Os descobridores portugueses, o tapume, a urina: entre os comerciantes locais, o monumento já é conhecido como "banheiro do povo". Seria uma atitude decolonial? Foto: Fernanda Santana
Xixi no caminho da história
O marco zero da cidade de Salvador, primeira capital do Brasil, sofre há anos um destino malcheiroso. Uma associação de moradores quer mudar isso
Em um sábado de céu azul, os banhistas disputam espaço na Praia do Porto da Barra, em Salvador. A faixa de areia tem apenas 600 metros de largura, mas é um point. Para chegar ou sair da areia, há três escadas disponíveis. Uma delas dá de frente para um mural de azulejos e uma escultura em pedra branca de 6 metros de altura. Tão raro quanto a praia estar vazia num fim de semana é alguém se importar com aquele pequeno monumento. Exceto em duas situações: quando as cervejas lotam a bexiga, ou quando o acarajé fermenta no estômago.
Por volta das três da tarde, no dia 16 de março, é possível sentir esse fenômeno no ar. Poças de fluidos e dejetos humanos se misturam no chão e, aquecidos pelo Sol, produzem uma fragrância putrefata. Ofuscam completamente o marco de fundação da cidade de Salvador, tombado como patrimônio histórico. Uma história de quase quinhentos anos: em 29 de março de 1552, o navegador português Tomé de Souza elegeu o Porto da Barra como o marco zero da nova cidade, a primeira capital brasileira. Foi onde ele desembarcou com sua esquadra.
O monumento mesmo só apareceu em 1952. Instalou-se ali a pedra branca, esculpida com uma cruz no topo. Décadas mais tarde, em 2003, ela ganhou a companhia de um painel azul e branco, de 4,2 metros de largura, que representa a conquista portuguesa das Américas. É uma réplica de uma pintura de Joaquim Rebocho, assinada pelo artesão português Eduardo Gomes.
Quanto ao hábito de despejar excrementos por lá, não se sabe bem quando começou. “Sei que é um monumento”, diz Conceição França, 41 anos, comerciante que aluga cadeiras e sombreiros por 20 reais a hora. “Mas prefiro dizer que é um mictório. O banheiro do povo.”
Há mais de dez anos, a Prefeitura de Salvador é cobrada a implantar banheiros públicos ou químicos no entorno da praia. Hoje, no entanto, o banheiro químico mais próximo dos banhistas fica a 1 km do Porto da Barra. Uma falha logística grave para um local que atrai tanta gente. A praia é uma das favoritas dos soteropolitanos e dos turistas. Proporciona um mergulho sem surpresas, e a vizinhança é repleta de opções noturnas. No verão, é batata: quem vai à praia se depara com celebridades. Entre elas, Caetano Veloso, frequentador desde jovem.
Mas a fama não comove a prefeitura. Batendo ponto há dezesseis anos na praia, Conceição já viu mobilizações dos próprios ambulantes – que também têm necessidades fisiológicas – para tentar arrumar um banheiro químico. “Virei avó e isso não mudou”, ela lamenta. Os barraqueiros e comerciantes, então, recorrem ao “banheiro do povo”. Ou apelam para garçons que abram os banheiros de bares nas horas de agonia. Ou procuram outros cantos discretos.
Às oito da manhã, quando chega para o trabalho, Conceição se depara com um cenário devastador no monumento. O saldo da madrugada pode ser cheirado de longe. No resto do dia, não é muito melhor. Enquanto ela conversava com a piauí, à luz do Sol da tarde, um homem se aproximou do paredão de pedras, virou de costas e, sem cerimônia, abaixou a bermuda. Decerto, ele não reparou, mas ao seu lado estava uma placa da prefeitura contendo um QR Code. O código, se escaneado pelo celular, leva a informações sobre o monumento.
A piauí montou guarda por uma hora. Tempo suficiente para que outros seis rapazes se aliviassem às custas da história soteropolitana. “É do interesse de qualquer pessoa salvaguardar sua própria certidão de nascimento”, pondera Waltson Campos, um dos diretores da Associação de Moradores e Amigos da Barra (Amabarra). O mesmo deveria se aplicar às cidades, ele diz. Desde 2013, a Amabarra está na linha de frente do movimento pró-banheiro. Já fez campanhas, fixou cartazes nas redondezas da praia. Os voluntários que participaram dessas ações cobriam os rostos com máscaras cirúrgicas. Não era por causa da pandemia.
Moradores da Barra durante uma das campanhas de conscientização no marco zero de Salvador (Foto: Amabarra)
Waltson Campos, natural do Rio de Janeiro, onde vivia no bairro do Leme, desembarcou em Salvador em 2007, transferido pela empresa na qual trabalhava na época. Já conhecia o Porto da Barra, onde estivera a passeio alguns anos antes. Não lembra de ter notado, naquela época, o marco de fundação da cidade. Mas ficou deslumbrado com o mar transparente e tranquilo. “Me agradou de cara, é um lugar único”, ele conta. Hoje, mora a 800 metros da praia.
