A Força Tática, duas mortes e nenhum socorro
Como a família ajudou a juntar as peças da morte de uma menina de 13 anos e de seu amigo de 18 ao serem perseguidos por policiais, que sumiram do local sem prestar socorro
Manuella, de 13 anos, sai de casa escondida dos pais.
Ela manda uma mensagem no grupo de amigas e pede um taxi de aplicativo para encontrá-las.
“…se eu sumir e minha mãe vier atrás de mim, aí vocês passam [a localização] para ela.”
Manuella pega uma carona na moto do vizinho, Albert, de 18 anos, para voltar para casa.
Os jovens passam por uma viatura da Força Tática, que começa a ir atrás da moto, com a sirene ligada.
A 400 metros da casa de Manuella, ainda seguida pela viatura, a moto se choca contra um poste.
A viatura presencia o acidente, mas não para. Ela desliga o som e a luz do giroflex e deixa o local, sem prestar socorro.
O pai de Manuella encontra a filha no local do acidente, já sem vida. Albert é socorrido, mas morre a caminho do hospital.
Até agora, a polícia não informou quem eram os militares que estavam na viatura da Força Tática.
O último Dia das Mães, 12 de maio, havia sido particularmente feliz. Sem uma única nuvem no céu e com o termômetro marcando 30°C, a administradora Ilma Sousa, de 29 anos, teve a ideia de realizar uma confraternização no quintal da casa onde mora com a família no Jardim Iguatemi, Zona Leste de São Paulo. Além dela e de seu marido, o motorista Vinicius de Carvalho, de 32, recebeu ajuda de seus filhos Manuella, de 13 anos, e Paulinho, de 9, para organizar a recepção. O cardápio preparado na cozinha aos fundos do terreno teve arroz, farofa, salada de maionese e churrasco. Algumas cadeiras foram colocadas na calçada para receber parentes, seus agregados e outros amigos. Naquela tarde, Manu havia pedido aos seus pais para sair à noite com algumas amigas. Queria ir a um ponto de encontro usual de outros adolescentes e jovens para dançar e beber, a calçada em frente a uma adega localizada na Rua Pirâmide dos Piques, no Jardim Nova Vitória, comunidade a 5 minutos dali. O pedido foi negado.
Os pais de Manu foram se deitar por volta das 21 horas, pois iriam se levantar para trabalhar às 5 horas do dia seguinte. A adolescente falou que iria dormir com os seus avós, os aposentados Antônia Sousa e José Romão, que vivem no andar térreo do mesmo sobrado – o andar de cima ficou destinado para ela, os irmãos e os pais.
Por volta das 2h40 da manhã, Paulinho acordou com o barulho vindo da rua. Escutou o que parecia ser o ronco dos motores de moto e de carro, e alguns gritos. Pensou ser uma briga. Ele então chamou a irmã para escutar o que estava acontecendo, até se dar conta de que a cama dela estava vazia. O garoto gritou pelo seu nome, para que fosse ouvido no andar de baixo. A avó respondeu que a garota não estava por lá. A mãe se assustou. “Eu pulei da cama pegando o telefone e fiz a primeira ligação para a minha filha”, recorda. Eram 2h47.
Vinicius tirou o seu carro Fiorino da garagem. Pensou de imediato que a filha poderia ter ido com as amigas nos arredores da adega, e começou a dirigir para lá.
O trajeto foi interrompido em apenas 400 metros de sua casa, ainda na rua onde mora. Viu em uma curva das ruas Ribeirão dos Arcos com Celso Betim algumas pessoas em volta de uma moto com dois jovens estirados no chão. Não enxergou nem reconheceu nada, mas seu instinto de pai falou alto: “É a Manu.”
Vinicius saiu do carro gritando pela filha e, como é conhecido por muita gente no bairro, um colega confirmou o pressentimento. Às 2h52, Vinicius faz a primeira ligação para a sua mulher – que estava com o celular na mão ligando para a filha, sem ser atendida. “Eu escutei ele gritando em desespero, dizendo do acidente e que parecia que a nossa filha estava morta”, recorda Ilma.
