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    Nas proximidades da Universidade de Tiraspol, este cartaz celebra as conquistas soviéticas durante a Segunda Guerra Mundial, conhecida localmente como Guerra Patriótica (Imagem: Bruno Ghetti)

carta do leste europeu

A tranquila fronteira da nova guerra fria

A minúscula Transnístria não teve delegação nas Olimpíadas, mas existe e vive aninhada nos braços da velha Rússia

Bruno Ghetti, de Tiraspol | 09 ago 2024_09h40
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Foi tudo culpa do programa de milhagem. Eu iria à Europa cobrir o Festival de Cannes em maio passado e, como usei milhas para adquirir os bilhetes, não pude escolher muito bem a data do meu retorno ao Brasil. Resultado: teria que ficar em solo europeu treze dias a mais do que permitia meu plano orçamentário original. Isso me obrigou a escolher um lugar mais em conta do que a França pré-olímpica para passar essas quase duas semanas adicionais na Europa.

Optei por visitar algum país do Leste, região pela qual sou fascinado e onde as coisas costumam ser mais baratas. Primeiro, pensei na Romênia, terra do conde Drácula, da ginasta Nadia Comaneci e de uma língua latina que sempre me soou indecifrável. Viajando pelo mapa-múndi, vi que, uma vez na Romênia, não custaria nada, ou quase nada, dar um pulo até a Moldávia, bem ali do lado. É um país onde a língua é também o romeno e sobre o qual pouca gente fala ou sabe muita coisa. Seria um destino a mais no meu currículo de viajante contumaz.

Ao pesquisar sobre a Moldávia, fui atrás de atrativos que me estimulassem a atravessar quase 2,4 mil km de Cannes até Chisinau, a capital moldava. Vasculhando a internet, achei uma agência que oferecia um passeio a um lugar cujo nome me remetia mais às aulas de química do que às de geografia: Transnístria, um país encravado numa faixa de terra comprida entre a Moldávia e a Ucrânia.

Eu havia pulado essa lição: depois da dissolução da União Soviética (em fins de 1991), a Moldávia, um dos países que a constituíam, se tornou uma nação independente. No mesmo processo, uma pequena região deste país, a Transnístria, optou por declarar sua independência da própria Moldávia, em 1992, embora  essa emancipação ainda hoje não seja oficialmente reconhecida.  Lá se vão mais de três décadas, mas a Transnístria é ainda associada a esse passado soviético, que segundo os guias turísticos estaria intacto na região.

Parecia uma ideia curiosa estender a viagem até lá.

A Moldávia hoje é uma república parlamentar, faz parte da ONU, está próxima da União Europeia e até flerta com a Otan, como outras ex-repúblicas soviéticas. A Transnístria, por seu lado, é como se fosse um fantasma: nunca foi reconhecida como país por nenhum dos membros das Nações Unidas. Oficialmente, a Transnístria não existe aos olhos do mundo – e nem aos do Google Maps, que sequer localizam as fronteiras do país, como se suas cidades pertencessem todas ao território da Moldávia. Por isso mesmo, no interminável desfile das delegações dos países no Rio Sena durante as Olimpíadas em Paris, não havia nenhuma vindo desse estranho lugar.

Fui pesquisar mais sobre a Transnístria. O site Wikitravel – a Wikipedia do turismo – trazia logo de início um aviso anticlimático, com um alarmante símbolo de perigo em vermelho: “Viajantes são aconselhados a não viajar para a Transnístria devido à volatilidade da situação de segurança.” Outro site similar, o Wikivoyage, não era mais animador. Recorrendo ao mesmo símbolo de perigo, dizia: “A Transnístria está em risco de guerra.” Aos teimosos que decidissem ir para lá apesar disso, o site alertava: “Atenção com policiais. Se você parecer estrangeiro, irão te parar e pedir o passaporte. Muitas vezes vão pedir propina, que não deve ultrapassar alguns dólares ou euros. Não é uma prática que o governo da Transnístria endosse, mas é algo bem comum de acontecer.”

