamento jurídico na decisão, Gilmar “preferiu tomar para si o poder de escolher ministros”. Meses depois, em um julgamento no STF, Gilmar atacou Joaquim Falcão e Ivar Hartmann, sem citá-los nominalmente. Acusou-os de usar em vão o “santo nome da Fundação Getulio Vargas” e chamou-os de “picaretas produzidos em Harvard”, referindo-se ao fato de que os dois estudaram na universidade americana.
Em conversas em ocasiões diferentes e sob a condição de que seus nomes não fossem publicados, três ex-pesquisadores da FGV Direito Rio, braço da fundação que cuida de pesquisas sobre o Judiciário e cursos de graduação e pós-graduação na área jurídica, contaram à piauí que Gilmar passou a pressionar Simonsen Leal, o presidente da FGV, para que demitisse a dupla de “picaretas”. Gilmar tem notória antipatia por Falcão desde que, anos antes, o jurista disse, na condição de membro do CNJ, que juízes não poderiam ser sócios de cursos jurídicos. O caso não dizia respeito à sociedade de Gilmar no IDP, mas o ministro vestiu a carapuça.
Joaquim Falcão e Hartmann não quiseram dar entrevista. O certo é que, por decisão de Simonsen Leal, Falcão deixou a direção do curso de direito da FGV em outubro de 2017, e a pesquisa do Supremo em Números deixou de existir tempos depois. (Em janeiro de 2021, Hartmann, autor do artigo, saiu da fundação. Naquele mesmo ano, Falcão, que continuara como professor da instituição depois de deixar a chefia do curso de direito, foi demitido.) Ainda antes do fim do Supremo em Números, todas as pesquisas da FGV – e não apenas as do curso de direito – passaram a ser submetidas ao crivo de Leal. O mecanismo de avaliação prévia das pesquisas chama-se “Rede de Pesquisa e Conhecimento Aplicado”.
“O nome engana”, diz um ex-pesquisador da FGV que pede o anonimato para não se indispor com a direção da fundação. “Apresenta-se como uma estrutura de apoio à pesquisa, mas dez em cada dez pesquisadores logo perceberam que era uma estrutura de controle. Muitos tiveram grandes brigas internamente. A diretora dessa unidade era uma ex-assessora do Carlos Ivan [Simonsen Leal] que despachava todos os projetos de pesquisa com ele. Não estou exagerando. A estrutura começou a exigir que qualquer pesquisa que envolvesse a submissão a qualquer edital público ou privado, ou mesmo recursos internos para custear os pesquisadores, estudo de campo etc., deveria passar por essa aprovação. Então começaram a ficar comuns os vetos.”
Em 2020, durante uma reunião por videoconferência, o presidente da FGV disse a um grupo de pesquisadores do direito para tomarem “cuidado com essas pesquisas do Judiciário”, segundo um deles relatou à piauí. Essa foi a gota d’água para Hartmann, que trocou a FGV pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em São Paulo. Críticas ao Judiciário por parte de seu corpo acadêmico também passaram a ser alvo da direção da FGV. Em janeiro de 2021, durante uma entrevista à Folha de S.Paulo, Rubens Glezer, pesquisador no curso de direito em São Paulo, criticou decisões dos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, chamadas por ele de “catimba constitucional”. Dois dias depois, a fundação divulgou uma nota em defesa do STF. “A posição da FGV não pode ser confundida com opiniões pessoais e individuais”, diz o texto. (Glezer também não quis se manifestar sobre o caso.)
Desde 2019, duas delegadas da Polícia Federal do Rio, Paula Ortega Cibulski e Mariana Zanardi do Prado, vinham conduzindo um inquérito para apurar corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro na FGV. O caso fora aberto a partir de um depoimento espontâneo do ex-governador Sérgio Cabral e da delação do seu operador financeiro, Carlos Miranda. Cabral dissera que, em suas duas gestões (2007-14), recorria à FGV para celebrar contratos apenas para criar um “biombo legal” ao seu propinoduto, tanto por meio da terceirização de contratos do governo com a entidade quanto pela produção de pareceres técnicos que atendessem seus interesses.
