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    O escritor argentino Matias Serra Bradford em Buenos Aires: “E se, enquanto lê, o leitor pudesse manter uma distração mínima?” CRÉDITO: DÉBORA VÁZQUEZ_2020

questões literárias

Tentativa outonal de ler em um café portenho

Aqui, torna-se manifesto que ler pode bem pedir mais concentração que escrever

Matías Serra Bradford | Edição 214, Julho 2024

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Tradução de Samuel Titan Jr.

A crueldade de quem considera a gentileza alheia como licença imediata e perfeita para destratar o outro. O patetismo de quem tem dó de si mesmo por ser (por se considerar) tão bondoso. A doçura no uso de certos tempos verbais – “terei feito” – por pessoas de idade. A petulância de quem decide com quem vai almoçar percorrendo a tela do celular, como se reembaralhasse seus contatos antes de convidar fulano ou beltrano para uma partida de pôquer em sua mansão. O imbecil profissional empenhado em que os demais o considerem como tal (por isso percebe no ato quando alguém tenta se esquivar). Alguém cujo humor parece ser seu modo de anunciar que não é corruptível (as pessoas verdadeiramente alegres têm um código moral mais estrito). Se demoram para atendê-lo, aquele aspirante a invisível sente que está bem encaminhado. Um pouco à maneira de um marujo inconsequente, ou ridículo, que em plena tempestade em alto-mar tenta ler no convés do navio, refestelado em uma espreguiçadeira de lona, avanço a duras penas no livro que Geoff Dyer dedicou a D. H. Lawrence e sobretudo a si mesmo, tantas são as digressões e desvios que sem falha convertem o autor em protagonista. Replico, como num espelho invertido, seus devaneios dilatórios. Assim me vejo no meio de um café portenho abarrotado: basta que eu saia de casa com um único livro – a fim de me concentrar de verdade, sem que me distraiam os que esperam a vez a uma braçada de distância –, para que o café monte uma peça de teatro amador, site specific, como quer a arte contemporânea.

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Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz

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