Insegurança, risco de guerra, polícia corrupta? Já suficientemente assustado, ainda assim resolvi procurar informações em fontes oficiais. A Embaixada dos Estados Unidos na Moldávia era taxativa: “Não vá à Transnístria, devido ao conflito armado na vizinha Ucrânia e ao conflito ainda sem solução entre essa região e o governo central [moldavo].” O Ministério dos Assuntos Exteriores da França, em seu site, deixava claro aos cidadãos franceses: “Em caso de dificuldades na Transnístria, a Embaixada da França na Moldávia não poderá providenciar nenhuma ajuda ou proteção.” E, mesmo no site oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a mensagem era categórica: o Itamaraty desaconselhava “fortemente” que os brasileiros viajassem à região.

Depois de ler todos esses alertas oficiais, me perguntei que tipo de maluco teria coragem de visitar um lugar tão desaconselhável. Quem correria todos esses riscos somente para conhecer uma região que parecia ter parado no tempo, que aparentemente não tinha nenhum atrativo turístico e cuja importância se limitava à autopropaganda de país herdeiro do regime soviético, atualizando na prática seu histórico autoritário?

Pois esse maluco era eu mesmo. Tenho medo de quase tudo. Inclusive do meu próprio medo, o que me torna, de vez em quando, uma pessoa mil vezes mais corajosa do que de fato sou. Movido por essa característica e pela curiosidade, decidi que, depois de Cannes, eu passaria pelo menos um dia na Transnístria, “o último bastião soviético no mundo”, como diziam os guias turísticos na internet. Se eles não estivessem blefando – pensei –, eu faria uma dupla viagem: no espaço e no tempo, voltando aos anos perigosos e ferventes da Guerra Fria.

A silfídica faixa de terra que chamam de Transnístria se estende do Rio Dniestre, que fica no Leste da Moldávia, até a fronteira com a Ucrânia. Dessa situação geográfica se origina o nome latinizado com o qual a região é mais conhecida mundialmente: além (trans) do Rio Dniestre (Nistru, em romeno). No país, porém, é mais usado outro nome para designar a região: Pridnestrovie, palavra de origem russa que significa algo como “perto do Dniestre”. Internet afora, consta que os habitantes locais se ofendem quando alguém chama a região de Transnístria, e não de Pridnestrovie (mas não foi algo que eu tenha percebido durante a minha viagem).

A Transnístria tem cerca de 4.163 km² de área, o equivalente ao tamanho de Cuiabá, a capital de Mato Grosso. Sua capital é Tiraspol, com 140 mil habitantes, parecida com o número de moradores de Nilópolis, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em um território tão pequeno e com população tão pequena falam-se três línguas: o romeno, o russo e o moldavo – esta última, na verdade, é basicamente o mesmo romeno, mas escrito em alfabeto cirílico. A maioria esmagadora da população prefere falar a língua de Putin, o principal “protetor” da Transnístria, que depende essencialmente da ajuda russa.

Um conflito armado da região com a Moldávia no começo de 1992 aconteceu, aliás, por causa dessa opção geopolítica: depois da ruína da União Soviética, enquanto os moldavos em geral se inclinaram à ocidentalização, os que viviam a Leste do Rio Dniestre preferiram manter os laços com a mãe Rússia. Cerca de mil pessoas morreram nos embates militares, nos quais os independentistas da Transnístria tiveram a ajuda de forças russas. A Moldávia então perdeu o controle da região, que se autoproclamou uma república, promulgou uma Constituição, estabeleceu suas próprias Forças Armadas, seu Banco Central e sua moeda: o rublo transnístrio. Para poderem transitar pelo mundo, entretanto, os habitantes não têm outra opção a não ser utilizar o passaporte que os identifica humilhantemente como cidadãos da Moldávia. 

De tempos em tempos, a Transnístria manifesta o interesse em se unir à Federação Russa – hoje formada por 89 entidades (desde repúblicas até cidades). Mas a Rússia sempre desconversa. Curiosamente, sequer reconhece a autonomia da Transnístria, o que, segundo especialistas, se deve ao receio de Putin de irritar a Moldávia e perder a influência que ainda exerce no país. Uma influência cada vez menor, depois da invasão da Ucrânia. Em 2022, uma semana depois do início da guerra, a Moldávia fez um pedido oficial para integrar a União Europeia, o que permanece em fase de negociação.

