Ilustração de Pedro Franz
Prisão perpétua
Se os episódios de mass shooting são parte definidora da experiência norte-americana, talvez não sejam algo que vai contra seus valores e realizações, e sim um fenômeno que nasce dessas conquistas
Para Emilio Renzi
Mal coloquei os pés nos Estados Unidos, me desliguei do Brasil. Isso mesmo, pá-pum. Não que morar fora do país tenha sido um plano cultivado há muito tempo e que finalmente tenha se realizado, ou mesmo algum sinal de deslumbramento pelo país que me acolheria por um ano, aquele “onde tudo funciona”. Provavelmente teve mais a ver com uma certa exaustão do Brasil. “O Brasil nos consome”, me escreve uma amiga por WhatsApp. E de repente me sinto livre dessa força gravitacional.
Para qualquer pessoa de esquerda, sem especificar as variações no interior dessa posição, o dia a dia se tornou tóxico após o golpe contra a presidente Dilma. As relações foram sendo lentamente envenenadas: andar nas ruas, entrar na fila da padaria, tomar um Uber, tomar o elevador, qualquer situação que envolvesse o contato com desconhecidos abria a possibilidade de algum tipo de confronto. Isso para não falar nos conhecidos e familiares, que de uma hora para outra tornaram-se inimigos. E tudo ficou ainda pior com a pandemia. Ok, mas o Lula voltou. E aqui temos uma dívida enorme com ele por ter derrotado o Bolsonaro, mas não consigo me convencer dessa volta do relógio prometida pelo PT. Indo além: hoje está muito mais claro que os nossos “trinta anos gloriosos”, para onde Lula 3.0 pretende nos levar, não foram assim tão gloriosos.
O fato é que quando abro o UOL, por pura força do hábito, e vejo as fotos de Lula e Bolsonaro, elas me parecem tão decisivas para a minha vida quanto a cena política de um outro país qualquer. Ou ainda, é como se abrisse uma caixa com velhos recortes de jornais, estranhamente mediados pelo toque frio da tela do laptop. Não clico nos links. À distância, a farsa da política torna-se escancarada demais para que seja preciso conhecer os detalhes.
Confesso que sinto um certo desconforto com essa situação. Afinal, meu trabalho sempre tirou sua força do Brasil. Mais exatamente do horror cotidiano brasileiro. Tudo o que produzi esteve encharcado da minha experiência no país onde nasci, com suas dores e também seus privilégios. O outro lado da moeda dessa mudança é que antes de partir eu já vinha lentamente redirecionando meu interesse para o novo destino. Mais exatamente para o horror norte-americano: mass shootings, violência contra imigrantes, consumo desenfreado, infantilização da vida adulta e uma possível volta de Donald Trump à Presidência; para ficar nos pontos principais.
E aqui o terceiro lado da moeda, aquele lado fino, que aparece como um retângulo achatado quando olhamos o objeto de perfil: não sei se por algum desígnio misterioso do algoritmo, força do acaso ou pura vingança do inconsciente, desde a minha chegada a Princeton, notícias sobre o Brasil, ou sobre brasileiros nos Estados Unidos, começaram a pipocar nas minhas redes. Qual seria o interesse das Big Techs em manter as pessoas com um pé em cada canoa? Ou os algoritmos apenas acompanham nossas indecisões? E assim começa um fenômeno estranho e ao mesmo tempo desafiador: ler o Brasil através do olhar norte-americano e os Estados Unidos de um ponto de vista de dentro e de fora ao mesmo tempo. Afinal, o estrangeiro nunca está por inteiro em um novo país.
A romancista Rachel Cusk escreveu sobre nos sentirmos com roupas inadequadas quando temos que viver em outro idioma. É uma boa metáfora porque remete a uma experiência que não é apenas cognitiva (dominar um idioma), mas que atravessa o corpo inteiro. Günther Anders, exilado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, refletiu sobre a fala gaguejante do migrante. O que me leva a pensar que o corpo do migrante também gagueja: vacila, recua, sente a inadequação da sua presença, o receio de ser acusado. Dá as costas quando é questionado. Pensa em fugir, mas acaba ficando.