Ela pegou o seu carro da garagem e foi até o local. Chegando lá, viu a cena da tragédia. Uma moto quebrada e dois adolescentes no chão, algumas poças de sangue. Manu estava na garupa de seu amigo e vizinho, Albert Wanderson de Moraes Balmant, de 18 anos. Os moradores que ouviram o barulho do estrondo ligaram para o Samu, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar. “Não tive forças para olhar, fiquei em estado de choque”, recorda Ilma.
O Samu chegou em quinze minutos, em seguida veio o carro dos bombeiros e, 30 minutos depois, uma viatura da Polícia Militar. Os profissionais do Samu deram mais atenção a Albert. “Pensei, com esperança, que talvez estivessem ignorando a Manu porque o menino precisasse de uma ajuda mais urgente”, diz a mãe da menina. Albert foi levado para o Hospital Geral de São Mateus. Uma maca chegou a ser montada para colocar a Manu, mas minutos depois ela foi desmontada. O corpo dela foi cercado por muitas pessoas. A sua mãe perguntou a um amigo se essa movimentação estranha da equipe do Samu significava o pior. “A minha vida está parada naquela cena desde então.”
Ilma foi tirada dali por amigos. E começaram a acontecer alguns pedidos que, passado o choque inicial, lhe pareceram um tanto estranhos.
A PM pediu para que seu marido fosse o quanto antes ao 49º Distrito Policial (São Mateus) para fazer um Boletim de Ocorrência, às 5 horas. “Me falaram que eu tinha de correr, fazer o BO rápido”, conta Vinicius, sem se lembrar o nome do policial que deu essa orientação. Ele acatou e deixou a cena, com o corpo da sua filha no chão e com sangue ainda sem ter secado no asfalto, para ir até a delegacia. Diz o BO: “Narram os policiais que no local dos fatos apresentava que a vítima condutora da motocicleta perdeu controle e subiu na calçada e bateu contra duas barras de ferro e contra um poste e as vítimas caíram no chão.”
A psicóloga Fabiana Farias de Almeida, tia de Manu, acordou pouco antes das 8 horas quando viu dezenas de ligações perdidas e mensagens de WhatsApp de parentes avisando sobre a tragédia. Ela chegou ao local em menos de 10 minutos. Encontrou Vinicius sentado no chão, chorando e em estado de choque. Foi quando uma mulher se aproximou para saber se tinha algum parentesco com a menina morta. Fabiana respondeu que sim. “Você sabe o que aconteceu aqui?”, perguntou a moradora. Fabiana ficou sem entender o caminho da conversa, até que a mulher disse: “Foi perseguição.”
Às 8h30, chegou o rabecão do Instituto Médico Legal para a remoção do corpo da garota de 13 anos. Ao mesmo tempo, uma viatura da PM se aproximou com a policial Mariana Rodrigues da Luz, que entregou a Vinicius o BO lavrado pouco tempo antes. Fabiana começou a falar com outros moradores. Um deles contou a Fabiana que, enquanto Vinicius estava no 49º DP fazendo o BO, um carro da Força Tática foi ao local do acidente e conversou com a PM que fazia a ocorrência – e, que a partir disso, a polícia informou aos moradores para que não fornecessem câmeras de segurança aos parentes das vítimas.
Fabiana percorreu o caminho do sangue da sobrinha, quando já estava seco no asfalto. Ela bateu em uma casa com câmera de segurança. Relata que o morador desconversou ao dizer que o dispositivo não estava funcionando, para depois fechar o portão em sua cara. Em uma casa mais adiante, Fabiana se apresentou como tia da vítima e falou que as imagens poderiam ajudar a entender o que se passou. Houve um silêncio, recorda, até a sua entrada ser autorizada. Fabiana saiu de lá com um arquivo de vídeo de 11 segundos, enviado por seu WhatsApp, confirmando a suspeita. O trecho registrado às 2h45 mostra o carro da Força Tática com giroflex ligado seguindo em alta velocidade a moto com os dois adolescentes.