É também curioso que, apesar de suas afinidades com a Rússia, a Transnístria tenha declarado neutralidade na guerra na Ucrânia. Pode ser mera dissimulação, para não chamar a atenção para as facilidades que concede aos russos para transitarem armas, munições e homens pelas terras transnístrias, coladas na Ucrânia. As inclinações pró-Rússia do atual governo diante do conflito, porém, são amplamente conhecidas.

Eu ainda estava em Antibes, perto de Cannes, quando conversei com Nadiya (como todas as minhas conversas foram informais, estou omitindo os sobrenomes dos meus interlocutores). Ucraniana que mora há anos na França, ela gerencia um hostel na famosa praia da Côte d’Azur. Contei que iria em breve conhecer a Romênia e a Moldávia, sem citar que estava cogitando ir à Transnístria, e ela me relatou um percalço pelo qual passou bem antes da atual guerra em seu país natal, quando teve que atravessar de carro a Moldávia para chegar à sua cidade no Sul da Ucrânia. “Foi um horror”, ela contou. “Tivemos que passar pela Transnístria, e lá as autoridades disseram que só nos deixariam seguir viagem se pagássemos uma taxa. A gente sabia que não era taxa alguma, mas sim propina. Nós nos recusamos, e eles não nos deixaram passar.”

Nadiya e seus amigos resolveram então esperar num local perto da fronteira até que trocassem o turno dos guardas, e quem sabe entrassem outros que não fossem corruptos. “Quando os novos funcionários chegaram, conversaram com os que estavam de saída, e a mesma coisa se repetiu. Ficamos mais de dez horas na fronteira esperando à toa. Por fim, percebemos que era melhor pagar a tal taxa. Pagamos, e seguimos viagem.”

Essa história, que parece a coisa mais pavorosa para um europeu, não chega a assustar um brasileiro, acostumado a situações muito piores. Mesmo assim, achei melhor não contar para Nadiya sobre minha vontade de conhecer a Transnístria – ela poderia achar que sou meio desmiolado.

Depois da overdose de glamour em Cannes, quando me vi bem perto de estrelas como Richard Gere, Uma Thurman, Faye Dunaway e Meryl Streep, eu comecei a me preparar para a etapa “soviética” da minha viagem. Houve um complicado arranjo para achar um voo com preço decente e fui então parar em Bergamo, na Itália, onde peguei outro voo low cost até a simpática Iasi, cidade romena da qual eu nunca tinha ouvido falar, mas que é a segunda (ou terceira, depende da fonte) maior do país.

Iasi é quase que um avesso da enorme e caótica Bucareste, capital da Romênia, que eu só conheceria alguns dias mais tarde, depois da experiência transnístria. Na pequena rodoviária local, comprei um bilhete de ônibus para Chisinau, a capital moldava, e só na hora do embarque me dei conta de uma realidade que me acompanharia por alguns dias: o transporte naquelas bandas é feito em vans, que são chamadas de “ônibus”, talvez por cacoete ou por tradução malfeita nos sites de vendas de passagem.

Na van, notei que eu era o único estrangeiro. Em dado momento, duas mulheres nas poltronas atrás de mim – uma corpulenta e outra esguia – começaram a brigar. Não faço ideia do motivo da disputa, em que trocavam palavras que me soaram rascantes e agressivas. O motorista chegou a parar o veículo e gritou para elas alguma coisa. Cinco minutos depois, o silêncio voltou a reinar na van, e suspeito que a corpulenta tenha ganhado a disputa, porque continuou até o fim da viagem sentada atrás de mim, enquanto a magra mudou de lugar.