A partir desses indícios, as duas delegadas instauraram inquérito e obtiveram na Justiça a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico de sete diretores da FGV. Enquanto o Ministério Público corria com suas apurações sobre as contas da FGV no âmbito cível – que logo dariam em nada –, a Polícia Federal avançava sobre as contas das empresas de fachadas montadas pelos diretores da fundação.
Na investigação da PF, apareceram indícios de que Luiz Carlos Duque, diretor-adjunto na FGV Projetos e homem de confiança de Cunha Campos, aquele que disse ter recorrido à ajuda de Gilmar no lobby para indicar um ministro do STJ, tinha um papel preponderante no esquema. A partir de uma conversa monitorada, a PF suspeita que coube a Duque elaborar o Plano de Aplicação de Recursos (PAR), um nome pomposo para ocultar o esquema de desvio de recursos da FGV para empresas dos diretores da fundação. Na conversa, a cujo conteúdo a piauí teve acesso, Duque detalhou a criação do mecanismo: sob a rubrica contábil PAR, o diretor ocultava os desvios de recursos do caixa da fundação, chamados por ele de “rateio”. “Comecei a colocar no PAR, por exemplo, o rateio meu, do meu salário, rateio dos meus executivos […], porque cada projeto desse, você concorda, ele tem a participação, ué… eu tenho que ser claro. Então, eu fiz o modelo, aproveitei essa conversa com o Ocário [refere-se a Ocário da Silva Defaveri, assessor do presidente Simonsen Leal] pra ver se a gente mitiga um pouco esse risco. Eu não tô mexendo em nada. Eu só tô reclassificando despesas, tá certo?”
Além de sangrarem as contas da FGV, os diretores desviavam verbas decorrentes de contratos entre empresas privadas e o poder público intermediados pela fundação, segundo indícios colhidos pela polícia. Em 2011, o governo Cabral contratou a FGV Projetos para selecionar a empreiteira responsável pela construção do novo prédio da Cedae, a autarquia que cuidava do saneamento básico do Rio. As delegadas da PF constataram que, entre 2011 e 2016, a empreiteira transferiu 5,88 milhões de reais para a conta bancária de uma firma de fachada de Cunha Campos. Ao analisar a movimentação financeira dele entre outubro de 2018 e março de 2019, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou incompatibilidade entre seu salário (50,5 mil reais) e o valor em suas contas (920,8 mil). Cunha Campos tem 2,3 milhões de reais em contas no exterior, além de imóveis e empresas nos Estados Unidos, Portugal, França e Alemanha.
Em 2019, Cunha Campos deixou a chefia da FGV Projetos e assumiu o recém-criado escritório da entidade em Colônia, na Alemanha. Em conversa com Duque, Cunha Campos confidenciou, na época, que estava com medo de acabar atrás das grades por causa da investigação que estava sendo tocada. Em diálogo captado pela PF, Duque relembra a cena para um amigo engenheiro: “No ano passado, no corredor da fundação, Cesar Campos me cerca e fala assim: ‘Ó, eu vou… vou embora!’ Eu falei: ‘Porra, cê vai embora?’ ‘Vou embora. Vou embora que eles tão me acusando, tô com medo de ser preso.’”
Com a mudança de Cunha Campos para a Alemanha, Duque assumiu o comando da FGV Projetos. O mesmo contrato das obras da Cedae em que houve suposto repasse ilícito para Cunha Campos, conforme documentos da investigação, rendeu 5,5 milhões para Duque. Além desse valor, de acordo com a Polícia Federal, o diretor levou 13,1 milhões de reais da FGV ilicitamente por meio de empresas de fachada entre 2010 e 2019.
