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    A família Mortara em Rapito, filme cujo título recebeu uma tradução sensacionalista em português: O sequestro do papa Imagem: Divulgação

questões cinematográficas

Dogma e ato de violência

O sequestro do menino Edgardo Mortara & dois adendos

Eduardo Escorel | 17 jul 2024_10h47
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O lançamento nesta quinta-feira (18) de Rapito (Sequestrado, em tradução literal para português do título original italiano), de Marco Bellocchio, é um acontecimento marcante que merece ser festejado por se tratar de um filme de alta qualidade que, ao mesmo tempo, deveria suscitar manifestações contrárias a quaisquer formas de intolerância religiosa, em especial o antissemitismo.

Segundo Bellocchio, no entanto, Rapito, que estreou em 2023 na mostra competitiva do Festival de Cannes, não é “um filme político feito para defender uma posição política ou para tomar posição contra a Igreja e tampouco procura colocar um lado contra o outro”. Para o diretor, conforme declarou na entrevista publicada no site do festival, foi “o destino [do personagem] que o sensibilizou e serviu de inspiração. A história do menino [sequestrado] me preencheu de sentimentos e tensão. Emoções que abriram caminho para moldar o filme. Minha solidariedade vai claramente para a criança que sofreu um ato de extrema violência”. Bellocchio reiterou, na conferência de imprensa do festival, que para ele “a questão não é tanto discutir a religião, mas o sequestro. A questão central é o sequestro dessa criança em nome da religião. Foi isso que me impactou. Foi isso que me impressionou. De acordo com o papa essa criança precisava ser salva”.

É inegável, contudo, que o vigor de Rapito resulta também da denúncia contundente do “ato de extrema violência” realizado com fundamento no dogmatismo religioso – por ordem do Tribunal da Inquisição, guardas pontifícios sequestraram, em 1858, Edgardo Mortara, menino judeu de 6 anos, levado da família para ser educado como católico. Bom aluno, ele aprende qual é a base do poder da Igreja na segunda metade do século XIX. Na celebração da festa da Imaculada Conceição, Pio IX, o papa rei, pergunta se algum dos meninos sentados à mesa sabe lhe dizer o que é um dogma. Diante da mudez geral, quem responde é Mortara: “O dogma é uma verdade de fé, na qual se crê sem fazer perguntas, sem discutir porque vem diretamente de Deus” – justificativa para formas variadas de intolerância, além da religiosa.

O alto valor de Rapito provém da relevância do seu tema, sem dúvida, mas na mesma medida da excelência de sua feitura, a começar pela qualidade do roteiro, mas abrangendo o filme como um todo, da direção ao elenco, da direção de arte ao figurino etc. Merece destaque especial a atuação de Enea Sala, menino de 8 anos, em 2023, no papel de Edgardo Mortara quando criança. 

Enea Sala interpretando Edgardo Mortara (Imagem: Divulgação)

 

Conforme Bellocchio declarou, a corroteirista Susanna Nicchiarelli e ele fizeram “questão de enraizar [a narrativa]… em fatos históricos indiscutíveis, antes de permitir que a imaginação preenchesse os espaços que a história deixa vazios”.

Leitura instigante para desenvolver o projeto foi a de Io, il bambino ebreo rapito da Pio IX. Il Memoriale inedito del protagonista del “caso Mortara” (Eu, o menino judeu sequestrado por Pio IX. O memorial inédito do protagonista do “caso Mortara”), de Vittorio Messori, publicado em 2005. “Escritor profundamente católico e conservador”, esclarece Bellocchio, Messori “apresenta uma defesa das razões que levaram o papa a afastar o menino de sua família, [mas sem mencionar o sequestro]. Seu livro ilumina os paradoxos existenciais de Mortara.”

Publicado originalmente em 1996, Il caso Mortara. La vera storia del bambino ebreo rapito dal papa (O caso Mortara. A verdadeira história do menino judeu sequestrado pelo papa), do jornalista e escritor Daniele Scalise, é creditado como tendo livremente inspirado o filme. Serviu também de fonte O Sequestro de Edgardo Mortara, de David Kertzer, professor de ciências sociais da Brown University, especializado em história política, demográfica e religiosa da Itália. Editado pela Rocco em 1998, Steven Spielberg chegou a ter o projeto de adaptar o livro de Kertzer para o cinema e teria desistido, segundo Bellocchio, por não ter encontrado um menino apto a fazer o papel de Edgardo Mortara.