Chegamos à fronteira da Romênia com a Moldávia. Obviamente, meu passaporte mereceu um olhar mais demorado dos guardas, mas não me importei. Estava entusiasmado com a paisagem em torno, dada a variedade de árvores, como a que tinha folhas esbranquiçadas. (Quando voltei ao Brasil e revi as fotos que tirei na Moldávia, veio a decepção: as árvores eram parecidas com as da Romênia, que eu tinha fotografado antes, mas que não me chamaram a atenção; tive que reelaborar o relato que eu estava preparando para os amigos, em que dizia que “na Moldávia as árvores são totalmente diferentes”. Não são.)

Eis então que cheguei a Chisinau. Desci em uma grande avenida, de onde seguiria a pé até o hostel onde me hospedaria por quatro dias. Como de costume, confundi o caminho, vaguei pelas ruas puxando minha mala até que um garçom de um restaurante me indicou o local exato.

Chisinau tem fama de ser uma das capitais mais feias da Europa. De fato: em termos de formosura, está mais para Belfast ou Varsóvia do que para Edimburgo ou Praga. Mas os laços afetivos que estabeleci com a cidade me impedem de concordar com essa má fama e de cravar que é uma cidade desprovida de charme, que não se capta à primeira vista. Além disso, é bem cuidada, muito limpa e bastante animada. Lembra um pouco as grandes cidades da vizinha Ucrânia, com algumas avenidas largas pontuadas por edificações imponentes, algumas tendo como pano de fundo enormes blocos de apartamentos no melhor estilo comunista (talvez quem a chame de “feia” tenha dado excessiva atenção a esses prédios). Mas está repleta de lugares modestos e encantadores, como o florido Parque Dendrariu ou o Boulevard Stefan cel Mare, a admirável avenida principal da cidade, com vários prédios públicos, lojas e praças, inclusive a mais importante, a da Catedral.

Meu hostel, a uns 300 metros dessa praça, estava com lotação completa. Todos falavam russo entre si. Custei um pouco a descobrir que não eram propriamente turistas. A maioria vinha da Ucrânia, fugindo da guerra, e estava “em quarentena” na Moldávia, até poderem entrar legalmente na União Europeia como refugiados. A maior parte pretendia seguir para a Alemanha, sem ter nenhuma ideia do que fariam lá para ganhar a vida. Mais de 1 milhão de ucranianos se refugiaram na Moldávia desde o início da guerra, em fevereiro de 2022. Atualmente, há cerca de 100 mil vivendo no país.

Todos os que estavam no hostel haviam passado pela Transnístria antes de chegar ali. Glieb, um ucraniano de 22 anos, era o hóspede que melhor falava inglês. Ele me contou como chegou a Chisinau: saiu da Ucrânia escondido em um caminhão e, ao chegar à Transnístria, procurou as autoridades para que o deixassem partir para a Moldávia. “Fiquei até surpreso de saber que outras pessoas enfrentaram situações tensas. Para mim, foi completamente tranquilo”, disse o rapaz.

Experiência bem distinta da que teve Ilya, um belo ucraniano de 38 anos, que me contou que ele e alguns amigos, ao atravessarem a fronteira, foram interceptados pela polícia na Transnístria. A conversa com os policiais foi tensa. Em dado momento, um guarda começou a elogiar a bota de Ilya. “Ele sugeriu que a gente trocasse os calçados: eu dava a ele minhas botas, ele me dava seus sapatos.” Para bom entendedor, um par de calçados basta: Ilya ficou sem suas botas resistentes e viajou para a Moldávia com os sapatos velhos e pouco aromáticos do policial de fronteira. Teve também que se desfazer (sem direito a escambo) de outros objetos: um walkie talkie que usava para se comunicar com amigos durante a travessia, um valioso filtro manual de água e todos os cigarros que tinha. “Cigarro eles não deixam escapar um”, disse Ilya.

As propinas não foram suficientes: Ilya e os amigos passaram duas noites em uma prisão em Tiraspol antes de serem liberados para a viagem à Moldávia. “O próprio guarda da prisão nos explicou o motivo de estarmos ali: era Páscoa e, como estavam muito ocupados, então não poderiam nos dar atenção.”