As ilegalidades da fundação investigadas pela PF não se limitavam ao governo Cabral, conforme os documentos obtidos pela piauí. Em 2017, a FGV foi contratada pela Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), companhia ligada à Marinha, por 6,2 milhões de reais. Sua tarefa era auxiliar a Emgepron na elaboração de contratos com empresas privadas para a construção de quatro corvetas. Segundo indicam e-mails da diretoria da FGV Projetos obtidos pela polícia, os contratos foram superfaturados em 40%. Ou seja: cerca de 2,5 milhões eram do superfaturamento. Para completar, a FGV subcontratou para o serviço empresas indicadas pela própria Emgepron. Para a PG, a triangulação era um modo claro de favorecimento e de burla à lei de licitações.
Outros contratos se seguiram. Depois de 2017, a Marinha firmou mais três acordos com a FGV, todos com objetivos muito parecidos, que consistiam em apoiar a construção de um estaleiro naval em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Em setembro de 2020, Duque e um gerente técnico da FGV Projetos, Maurício Wanderley Estanislau da Costa, discutiram em um telefonema quanto iam embolsar em cima dos três contratos. “Eu queria era decidir com você o que a gente faz com essa questão aí do valor que você tirou lá do meu prêmio que, pô, eu, particularmente, tô desconfortável com isso”, disse Estanislau Costa, de acordo com a transcrição a que a piauí teve acesso. As expressões “rateio” e “prêmio”, segundo a polícia, são eufemismos para propina.
Acima de Cunha Campos e de Duque estava Sérgio Franklin Quintella, o vice-presidente. O Ministério Público já havia constatado que parte do contrato da fundação com o governo Cabral acabara na conta da SFQ, a empresa de fachada de Quintella. Mas a PF descobriu mais: Quintella tinha uma offshore em São Vicente e Granadinas, a Kallista Ltd, que em 2020 deu lugar à Werneck, nas Bahamas, cuja conta ficava no banco suíço Pictet & Cie. Em 2014, quando começou enfim a declarar a offshore em seu imposto de renda, Quintella informou um patrimônio de 34,9 milhões de reais. O valor é incompatível com a sua renda bruta daquele ano, de 1 milhão de reais, diz a PF. Alegando razões de saúde, Quintella deixou a FGV em 2020.
Outro protagonista nos desvios de recursos da FGV, ainda conforme a Polícia Federal, é o diretor de mercado da FGV Projetos, Sidnei Gonzalez dos Santos, aquele que se empenhou em aproximar a fundação da cúpula da Justiça brasileira. E-mails obtidos pela polícia indicam que, entre 2006 e 2020, Gonzalez dos Santos recebeu 20,6 milhões de reais da FGV por meio de empresas de fachada. Ao menos uma dessas empresas, conforme a investigação, remeteu dinheiro ilegalmente para o exterior, sobretudo para Portugal, onde Santos tem imóveis – um deles, por coincidência, fica no mesmo prédio onde Gilmar tem apartamento, em Lisboa.
Na avaliação das delegadas Cibulski e Prado, o trio da FGV formado por Cunha Campos, Duque e Santos estava encarregado das “negociações escusas” da FGV Projetos. Junto com Quintella, os três são qualificados como “líderes da organização criminosa”. Mas Ricardo Simonsen, o filho do ex-ministro e diretor técnico da FGV Projetos, também recebeu dinheiro da fundação: entre 2017 e 2018, empresas de fachada pertencentes a ele receberam 2,4 milhões de reais da entidade. A PF suspeita que parte desse recurso terminou em uma das seis empresas que ele e sua mulher mantêm no exterior, três delas em offshores. Documentos da base de dados Pandora Papers, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, obtidos pela piauí apontam que duas dessas offshores, sediadas nas Ilhas Virgens Britânicas, têm, juntas, 2,37 milhões de dólares em ações. A defesa de Ricardo Simonsen afirma que o empresário declara todas as suas offshores ao Fisco brasileiro, conforme prevê a lei. O relatório da Polícia Federal sobre o caso não traz essa informação.