Nicchiarelli esclarece na entrevista coletiva, em Cannes, terem trabalhado também “a partir de fontes primárias: os depoimentos; os anais do julgamento; o testemunho de Marianna Mortara [mãe de Edgardo].” Segundo Nicchiarelli, “todos os detalhes são absolutamente verdadeiros. Tínhamos apenas que escolher dentre o que era verdadeiro e real. É uma história que ocorreu de fato. A maior parte do filme é absolutamente verdadeira. Absolutamente real. Esses eventos são reais e Marco escolheu os que mais o inspiravam.” Compromisso de veracidade que não impediu os roteiristas de recorrerem também a alguns sonhos e cenas imaginárias.

Edgardo Mortara (à direita) ao lado da mãe, Marianna. A fotografia foi tirada entre 1878 e 1890 (Crédito: Reprodução)

 

A impotência de Salomone Mortara (Fausto Russo Alesi), pai de Edgardo, frente ao sequestro do filho e ao poder do papa, o leva a chorar, desesperado, na sala vazia do tribunal da Inquisição. Salomone urra e estapeia a sua própria cabeça. No plano seguinte, Edgardo é crismado e, dez anos depois, já adolescente, ordenado padre, contempla a estátua de Cristo na cruz. Na sequência seguinte, o papa chega carregado na sedia gestatória, abençoando os fiéis. Edgardo esboça um sorriso. Parece feliz. Em meio ao beija-mão que parece intrigá-lo, num arroubo desajeitado de entusiasmo juvenil ele se precipita ao encontro do papa e o derruba no chão. Como castigo, a penitência que o papa lhe impõe é se ajoelhar, beijar o solo e fazer três cruzes com a língua no chão. Edgardo aquiesce, submete-se e é abençoado.

(Imagem: Divulgação)

 

Com orçamento de produção estimado entre 10 e 13 milhões de euros, dependendo da fonte, e receita mundial de bilheteria, até maio deste ano, da ordem de 4 milhões de euros, Rapito está longe de ser um sucesso comercial. Prova renovada de que pode haver um abismo intransponível entre alta qualidade artística e renda no circuito exibidor.

O espectador que for ao cinema, no Brasil, esperando assistir ao papa ser sequestrado ficará decepcionado e terá razões de sobra para pedir de volta o valor do ingresso. Afinal, por aqui, o infeliz título de Rapito é O sequestro do papa, que mais parece uma lamentável e desastrada manobra sensacionalista.

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Outro título banal, dado no Brasil a um bom filme que também estreia amanhã (18), é A filha do pescador (2023), do diretor estreante colombiano Edgar Alberto De Luque Jácome, premiado como Melhor Projeto Internacional no Works in Progress, de 2022, durante o evento Industry@Tallinn@Báltico.  Na ocasião, o júri justificou a escolha do filme “pela urgência e imediatez de sua história, assim como por seu apelo à aceitação”. A estratégia do caracol, tradução fiel do original – La estrategia del mero –, seria um título bem mais instigante. A escolha de versão idêntica ao nome em inglês – The fisherman’s daughter empobrece essa surpreendente coprodução da Colômbia com a República Dominicana e o Brasil, que trata da relação de Samuel (Roamir Pineda), veterano pescador, com Priscila (Nathalia Rincón), sua filha transexual.

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Além de um título sensacionalista e outro banal, há um excelente filme de nome enigmático que também estreia amanhã (18) – A música natureza de Léa Freire, de Lucas Weglinski, diretor que acumula a fotografia (com Joaquim Castro e Louise Botkay), o roteiro e o desenho de som. O que será “música natureza”? A própria compositora e flautista Léa Freire esclarece a questão em voz off, antes do corte para os créditos finais.

Uma das maiores virtudes de A música natureza de Léa Freire é dar o justo valor à música, o que nem sempre é o caso em filmes que tratam do tema. Há, sem dúvida, um viés biográfico e outro dedicado à carreira de Léa Freire, mas a vertente principal do filme é a música em si. As cerca de trinta composições instrumentais e uma canção de Freire são apresentadas com duração suficiente para se tornarem um belo recital.

Algumas pistas para decifrar o título são dadas pela superposição de nuvens, estrelas, raios, trovoadas e chuva ao teclado e às cordas do piano, às mãos e ao close de Freire, enquanto ela toca Tempestade. Títulos de algumas das músicas também são sugestivos. Por exemplo, Choro na chuva, Vento em madeira e Nas crinas do vento, parceria com Jean Garfunkel, cujos versos incluem “…mato mar adentro/navego a cavalo/nas crinas do vento/E o vento/E o vento/nas águas do rio correndo/E as asas do tempo/E o mato que trago por dentro/Só vendo/o vento cantar…”.

Para a clarinetista Joana Queiroz, que toca Temperança, “o trabalho da Léa…soa muito natural, muito orgânico, mas é cheio de complexidades. É um trabalho de ourives”, o que ela diz sentada nas raízes de uma árvore!

São indícios, mas para decifrar o título é preciso mesmo assistir ao filme até o fim – vale a pena.

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