De posse do vídeo, Fabiana foi até a casa de Vinicius e Ilma para pegar o BO e seguir até o 49º DP. O objetivo era fazer uma retificação de que havia tido uma perseguição com a viatura da Força Tática. Sem sucesso. Ali, ela foi informada de que a retificação teria de ser realizada por Danilo Roberto Paulino Santos, delegado responsável por ter lavrado o boletim de ocorrência. Na tarde de segunda, um parente que trabalha como investigador de polícia contou à Fabiana que a polícia abriu um procedimento interno para apurar o caso.
Fabiana seguiu em busca de mais imagens. Ela bateu na porta de inúmeras casas pedindo pelas imagens de câmera de segurança. Muitos vídeos foram cedidos, e um quebra-cabeça começou a ser montado. Imagens captadas às 2h42 mostram Albert e Manu de moto andando em velocidade normal, sem nenhum veículo atrás, quando estavam a caminho da adega para a residência da adolescente. A partir das 2h45, tudo muda. É quando um carro da Força Tática com giroflex ligado aparece seguindo a moto prata, de acordo com as câmeras.
A imagem mais impressionante é a do acidente, e não apenas pela batida fatal. Ao fazer uma curva com a viatura em seu encalço, a moto colide na guia da calçada e os dois jovens são arremessados em direção a um poste. Albert usa capacete; Manu, não. Os dois corpos caem no asfalto. O carro da Força Tática, além de não prestar nenhum socorro, desligou o giroflex e seguiu rua acima como se nada tivesse acontecido – agora sem a sinalização luminosa e o barulho emitidos pelo dispositivo. Um cachorro de rua se aproxima dos adolescentes. “Essa cena mostra que não se trata de um acidente. A Força Tática provocou o acidente e, além disso, sequer prestou os primeiros socorros às duas pessoas. A cena é inacreditável”, diz Ilma.
Durante o depoimento prestado no dia 17 de maio no 49º DP, Ilma e Vinicius foram informados de que a motocicleta Honda CG 160 Start pilotada por Albert estava com a documentação em dia. “Ali na delegacia, soubemos também que a placa da moto não havia sido consultada pela Força Tática na noite do crime, caso isso tivesse ocorrido haveria o histórico no banco de dados. Ou seja, perseguiram os dois sem que apresentassem algum tipo de problema”, diz Ilma.
O enterro de Manu e Albert aconteceu na terça-feira seguinte, dia 14 de maio. O pai de Albert, o pintor Wanderson Lino Balmant, procurou Vinicius e Ilma para pedir desculpas – ainda sem saber o conteúdo das câmeras de segurança, ele pensou que o filho poderia ter causado um acidente que vitimou a filha do casal. Wanderson desmaiou mais de uma vez durante o velório. “Ele trabalhava também como servente de pedreiro e pintor, tinha todo um futuro pela frente, mas por morar na periferia teve a vida interrompida por policiais que perseguem pretos e pobres”, diz Michael Weslei, irmão de Albert, que trabalha como motorista de aplicativo enquanto cursa a faculdade de direito. Nem Albert nem Manu tinham passagem pela polícia.
Michael estava em expediente quando o seu celular tocou informando a colisão de seu irmão com a adolescente. Era um amigo falando da suspeita da perseguição policial. Ele chamou a sua mãe, a professora de ensino infantil Elenir Frazão de Moraes Balmant, e os dois foram juntos para o Hospital Geral de São Mateus.
A notícia que receberam foi a pior: Albert morreu na ambulância, antes de chegar à unidade de saúde. Um médico autorizou que a mãe pudesse ter alguns minutos a sós com o filho morto antes de o corpo ser enviado ao IML, quando chegou um homem com uniforme da Força Tática, que tinha no distintivo o nome Renan. “Esse homem chegou fardado, e começou a questionar porque o meu irmão estava sem RG. Daí perguntei para ele se era verdade, conforme tinham me falado por WhatsApp, que havia tido uma perseguição da Força Tática que resultou nas duas mortes”, recorda Michael. “O policial se descontrolou, segurou a arma e nos mandou tomar no cu. A discussão só terminou porque falamos que temos um parente militar.” Esse episódio foi relatado por Michael em depoimento à polícia.