Diante de tudo isso, em outubro de 2021, a PF pediu à Justiça as prisões preventivas de sete diretores da FGV, incluindo Duque, Cunha Campos, Santos e Ricardo Simonsen. (No caso de Quintella, em razão de sua idade avançada, 88 anos, as delegadas pediram prisão domiciliar.) Além da prisão, as delegadas pediram busca e apreensão nos respectivos endereços e o bloqueio de bens dos suspeitos. O juiz substituto da 3ª Vara Federal Criminal do Rio, Vitor Barbosa Valpuesta, negou os pedidos de prisão, mas permitiu as buscas e o bloqueio dos bens. Com isso, caiu a segunda bomba sobre a poderosa FGV.
A Operação Sofisma foi deflagrada na manhã de 17 de novembro de 2022. Os agentes resolveram batizar a operação com esse nome para mostrar que a alardeada credibilidade da FGV é enganosa. Enquanto uma equipe de policiais entrava na sede da fundação em Botafogo, outras ingressavam nos endereços das casas e empresas dos diretores da fundação. Além de celulares e notebooks, a PF apreendeu na antiga sala de Duque um documento intitulado “Mapa de prêmios diretores da Projetos 2009-2019”. A polícia também encontrou na casa de Quintella (que estava acamado na ocasião) alguns documentos sobre a Werneck, situada nas Bahamas. Aos agentes, a mulher de Quintella disse que o dinheiro da conta do marido na Suíça “nunca esteve em território brasileiro”. Sobre a origem do recurso, ela deu duas explicações distintas. Primeiro, disse que vinha da venda de uma empresa no exterior. Depois, da venda de uma fazenda, sem especificar se era no exterior ou no Brasil.
A FGV agiu rápido. No mesmo dia 17, Simonsen Leal assinou uma procuração constituindo um advogado para defender a fundação na Operação Sofisma. O nomeado era Rodrigo Mudrovitsch, o advogado particular de Gilmar Mendes. Nesses casos, o caminho usual da defesa é ingressar com um habeas corpus na instância imediatamente superior à 3ª Vara Federal Criminal do Rio – no caso, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Em caso de recusa do habeas corpus no TRF, caberia então recurso à instância seguinte, o STJ. E, em caso de nova derrota no STJ, a defesa finalmente recorreria à última instância, o Supremo Tribunal Federal.
Mas Mudrovitsch pegou um atalho heterodoxo e pediu um habeas corpus direito no STF. Optou por um caminho que só cabe para investigados que detêm foro privilegiado – o que não é o caso de Simonsen Leal, nem de nenhum diretor da FGV. A catimba foi a seguinte: Mudrovitsch ingressou com o pedido de habeas corpus no âmbito daquela antiga ação cível do Ministério Público do Rio que, havia dois anos, Gilmar Mendes, em vez de arquivar, resolveu manter aberta. Com isso, a ação serviu como uma janela permanentemente aberta para a FGV que, em caso de necessidade, podia então bater diretamente na porta do Supremo, sem ter de percorrer as instâncias inferiores.
O advogado disse que, ao autorizar as buscas, o juiz Vitor Barbosa Valpuesta, da 3ª Vara, havia “usurpado a competência” do Supremo, já que, segundo ele, a PF procurava “por vias transversas” atingir o mesmo objetivo da Promotoria de Fundações, que era investigar a FGV – ainda que a Promotoria atue exclusivamente em âmbito cível, e não criminal. Por fim, Mudrovitsch pediu a anulação de todos os atos da 3ª Vara Federal na Operação Sofisma e que o caso fosse encaminhado à Justiça estadual do Rio, mesmo que a investigação incluísse crimes federais, como evasão de divisas e lavagem de dinheiro, e instituições federais, como a própria União e a Emgepron, vinculada à Marinha.