Abro o app do New York Times e leio uma chamada a respeito de uma tradição brasileira de Ano-Novo para manter “the sea goddess happy”. Não tenho intimidade com qualquer religião, mas Iemanjá me é familiar o bastante para que eu a relacione com essa entidade marítima. Acabo transportado para o universo do realismo mágico de Salman Rushdie (o que provavelmente é um erro) e não para a conhecida paisagem da cidade de Salvador. O famoso carnaval “in this Brazilian town”, com seus “giant puppets”, também dificilmente nos conecta a Olinda. Foto e texto parecem não ter relação.
O caso do brasileiro que fugiu de um presídio norte-americano após ser condenado à prisão perpétua pelo homicídio brutal da ex-namorada transforma-se em “Pennsylvania Manhunt”. A palavra me remete aos velhos filmes de Western e às grandes mobilizações da comunidade deste país quando se sente ameaçada. As peças do cartaz “WANTED” formam um todo ininteligível: foto de um brasileiro; reward: $25.000; alteração na grafia do nome de Danilo para Danelo para facilitar a pronúncia; peso e altura em libras e pés (portanto incompreensíveis para estrangeiros); e, entre as características, race: hispanic. O que parece peça do melhor pastiche pós-moderno à la Tarantino é um documento oficial e público.
Um helicóptero com uma gravação da mãe do fugitivo transmite mensagens em português para que o filho se entregue. Além do apelo emotivo, talvez o FBI não tenha confiado que “Danelo” fosse capaz de entender o áudio em inglês. A mãe queria que o filho se rendesse para não ser morto pela polícia, apesar de considerar a pena de prisão perpétua exagerada. Danilo teria matado porque a ex-namorada ameaçava denunciá-lo por um outro crime pelo qual ele era acusado no Brasil, novamente um assassinato, injusto segundo a mãe, já que realizado em legítima defesa. Uma cascata de desculpas para duas vidas perdidas. Não tive oportunidade de ouvir a gravação, mas posso imaginar que me sentiria não com roupas inadequadas, mas nu em público se ela fosse tocada enquanto eu caminhava pela rua.
Chega um e-mail da Princeton Middle School, onde minha filha cursa a sexta série. Assunto: “Shelter-in-Place Drill.” Quando a Isa (pronunciam Issa) volta para casa, pergunto do que se trata. Ela me explica que soa um alarme e as portas das salas são trancadas com as crianças dentro. Ms. Lee, a professora de ESL (English as Second Language), apaga as luzes e junta a turma num canto fora do alcance visual da janelinha da porta. Pede para que fiquem em silêncio. Ela então explica para dois mexicanos, uma brasileira, uma japonesa, uma sul-coreana, um alemão e duas dinamarquesas (até onde eu consigo me lembrar) que o exercício é feito para o caso de uma invasão da escola, por exemplo, por um cachorro bravo. Evidentemente a estrangeira não quer revelar o horror a outros estrangeiros. Como se um pacto de silêncio os protegesse do perigo. Ou ainda, como se a verdade pudesse rachar o velho sonho americano. Enquanto conversamos, sobre a minha mesa está o clássico The Chinese Must Go: Violence, Exclusion, and the Making of the Alien in America, da historiadora Beth Lew-Williams, que uso para uma palestra que estou preparando sobre literatura e migração.
Mass shooting não tem tradução. A chacina brasileira tem contexto diferente. Mas se olharmos uma experiência através da outra, talvez as questões tornem-se mais complexas. Se no Brasil as chacinas são colocadas na conta da desigualdade social e no aparato repressivo do Estado, nos Estados Unidos os mass shootings são casos de saúde mental individualizados, e, para parte do país, também um problema relacionado ao fácil acesso a armas. Mas então por que nos dois primeiros mandatos de governo Lula as taxas de homicídio não foram bruscamente reduzidas, acompanhando a diminuição da pobreza e a emergência de movimentos sociais organizados em torno de reparações históricas e empoderamento? E por que aqui, onde a medicalização da sociedade e o aparato de vigilância é cada vez mais presente e sofisticado, o número de episódios aumenta? Não há resposta fácil. Mas a aposta, por um lado na patologia e por outro na falha do Estado, conta muito sobre a formação dos dois países.