No dia seguinte, uma segunda-feira, resolvi entrar em contato com uma agência de turismo e arrumar um guia para minha viagem a Tiraspol. Havia várias modalidades de passeio guiado: o “rural”, o “ecológico”, o da “Rússia Imperial” e o “soviético”. Achei esse último mais interessante, claro. Se eu quisesse que o guia da Transnístria viesse me pegar em Chisinau e me trazer de volta, o preço seria 150 euros. Na hipótese de eu encontrá-lo diretamente em Tiraspol, apenas 50 euros, o que era muito mais razoável.

Antes, porém, perguntei a Andrey, o gerente da agência, se ele achava arriscado eu atravessar a fronteira por conta própria, em viagem de ônibus. Jamais me esquecerei de sua voz apaziguadora: “Não se preocupe. O passaporte brasileiro não traz problema algum para quem passa pela fronteira. Ao contrário. O Brasil é visto muito positivamente por aqui.” Fiquei aliviado, mas também um pouco em dúvida. De qual Brasil ele estava falando: o de Bolsonaro ou o de Lula?

Fui para a rodoviária pouco antes do meio-dia, e mais uma vez o ônibus que faria a travessia era uma van. Depois de partirmos, fiquei levemente ansioso porque me lembrei de ter lido num site turístico na noite anterior esta frase algo preconceituosa: “Os vinhos da Moldávia são ótimos, então talvez isso explique por que tantos motoristas bêbados se acidentam nas estradas do país.”

De fato, os vinhos moldavos são muito bons, e nada tenho a reclamar do motorista da van, que transportou com segurança a mim e mais meia dúzia de passageiros. Eu era o único turista no veículo. Pouco mais de meia hora de viagem, já estávamos perto do Rio Dniestre – era a fronteira.

Tivemos que descer da van e mostrar nossos passaportes. Para a minha surpresa, a entrada foi mais tranquila que a de quando fui da Romênia à Moldávia. Paramos diante de uma estrutura na estrada que lembra os postos de pedágio do Brasil, com as cores verde e vermelha, as placas apenas em cirílico. Fui atendido por uma mulher de farda, jovem, educada e bonita. De repente, me lembrei do depoimento de Nadiya em Antibes, e já estava psicologicamente preparado para qualquer tipo de abuso de poder. Mas a guarda de fronteira apenas olhou meu passaporte e perguntou, protocolarmente, em inglês: “Você vai ficar apenas um dia, certo?” Nem esperou minha resposta e me devolveu o passaporte, sem carimbar. Recebi apenas um papelzinho com alguns dados pessoais meus e o horário da minha entrada (tenho guardado até hoje: eram 13h05).

Em cinco minutos estávamos todos de volta à van. Mais uns trinta minutos na estrada e chegamos à estação de trem de Tiraspol. Era uma tarde cinzenta, com uma garoa que não se decidia entre molhar ou meramente chatear. O guia que contratei não havia chegado ainda e fui bisbilhotar o interior da estação. Estava completamente vazia. Achei tudo estranho, frio e inóspito – o prédio amplo parecia um local desativado.

O guia logo chegou. Chamava-se Valeriy, era um rapaz alto, moreno, que me pareceu o avesso do clichê do eslavo pálido e com feições de vilão de filmes de James Bond. Falava um inglês excelente, porque (como me contou depois) havia morado na Inglaterra, onde prosseguiu o curso de linguística que havia iniciado na Universidade de Tiraspol. Ele me cumprimentou com um aperto de mão forte e me recebeu já com uma pergunta: “Você vem de onde no Brasil, Belo Horizonte?” Na jaqueta jeans de Valeriy havia os logos de diversas bandas de metal, e foi ele próprio quem me explicou o motivo da sua pergunta: “Belo Horizonte é a terra do Sepultura. Mas gosto muito também do Angra”, disse, citando uma terceira banda brasileira, cujo nome eu nunca tinha ouvido falar.