Com o caso na mão, Gilmar tinha três caminhos: julgar-se suspeito pelo fato de o habeas corpus ser assinado por seu advogado particular, rejeitar o pedido afeito ao direito penal dentro de uma ação cível ou, ignorando esses dois pontos, conceder ou negar o habeas corpus. O ministro concedeu o habeas corpus e ainda criticou a “indevida expansão ou universalização da competência da Justiça Federal do Rio de Janeiro”. Escreveu: “Não é por outro motivo que as defesas dos acusados vêm se insurgindo há bastante tempo contra essa estratégia inquisitiva. […] Além disso, a manutenção das medidas constritivas poderá conduzir a graves danos de difícil e incerta reparação na gestão da Fundação Getúlio Vargas, entidade internacionalmente conhecida que há muito contribui para o desenvolvimento da pesquisa no Brasil.”
Não houve recurso contra a decisão de Gilmar por parte da Procuradoria-Geral da República, na época sob comando de Augusto Aras. O dia seguinte à decisão do ministro, divulgada no dia 18 de novembro, era um sábado. A delegada Cibulski estava na igreja acompanhando a primeira comunhão do filho quando começaram a pipocar mensagens no seu WhatsApp. Eram os advogados dos investigados da FGV. Eles estavam na Superintendência da PF, no Centro do Rio, e pressionavam pela devolução de todo o material em poder da polícia nas operações de busca e apreensão. Era uma exigência estranha. Afinal, a decisão de Gilmar não ordenava a restituição do que fora apreendido. A delegada respondia que não havia sido formalmente informada da decisão do ministro e pedia aos advogados que voltassem na segunda-feira. “Isso não se faz de imediato”, respondia Cibulski.
A piauí reconstituiu o trabalho dos advogados. Eles formalizaram o pedido de devolução do material ao juiz, que rejeitou. Em seguida, foram ao desembargador de plantão, que também rejeitou. Tudo no sábado, dia 19. Pelas normas internas do TRF da 2ª Região, a entrega de material apreendido nunca se dá em fins de semana e feriados. Os advogados então recorreram a Gilmar, em Brasília. Em nova decisão na tarde do sábado, o ministro determinou a entrega imediata de todos os bens apreendidos. A decisão foi cumprida em pleno domingo. “Não se devolve prova que não pode ser revertida”, reclama um agente da investigação sob anonimato para evitar indisposição com Gilmar. “O correto seria espelhar o conteúdo desse material enquanto se discute na Justiça a validade da investigação e o foro correspondente. Ao impedir isso, o ministro acabou com a investigação, porque os celulares certamente foram todos apagados ou destruídos.” A delegada Cibulski não quis falar sobre o caso.
Coerente com uma posição que tem defendido desde os tempos do vale-tudo da Operação Lava Jato, Gilmar explicou sua defesa do sigilo do material apreendido: “Como muito bem se sabe, não são raros os eventos em que informações confidenciais, constantes de inquéritos policiais que tramitam sob segredo de Justiça, são perversamente transmitidas para terceiros, normalmente com o propósito de atingir a honra e a imagem de investigados.” Em ofício às delegadas Cibulski e Prado, Gilmar pediu para que fosse discriminado todo o material apreendido na operação, quis saber se foram extraídas cópias dos conteúdos dos celulares e computadores apreendidos e quais peritos tiveram acesso aos equipamentos. As delegadas responderam que não houve sequer acesso aos celulares e computadores pela PF.
Em maio do ano passado, Gilmar determinou o envio do caso para o Tribunal de Justiça do Rio, como pedira a defesa dos diretores da FGV. O inquérito tramita em sigilo, mas, ouvidos pela piauí, os investigadores federais não estão otimistas com o avanço do caso, nem ficarão surpresos se tudo tiver o mesmo fim da apuração da Promotoria de Fundações, na esfera cível. Procurada pela revista, a assessoria do tribunal fluminense informou que não poderia dar informações sobre o processo. As defesas dos sete diretores da fundação ou não quiseram se manifestar sobre a Operação Sofisma, ou não foram localizadas pela reportagem.