Um casal de americanos janta em casa. Eles costumam dar carona para a Isa. Ela e o Dylan, filho deles, estão na mesma equipe de natação e eles também moram na Mountain Avenue. O assunto da violência é colocado na mesa. O pernil temperado com ervas e vinho branco, e assado em fogo baixo por três horas, também. Num primeiro momento, John, o marido, vegetariano e abstêmio, fala desconsolado que não vai viver o bastante para ver o problema resolvido. Após alguns minutos de conversa, ele sugere enfaticamente para trocarmos de assunto. Mais tarde, enquanto coloco a louça na máquina, penso em quantas vezes por dia trocamos de assunto (e de pensamento) para nos esquivarmos do horror cotidiano.
Mas o assunto volta. Após um ataque durante a celebração da vitória do Kansas no futebol americano, o jornalista esportivo John Branch toca em algo profundo: “Super Bowl. Parade. Shooting. Is there a more American story than that?”, para logo em seguida desconectar os elementos e assim desfazer a hipótese que se esboçava, ao afirmar que, “o tiroteio não teve relação direta com o futebol americano, assim como um tiroteio num shopping center não tem relação com compras. Mas cada tiroteio desse tipo parece um crime contra a cultura americana”. (A palavra tiroteio não descreve bem esse tipo de acontecimento, ao sugerir uma troca de tiros entre adversários, o que não é o caso.) Mas se os episódios de mass shooting são parte definidora da experiência norte-americana, e portanto da cultura do país, talvez não sejam algo que vai contra seus valores e realizações, e sim um fenômeno que nasce dessas conquistas.
Ando a esmo pelas ruas de Princeton até que me vejo cercado por construções absolutamente iguais. Trata-se do condomínio Merwick Stanworth de casas pré-fabricadas para abrigar moradores ligados à universidade. As 325 unidades ocupam diversas quadras em ruas abertas ao público. Em determinados pontos, chegam a cercar um indivíduo num giro de 360 graus. Entradas sem portão, janelas sem grade, cortinas despreocupadamente abertas. Não há guaritas, guardas, cancelas ou alarmes. O que parece o sonho de qualquer brasileiro, provoca em mim uma sensação de angústia. A aparente ausência do humano nessa repetição industrial bloqueia o pensamento. Não há história nesse emaranhado de fachadas, reflito. Ou melhor, a razão fria do melhor cálculo de aproveitamento apaga a história, com suas contradições e seus inevitáveis passos em falso. Talvez sejam justamente os passos em falso de qualquer trajetória que tenham sido reprimidos na vida dos norte-americanos.
Caminho mais um pouco perdido por esse “deserto do real” até que dou de frente a um mercadinho com a placa da Conexion Latina na fachada. É uma das muitas soluções para que migrantes enviem os preciosos dólares para os parentes em algum ponto da América Central. Compro uma Coca-Cola e me sinto aliviado com o sotaque carregado do rapaz do caixa. Gracias, ele responde sem levantar a cabeça. Enquanto saio da lojinha, noto que não sou capaz de diferenciar um mexicano de um guatemalteco e de um venezuelano.
Alguns qualificam os mass shootings como “suicide by cop”. Ou seja, o atirador deseja se matar, mas realiza o ato de forma espetacular: assassina e fere a maior quantidade de pessoas possível para em seguida ser morto pela polícia. Se o sofrimento mental não pode ser descartado num ato desse tipo, o espetáculo é o seu componente social e norte-americano. Os “quinze minutos de fama”, o “no pain no gain” e, principalmente, o “just do it”. Leio no livro Heroes: Mass Murder and Suicide do italiano Franco “Bifo” Berardi, que, diferentemente da época em que Freud tentou compreender o mal-estar na civilização, a sociedade atual mais excita que reprime. “Eu não aguento mais, eu quero morrer, mas antes vou deixar minha marca nesta sociedade como todos aqueles que entraram para o hall da fama. Não serei um loser!”, poderia ter pensado um atirador antes de partir para a ação.
No Brasil, os autores de chacinas não procuram os holofotes. Os acertos de conta têm função regulatória nas disputas econômicas no arrepio do Estado. Mas será possível que a banalização do crime não seja também atravessada por algum tipo de mal-estar psíquico? Alguém ainda acredita que o brasileiro é um povo feliz condenado ao sofrimento por políticos corruptos? Se a resposta for sim… bem, então as frustrações com o desenvolvimentismo e o terceiro-mundismo nos condenariam à violência perpétua.