Ele me perguntou se me importava em fazer o tour a pé. Apesar da garoa, achei até melhor. Mas disse que gostaria de almoçar antes. Valeriy me levou ao restaurante de um bom hotel, talvez 4 estrelas. Pedi ajuda para escolher meu prato e optei por um medalhão de frango com cogumelos e batatas, acompanhados de um molho de maionese que ranqueio entre os mais deliciosos que já provei. Também pedi um caneco grande de cerveja, o que me deixou mais calmo. Valeriy não comeu nada. Apenas tomou uma bebida vermelha, que até hoje não entendi se era um suco ou um chá (eu até perguntei o que era, mas estava tão incrédulo de estar tendo uma boa refeição em um local do mundo tão desaconselhado pelas embaixadas ocidentais que não prestei atenção na resposta).

Pouco a pouco, fui perguntando a ele o que realmente me interessava. Valeriy nasceu um pouco depois do fim da União Soviética, então minha curiosidade a respeito da vida em Tiraspol naquela época não pode ser sanada. “Eu gostaria de conversar com algumas pessoas da Transnístria, perguntar sobre suas vidas e o que acham da situação do país. Acha que seria viável?” perguntei. Ele me respondeu prontamente: “Melhor não.” Acrescentou apenas que as pessoas ali gostam de tranquilidade e, apesar das limitações, apreciam muito o local onde vivem. “São pessoas muito pacíficas”, ele definiu, talvez pensando no conflito com a Moldávia, ou talvez na guerra da Ucrânia com a Rússia, logo ali perto.

Resolvi entrar direto numa questão central: perguntei se ele se opunha à anexação da Transnístria pela Moldávia. “Na verdade, não. Mas desde que nós tenhamos o mesmo peso político no Parlamento do que o resto do país”, ele disse. “Uma coisa precisa ficar clara: nós da Transnístria não temos nenhum problema com as pessoas da Moldávia. Somos amigos e nunca, nesses anos todos, nos deixamos pautar pelas tensões em nível governamental.”

A herança da era soviética continua sólida em Tiraspol. É visível nos prédios ao estilo Khrushchyovka (ou comunistas), aquelas edificações pouco emperiquitadas com o objetivo de transmitir a ideia de sobriedade e antiburguesismo. Também é visível nos conjuntos habitacionais e nos nomes das ruas, que homenageiam Karl Marx, os revolucionários alemães Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, o herói do Exército Vermelho Vasily Chapayev e o escritor comunista Máximo Gorki, entre outros ilustres camaradas. Talvez a via mais bonita seja o arborizado Boulevard Gagarin, que homenageia o primeiro homem a ir para o espaço. A grande vedete tiraspolitana, porém, é mesmo Vladimir Lênin, que ganhou uma grande estátua estilizada, de braços abertos, como se fossem asas, diante do Parlamento do país. É apenas uma das três estátuas do líder da Revolução Russa na cidade.

Outro exemplo da russofilia transnístria, mas em registro pré-soviético, está na entrada do Parque Catarina. Ali reina, majestosa, uma estátua da homenageada por aquele recanto verde da cidade, a imperatriz Catarina, a Grande (1729-96), que estimulou consideravelmente o expansionismo russo, ao incluir a Ucrânia, a Bielorrússia e a Lituânia, entre outros territórios, ao seu já vasto império. E há ainda diversas igrejas em estilo ortodoxo pelas ruas da cidade, mas isso é comum em outros países do Leste.

Minha maior surpresa foi um monumento que avistei na entrada da Universidade de Tiraspol, que parecia a escultura de um garoto miúdo, de óculos redondos, com uma coruja ao lado. Ao me aproximar, não tive dúvidas. “É o Harry Potter!”, disse a Valeriy. “Sim, temos aqui essa estátua porque ele foi um fenômeno de leitura na Transnístria”, respondeu o guia, e continuou a explicação: “O personagem fomentou muitas crianças a terem o hábito de ler.” Lênin pode ser a inspiração da Transnístria para a entrada no mundo socialista, mas é Harry Potter que garante a entrada na universidade.