A piauí enviou onze perguntas para a FGV em agosto do ano passado e mais duas em meados de fevereiro. Na primeira rodada, entre outras indagações, a revista perguntou sobre os indícios de desvios, tudo somado, de pelo menos 62,7 milhões de reais para empresas de fachada ligadas aos diretores da fundação, sobre os pagamentos a título de bônus que não são previstos em lei no caso de fundações sem fins lucrativos, sobre eventuais falhas no setor de compliance da entidade e sobre a pressão dos advogados da FGV para resgatar o material apreendido na Operação Sofisma em pleno fim de semana. A nota enviada pela FGV tem catorze parágrafos, dos quais seis dizem que a piauí está publicando material requentado e defendem a excelência acadêmica da fundação. Segue a íntegra:
A respeito das afirmações e questionamentos feitos pela revista piauí, em 8 de agosto de 2023, a FGV, inicialmente, se surpreende com alegações referentes a situações passadas, não só já esclarecidas, como objeto de ações arquivadas, encerradas ou anuladas. Surpreende-se, igualmente e ainda mais, com a exposição midiática de processos que correram em segredo de Justiça, apesar de o próprio Judiciário já ter firmado posicionamento veementemente contrário e gravemente sancionador em relação à divulgação de dados sigilosos pela mídia.
Assim, carece, no mínimo, de reflexão o fato de que os temas e respectivos derivativos das perguntas enviadas pela revista piauí, para o embasamento da matéria que pretende produzir, já tenham sido repetidos e publicados na mídia nacional, em alguns casos, em mais de uma centena de vezes nos últimos cinco anos – grande parte em matérias que suprimiam ou modificavam as respostas enviadas pela instituição.
Com o intuito de contribuir com essa reflexão, a FGV utilizou uma ferramenta de busca da empresa Knewin (considerada a maior em tecnologia de dados), em relação aos cinco últimos anos. A amostragem atingiu 215 617 veículos impressos e online, com dezenas de combinações de palavras e expressões associadas às perguntas ora formuladas. Em três dos onze questionamentos feitos, em 8 de agosto de 2023, pela piauí, as respostas estavam contidas, em parte, à exceção dos comunicados oficiais, demonstrando a ocorrência, nos últimos cinco anos, de 367 perguntas com temas iguais ou correlatos aos que a revista ora nos submete. Trata-se de uma questão complexa que, acredita-se, ultrapassa, em muito, o objetivo que deve pautar a piauí de bem informar ao seu público.
Em adição, com o advento da internet e da sofisticação das ferramentas de busca, a imagem de uma instituição permanece maculada por um período indefinido, incalculável, muitas das vezes com respostas editadas ou obstruídas por qualquer motivo não identificado. Para uma instituição que tem na sua imagem o seu principal ativo, como no caso da FGV, trata-se de um problema de extrema gravidade.
Afinal, com 78 anos de atividades em prol do desenvolvimento do país, a FGV conta com reconhecimento internacional quanto ao seu nível de excelência, sendo, atualmente, a terceira think tank do mundo e, há mais de dez anos, o principal centro de pensar da América Latina. A FGV tem, há anos, três das cinco escolas de graduação mais bem avaliadas pelo mec.
A Fundação Getulio Vargas assegura emprego direto, atualmente, para mais de 3 mil profissionais e possui dezenas de milhares de alunos em seus cursos de graduação e pós-graduação, online e presenciais. Somente durante a pandemia, a FGV disponibilizou mais de uma centena de cursos online, inteiramente gratuitos, assegurando conhecimento e treinamento, naquele grave momento, para cerca de 2 milhões de brasileiros.
A FGV presta serviços técnicos qualificados a órgãos públicos e entidades privadas, utilizando-se de quadro de profissionais altamente qualificados, em sua maioria formado por mestres, doutores e pós-doutores. Os serviços técnicos prestados estão em perfeita harmonia com sua missão institucional de contribuir com o desenvolvimento nacional. Todos os contratos firmados com o poder público brasileiro, em nível federal, estadual ou municipal, estão disponíveis no Portal da Transparência para que qualquer cidadão tenha acesso. Todas as contratações efetuadas com instituições públicas são objeto de aprovação dos tribunais de contas, tanto federal, quanto estaduais e municipais.