Outro ponto relatado por Michael foi o endereço e nome de um outro morador do Jardim Iguatemi, que minutos antes da morte de Manu e Albert relatou ter sido perseguido pela mesma viatura da Força Tática, batendo a moto junto a um portão. Há imagens de câmera de segurança dessa colisão, todas elas dadas à polícia. “Esse homem, que mora aqui perto de casa, não denunciou nada por estar com medo de represália”, diz Michael.
Os parentes das duas vítimas estão no escuro. A Polícia Civil não informou o nome dos oficiais da Força Tática que estavam na viatura. Foi instaurado um inquérito, de número 1502438-64.2024.8.26.0007, para investigar o “acidente” de moto. Procurado pela piauí, o Ministério Público informou que o inquérito segue no 49º DP. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública para saber alguns pontos: os nomes e os históricos junto à Corregedoria dos oficiais que estavam na viatura da Força Tática; o nome completo do “Renan” que compareceu ao hospital para onde o corpo de Albert foi levado. Até o fechamento da reportagem, nenhuma resposta foi enviada.
Às 00h02 da madrugada de sua morte, Manu enviou uma mensagem às amigas no grupo “macacas” dizendo que estava esperando pelo motorista de aplicativo. Na verdade, ela saiu de casa um pouco depois. Manu baixou o aplicativo 99 com o seu nome e dados pessoais – deu certo, mesmo sendo menor de idade. Ela fez a solicitação saindo de sua residência a partir das 00h24, mas quatro corridas foram canceladas. Um quinto motorista aceitou, às 00h34. O condutor era Bruno, tinha mais de 7 mil corridas pelo app, conforme prints obtidos pela reportagem. Ele realizou o trajeto para receber em dinheiro a quantia de 10,16 reais.
Antes de embarcar, ela mandou uma mensagem de áudio para as amigas: “Gente, olha a minha localização, tá? Se eu sumir e minha mãe for atrás de mim, vocês passam para ela se eu for sequestrada.”
Procurada pela piauí, a 99 enviou a seguinte nota: “A 99 esclarece que o caso não ocorreu durante uma corrida na plataforma. A empresa ressalta que, de acordo com os Termos de Uso do aplicativo, o cadastro e a solicitação de corridas intermediadas pela plataforma por menores de 18 anos estão condicionados à autorização de seus pais, tutores ou responsáveis legais, os quais estão incumbidos por aceitar estes Termos e acompanhar a utilização do serviço pelo menor.” Ou seja, ela passa para o usuário a responsabilidade, sem oferecer mecanismos que impeçam adolescentes de criar um usuário. A plataforma não respondeu à reportagem se tomou alguma medida com o motorista responsável pela corrida.
“A morte desses jovens foi decorrente de uma perseguição policial e, depois, da ausência de prestação de socorros. E sabemos de tudo isso porque a família foi atrás das câmeras de segurança”, diz Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor de polícia do estado de São Paulo. “Como estamos vendo um desmanche da Corregedoria, não existe perspectiva de que os policiais da Força Tática sejam punidos.” Procurada pela piauí, a Secretaria de Segurança Pública não respondeu sobre o nome dos militares que estavam dentro da viatura da Força Tática e o possível histórico de letalidade de todos eles. Eis a nota sobre o caso: “A Polícia Militar informa que a Corregedoria apura todos os fatos relativos ao caso por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM). Os policiais envolvidos na ocorrência seguem afastados do serviço operacional até o término das investigações. O caso também segue em investigação pelo 49º Distrito Policial (São Mateus).”
Manu fez balé por mais de sete anos, tinha muita vaidade com seus cachos morenos e sonhava em ser aeromoça.
Albert trabalhava 8 horas por dia como servente de pedreiro e pintor e tinha o hábito de frequentar a igreja com os seus pais evangélicos. Os dois eram amigos do bairro.
Os registros das câmeras de segurança sugerem que Manu já estava voltando para a sua casa antes de os pais acordarem, e se darem conta de sua ausência. Depois de perder a menina, a mãe, Ilma, iniciou tratamento psiquiátrico e antecipou férias de seu trabalho. “Estou com um buraco dentro de mim, mas vou batalhar até o fim para fazer justiça. Não foi acidente.”
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