Largo as notícias e abro o livro El camino de Ida (O caminho de Ida, na publicação brasileira), do argentino Ricardo Piglia. O romance tem Princeton como pano de fundo, cidade em que o autor morou por dez anos, como professor da universidade. Emilio Renzi, alter ego do autor, também professor de literatura, nota certa distração educada por parte do chair do departamento, o veterano da Guerra da Coreia conhecido como Don, quando ele menciona escritores sul-americanos. Don é “um misto muito norte-americano de erudito e homem de ação”. Ainda segundo Renzi, para esses acadêmicos norte-americanos, os livros do Sul do continente devem ter inevitavelmente o estilo de A cabana do Pai Tomás.
Apoio o livro aberto na barriga e reflito sobre o meu encontro com o crítico de arte Jonathan Crary. Combinamos um café perto da Universidade Columbia após uma troca gentil de e-mails. A conversa segue na corda-bamba, uma vez que ele desconhece minhas referências para tratar de questões sociais. Ele pede com interesse para que eu repita o nome do livro e do autor para que possa anotar: “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Machado de Assis.” Arrisco um ponto em comum para tratar da ideia do Brasil como filtro e ponto de vista crítico da cultura hegemônica: Caetano Veloso. Crary não o conhece. No entanto, se espanta quando menciono Robert Kurz e o seu O colapso da modernização. Me fala que nos Estados Unidos o livro foi pouco lido e que a edição está sumida do mercado há muito tempo. Qualquer ideia de colapso ocidental pega mal por aqui, imagino. Ele gostaria de escrever sobre sua própria trajetória, sobre como viveu tanto tempo numa realidade que custou a se revelar a ele como violenta, egoísta e, no limite, suicida. Vamos juntos até a entrada do metrô e ficamos de nos falar. Sigo para o Sul.
No romance de Piglia, ele, ou Renzi, menciona ter visto numa esquina de Princeton uma manifestação política de um homem só: “Aqui tudo se individualiza, pensei, não há conflitos sociais nem sindicais, e se um funcionário é mandado embora da agência de correios onde trabalhou por mais de vinte anos, não tem a menor chance de receber a solidariedade dos colegas com uma paralisação ou uma manifestação; por isso, normalmente, quem se sente injustiçado sobe no topo do prédio do seu antigo local de trabalho armado de um fuzil automático e um par de granadas e mata os despreocupados compatriotas que estiverem passando por ali.” E se diverte arrematando ironicamente: “Faz falta um pouco de peronismo nos Estados Unidos.” Piglia não viveu para ver que a verdadeira ironia seria a falta de um pouco de peronismo na cabeça do presidente Javier Milei, justamente em seu país.
Paro na esquina da Nassau Street com a Bayard Lane, onde, no romance de Piglia, foi encontrada morta a bela e misteriosa professora Ida. Tento articular esse cruzamento de violências que conectam Brasil e Estados Unidos, com seu desequilibrado reconhecimento mútuo. Mas as peças não se encaixam.
Meu celular vibra. Recebo do meu pai um vídeo de alguns segundos em que Raul Seixas fala à Marília Gabriela que o Elvis tem muito a ver com o Luiz Gonzaga. Ela se espanta. Ele prova ao tocar Blue Moon of Kentucky e Asa Branca no mesmo ritmo, cada qual com o sotaque original. Na canção de Elvis, ele pede para que a lua azul continue brilhando sobre a sua amada que partiu. Blue Moon simboliza um evento raro, um espetáculo único, que na canção não deve desaparecer nunca mais. Já em Asa Branca, quem brilha, ou arde, é o solo esturricado do sertão, que expulsa o sertanejo. Ele deixa seu amor para trás e promete voltar. Os retornos são raros, e não há nada de excepcional nesse tipo de trajetória. Apesar das diferenças, são canções sobre partir, mas principalmente sobre a perda. E duas formas de lidar com ela. Sorrio diante dessas conexões, apesar do incômodo nas costas.