A insinuação feita pela revista que todos os governantes, em geral, historicamente, teriam favorecido a FGV não se sustenta por si só.
A FGV desenvolveu e possui, hoje, projetos que buscam e analisam dados estatísticos dos três poderes, inclusive sobre o funcionamento do Judiciário, muito mais profundos, relevantes e precisos do que os dados apresentados pelos pesquisadores do Supremo em Números.
Igualmente, falar em superfaturamento de contratos firmados com a empresa pública de projetos navais ligada ao Ministério da Defesa por intermédio do Comando da Marinha do Brasil (Emgepron), consiste em grave, injusta e inaceitável acusação em relação ao importante projeto que envolve segurança nacional.
A FGV preza e respeita a liberdade de opinião e a independência acadêmica. O fato de a entidade ter o cuidado de esclarecer que a opinião individual de cada um é livre e não vincula a instituição confirma exatamente a independência acadêmica de seus professores e pesquisadores.
A ação civil pública ajuizada contra a FGV em 2019 foi indeferida por ausência dos requisitos para sua continuidade e, mesmo assim, a fundação e o MPRJ firmaram um termo que foi judicialmente homologado, que pôs fim à contenda, sem qualquer reconhecimento de irregularidade de parte a parte.
As contas e as práticas contábeis da FGV foram, todas, até aqui aprovadas pela Promotoria de Fundações responsável pelo seu velamento, não restando, portanto, quaisquer irregularidades em sua contabilidade. Pagamentos de atuação profissional por pessoa jurídica do prestador é ato legítimo reconhecido como tal pelo Judiciário, em diversos segmentos, inclusive em relação a contratos firmados entre profissionais e órgãos de imprensa.
Não há qualquer inconsistência legal na eleição dos quadros direcionais da FGV, tanto que todas as assembleias realizadas até a presente data foram aprovadas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, onde são registradas, inclusive, as respectivas atas.
Em relação à operação deflagrada contra a FGV em novembro de 2022, intitulada Operação Sofisma, o processo foi anulado pelo STF desde seu nascedouro, chamando a atenção a tentativa de exposição de dados a ela referentes, já que o processo tramitou em segredo de Justiça.
Quanto ao Fórum Jurídico de Lisboa, foi realizado em 2023 pelo décimo primeiro ano e com parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Os palestrantes do evento são reconhecidos professores e líderes, europeus e brasileiros, que discutem temas pertinentes à Europa e ao Brasil. O evento é aberto ao público e atrai grande interesse da comunidade acadêmica de brasileiros residentes na Europa, motivo pelo qual, historicamente, ocorre na capital de Portugal.
As perguntas adicionais enviadas em fevereiro indagavam se o ministro Gilmar Mendes pressionara pela demissão de dois acadêmicos da FGV – Joaquim Falcão e Ivar Hartmann – e quais seriam os estudos mais avançados que substituíram o projeto Supremo em Números. A FGV respondeu que não recebeu pressão ou atendeu pedido de “quem quer que seja” para fazer demissões. Não respondeu a pergunta sobre os estudos que vieram depois do fim do Supremo em Números.
A piauí também enviou perguntas à assessoria do gabinete do ministro Gilmar Mendes no STF, mas não teve retorno.
Com a investigação da Polícia Federal praticamente neutralizada, começou a caça às bruxas. Como corregedor do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Luis Felipe Salomão, o atual coordenador da FGV Conhecimento, intimou todos os magistrados de plantão no TRF do Rio num fim de semana de novembro. Em tese, queria esclarecer por que os juízes relutaram em entregar o material apreendido na Operação Sofisma aos advogados dos investigados. A piauí pediu ao CNJ informações sobre o que foi investigado a respeito da conduta dos magistrados e as eventuais punições aplicadas, caso alguém tenha de fato agido de modo irregular. O CNJ não deu explicações e manteve o caso sob sigilo.