Depois que se habituou à cidade, deixou de frequentar as areias como antes. Campos não gosta de praias cheias. Mas gosta de reuniões de moradores. Assim como fazia no Rio, quis se enturmar com os habitantes do bairro, que em muitos aspectos se assemelha a Copacabana, onde convivem os ricos, a classe média, os quatrocentões falidos, os turistas e os moradores da periferia que vão à praia nos fins de semana. Assim, Campos foi parar na Amabarra. A associação de moradores se reúne num clube tradicional de Salvador. Desde sempre, a falta de banheiros públicos na praia esteve na pauta do grupo. Nunca encontraram uma solução.
Em 2015, comemoraram que, por decisão da prefeitura, quem fosse pego sujando as ruas de Salvador seria multado em mil reais. Mas, na prática, isso não inibiu ninguém. O monumento permaneceu na imundície. Antes disso, em 2013, os associados da Amabarra ficaram contentes quando descobriram que estava em curso um projeto de “requalificação” do bairro. Discordavam de alguns pontos do plano da prefeitura, mas gostaram de ver que ele previa a implantação de banheiros públicos. As obras terminaram em agosto de 2014. Banheiros? Ninguém viu. “Pensamos: fomos enganados. E aí começamos a brigar”, relembra Campos.
A primeira possibilidade cogitada pela Amabarra foi pedir o tombamento do marco zero de Salvador. Havia precedentes em outras cidades: no Rio, por exemplo, o monumento de granito que marca a criação da cidade é tombado e fica bem protegido, na Fortaleza de São João, na Urca. Pela lei, qualquer violação de um bem tombado é crime contra o patrimônio cultural.
O plano da Amabarra foi enviado à prefeitura em 2016, quando Campos presidia a associação. A proposta tramitou vagarosamente pela burocracia de Salvador. Uma espera árdua. Um certo dia, Campos soube de uma rara excursão turística que passava pelo monumento na Praia da Barra. Decidiu se juntar ao grupo. “Chegando lá, fiquei com vergonha.” Os visitantes ora cobriam os narizes, ora se afastavam para recobrar o fôlego. O guia, percebendo o próprio erro, encurtou a visita e seguiu para outro canto. Campos voltou para casa a pé, indignado.
Em janeiro de 2020, o decreto de tombamento do marco foi, enfim, aprovado pela prefeitura. A escultura e o painel foram citados na decisão como “símbolos da sociedade“. Qualquer intervenção nas obras e no entorno, desde então, deve ser acompanhada pela Fundação Gregório de Mattos (FGM). O que, na prática, não mudou nada. O marco ainda é um mictório.
Gerente de patrimônio cultural da FGM, Vagner Rocha, reconheceu, em nota enviada à piauí, os problemas que afetam o marco. Afirmou ter solicitado à Secretaria Municipal de Ordem Pública a intensificação da vigilância no local, de modo a conter os infratores. Dois banheiros químicos chegaram a ser instalados próximo ao Porto tempos atrás, mas foram vandalizados e retirados de lá. Desde janeiro, por decisão da FGM, o mural de azulejos e a cruz estão cercados por tapumes. Passam por uma restauração prevista para terminar em abril.
No ano passado, o bar onde Almir Reis trabalha, a menos de 15 metros do marco zero de Salvador, passou a cobrar 10 reais de quem quiser usar seu vaso sanitário. Não adianta tentar burlar a regra – o banheiro fica trancado, e o garçom vigia. A cobrança foi exigida por seu patrão depois de muitos vasos entupidos, torneiras quebradas, paredes emporcalhadas. Estabelecimentos vizinhos seguiram a ideia. “Hoje vieram três mulheres. Os homens usam a fedentina”, explica Reis, usando um apelido desabonador para se referir ao monumento.
Há duas décadas trabalhando no bar, Reis, de 61 anos, já presenciou todo tipo de história que envolve gente desesperada por um banheiro. “Penso que não vou ver mais nada e vejo tudo.” Lembra, por exemplo, de uma turista de Mato Grosso que surgiu certa vez empapada de suor e com uma mancha suspeita no short. Figuras semelhantes dão as caras ocasionalmente.
“Se você não dá ao pessoal um banheiro, viramos animais – porque é o que somos – e fazemos tudo em qualquer lugar. Então, você tem os dois lados de uma história. A cidade tem que resolver”, reflete Costa Tavares, turista grego de 50 anos que passeava pelo Porto da Barra com um amigo, naquele sábado. Nenhum dos dois, que tiravam fotos do mar, sabiam estar ao lado de um patrimônio histórico. Por sorte, não sentiram vontade de ir ao banheiro.
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