Sinto uma dor intermitente na região da lombar desde que cheguei aos Estados Unidos. Antes da palestra do crítico de arte Hal Foster, uma aluna venezuelana que notou meu esforço para me levantar da cadeira comenta que isso é muito comum aqui. Na hora não pergunto o que gostaria: aqui onde, nos Estados Unidos ou em Princeton? Ou entre alunos?
Recebo um e-mail da universidade recomendando um app gratuito para tratamento de dores. Novamente o algoritmo ou o problema é tão generalizado que todos recebem a oferta? Antes de ganhar acesso à série personalizada, há um longo questionário. Fica garantido que as respostas serão mantidas em sigilo. Não entendo o que possa haver de confidencial quanto à intensidade de uma dor até chegar nas perguntas sobre a relação entre desempenho acadêmico e sofrimento pessoal. Fecho o app irritado e corro o dedo pelos novos e-mails.
Entra um TigerAlert, que é o sistema de alertas à comunidade universitária: informa desde as condições das estradas em dias de neve até casos de tentativa de agressão sexual ou roubo. Ao menos uma vez por semana chega o aviso sobre um novo episódio e, dias depois, um outro sobre a solução do problema, o que gera um clima constante de expectativa. Reflito o quanto há nesse processo da cultura do “frontiersman”: encontrar novos desafios a cada dia e sempre solucioná-los (“Yes, We Can”). Nesse caso, haveria uma longa linha vermelha unindo o espírito impetuoso da conquista do Oeste (intrinsicamente relacionado com o genocídio dos povos originários), os mass shootings, e também, por que não, o “Make America Great Again”? Ou já estou me perdendo nesse emaranhado de violência e slogans?
Clico no TigerAlert e o assunto é mais grave do que de costume: o aluno James Li cometeu suicídio ao se jogar na frente do trem que cruza a cidade, o Dinky. Dessa vez não há solução. No podcast de notícias do New York Times, Michael Barbado afirma que cerca de 50% dos estudantes universitários do país sofrem de ansiedade, depressão ou pensamentos suicidas. No caso do jovem Li, evidentemente não se trata de um “suicide by cop”, mas pela natureza pública e chocante do método escolhido sou levado a acreditar que havia um desejo de protesto. Contra o quê? Ou quem? Seria uma agressão aos valores norte-americanos da competitividade e da autossuficiência ou um caso extremo (e perverso) de assimilação cultural?
Entro na biblioteca Firestone, onde no subsolo estão guardados os originais de Ricardo Piglia. É preciso deixar o casaco e a bolsa num armário. Após a identificação na primeira sala, deve-se lavar as mãos e se encaminhar para uma porta que é aberta à distância pela funcionária que conferiu dados e higiene. No interior da segunda sala é preciso sentar-se nas cadeiras localizadas nas pontas das mesas e aguardar a funcionária trazer as caixas solicitadas sobre um carrinho parecido com aqueles de sobremesa de churrascaria rodízio.
Assina-se o protocolo e ouve-se em voz baixa as instruções sobre como manipular o material. A funcionária sustenta o sorriso ensaiado enquanto volta ao seu posto. Ela se mantém sentada de frente para os pesquisadores. Há também uma série de câmeras apontadas para as mesas. Anoto no papel laranja fornecido pela biblioteca o seguinte trecho do ex-professor que agora tem sua correspondência, manuscritos e diários enterrados nesse bunker da cultura mundial: “A prisão é a utopia da sociedade capitalista. Cada um isolado em sua cela, como o burguês no mundo.”
Deixo a biblioteca exausto. O sol se põe frio enquanto desço a Harrison Street na companhia de Emilio Renzi, que repete para mim a frase sobre a utopia, com um desafiador sorriso de canto de boca. A palavra prisão ressoa. Murmuro que não nos falta conhecimento sobre a sociedade. Falta ação. Falta sair do isolamento. Mas hoje os homens de ação são os homicidas, os suicidas, os milicianos e os terroristas, rebate Renzi sem se exaltar.
Num exemplar do jornalzinho local largado na esquina da Hamilton Street, leio a seguinte chamada: “Bomb Threat Displaces Rustin Center Event.” Enquanto tento me decidir sobre a pronúncia correta da palavra “threat”, penso desconsolado: estaríamos condenados à prisão perpétua?
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