Na caça contra os investigadores e magistrados que se envolveram no caso da FGV, entrou também um nome que nem tinha aparecido em cena: o procurador Eduardo Gomes El Hage, que coordenou a antiga força-tarefa da Lava Jato no Rio. Sua participação no caso da FGV limitou-se a fazer um despacho burocrático cancelando o mandado de busca contra uma pessoa que mudara de endereço. Mas foi o que bastou para entrar no rol das bruxas. Acionado pelo ministro Gilmar, o corregedor do Conselho Nacional do Ministério Público, Oswaldo D’Albuquerque, incluiu El Hage como investigado numa reclamação disciplinar. Gilmar pediu para averiguar a conduta do procurador na Sofisma “tendo em vista o reiterado descumprimento de decisões proferidas por esta Corte na matéria sob exame”.
Na verdade, El Hage estava há tempos sob a mira de Gilmar. O ministro despreza o procurador desde 2017. Na época, El Hage pediu a suspeição de Gilmar no âmbito de uma investigação sobre Jacob Barata, empresário do setor de ônibus no Rio, falecido no fim do ano passado. El Hage alegou que Gilmar fora padrinho de casamento da filha de Barata e, portanto, não deveria se encarregar de cuidar de seu caso no STF. O ministro não gostou da reprimenda, manteve-se no caso e, desde então, não tolera o procurador.
A própria atuação do Ministério Público em fundações como a FGV está sob risco. Em dezembro passado, o advogado Mudrovitsch, na condição de integrante de uma comissão de juristas formada pelo Senado para revisar e atualizar o Código Civil, sugeriu uma alteração no artigo 66. Se a sugestão for aceita, o Ministério Público passará a fiscalizar apenas fundações de “direito público”, deixando de fora as entidades de “direito privado”, como a FGV. A proposta de Mudrovitsch foi entregue para o presidente da comissão do Senado. É o ministro Luis Felipe Salomão, que coordena um braço técnico da FGV.
Houve um súbito silêncio quando Carlos Ivan Simonsen Leal começou a descer as escadas do auditório da FGV em Botafogo, na manhã nublada de 13 de março do ano passado. Fazia quatro meses que a Polícia Federal invadira aquele mesmo prédio durante uma investigação contra a fundação septuagenária. Logo atrás de Leal, vinha uma fila das mais altas autoridades da República e do Rio de Janeiro, cercadas por seguranças. Entre elas, estavam o ministro Gilmar Mendes, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, Ricardo Cardozo, o procurador-geral do Ministério Público estadual, Luciano Mattos, e o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. Todos representavam as instituições envolvidas, em maior ou menor grau, nas investigações contra a FGV detalhadas nesta reportagem.
Ao terminar de descer a escadaria, as autoridades se dirigiram ao palco do auditório projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, onde se abriu um seminário. O objetivo era debater o projeto de lei das fake news em tramitação no Congresso Nacional. O seminário durou oito horas, cerca de vinte autoridades falaram ao microfone e, no final, a Fundação Getulio Vargas agradeceu a presença das autoridades do mundo jurídico e policial. A cena fez lembrar aquele documento com críticas ao trabalho da promotora Daniela Tavares em que a FGV pedia proteção ao CNMP e jactava-se de seu “poder político extraordinário”, que não deveria cair “em mãos erradas”.
*Este parágrafo foi alterado para refletir uma correção. Uma versão anterior afirmava que Gilmar Mendes e Carlos Ivan Simonsen Leal haviam jantado no terraço do Hotel Tivoli, no qual o ministro fumou um charuto e mandou dizer que o consumo daquela noite era por sua conta. A versão anterior ainda dizia que Gilmar e Simonsen haviam almoçado no Solar dos Presuntos e, no final do Fórum, haviam se hospedado na Quinta da Romaneira, do banqueiro André Esteves, dono do BTG Pactual. Todas essas informações, por incorretas, foram suprimidas da versão atual.
Letícia Sorg, de Lisboa, colaborou com a apuração desta reportagem.