Esse acúmulo de nostalgias não impede Tiraspol de ser uma cidade relativamente conectada com a atualidade e apresentar alguns traços evidentes de que, afinal, faz parte do mundo capitalista. Nos cinemas, as atrações eram Furiosa, o novo filme da saga Mad Max, e Garfield – Fora de casa, a animação com o gato bochechudo. Há grande número de comércios com a marca Sheriff. É uma companhia criada por dois ex-membros da KGB, Viktor Gushan e Ilya Kazamaly, que foi constituindo a partir dos anos 1990 na Transnístria uma espécie de monopólio: o conglomerado Sheriff, além da rede de supermercados onipresente, possui numerosos negócios, como postos de gasolina, e é dono de um time de futebol local, o Sheriff Tiraspol. O nome do conglomerado certamente não foi escolhido ao acaso: a família Gushan e seus aliados dominam politicamente a região como se fossem xerifes.

Dias depois, no vagão do trem que me levava de Chisinau a Bucareste, pude conversar a respeito com Aleksander, gerente de um frigorífico moldavo de 30 e poucos anos. “O dono da rede Sheriff comanda a Transnístria”, disse Aleksander. “Nós, moldavos, também não temos absolutamente nada contra os transnístrios. E não nos opomos à reunificação dos países. Mas, se isso acontecer, certamente não será da forma como eles, da Transnístria, gostariam.” Ele se referia ao fato de que os moldavos rejeitam a ideia de ter em seu Parlamento políticos sob tutela da família Gushan.

Eu e o guia pegamos uma van bem compacta, que é o tipo de transporte mais usado na cidade, para ir até a cidade de Bendery (também conhecida como Bender, antigamente chamada de Tighina), a cerca de 20 minutos de Tiraspol. Algumas pessoas olhavam seus celulares, como em qualquer lugar do mundo capitalista, mas a maior parte delas tinha os olhos pregados nas janelas, mirando a paisagem lá fora. Todos permaneceram calados durante praticamente todo o nosso trajeto.

Muito parecida com a capital, Bendery tem cerca de 90 mil habitantes e seu grande atrativo turístico é uma enorme fortaleza do século XIX. Mas na cidade muitos monumentos têm conotação militar, talvez porque foi ali que se concentraram os principais confrontos com os moldavos em 1992. Um tanque de guerra exposto a céu aberto, com a bandeira da Transnístria, homenageia os mortos no conflito. Antes da Segunda Guerra, Bendery abrigava uma numerosa comunidade judaica, que chegou a ter doze sinagogas. Ainda hoje existe ali um memorial aos judeus exterminados pelos nazistas.

Bendery, a segunda maior cidade da Transnístria, tem vários monumentos de conotação bélica, incluindo tanques expostos em praça pública


Todo esse peso da história, inclusive a dominação soviética posterior, parecia ter se desmanchado no ar. Bendery e também Tiraspol foram duas das cidades mais calmas e sem riscos aparentes que já conheci. Durante toda a viagem, não tive razão nenhuma para ter medo. Não vi sinal de corrupção policial e, o que é espantoso, menos ainda da guerra na Ucrânia, a poucos quilômetros dali. Quando mencionei a Valeriy que estava achando injusta a fama de a Transnístria ser violenta, ele me respondeu com uma frase que entrou pelos meus ouvidos cariocas como um sabre cossaco: “Mas a fama do Rio de Janeiro também é péssima. Os lugares são assim.”

A garoa já havia se transformado em chuva miúda quando despedi-me de Valeriy e, às seis da tarde, tomei em Bendery a van que me levaria de volta diretamente a Chisinau, na Moldávia. Cansado, eu estava quase cochilando no veículo quando, logo após a reentrada em terras moldavas, ouvi um grito: “U.S.A.!” Era um dos três rapazes na van que falavam em espanhol entre si – e que foram os únicos turistas que eu vi na Transnístria naquela tarde. O sujeito parecia querer causar algum tipo de choque nos viajantes com aquele grito. Mas fui o único que realmente se assustou com o berro.

Foi a única manifestação vocal de relevo durante a viagem. A viagem correu tranquila, e na hora de descermos da van resolvi abordar o grupo de hispânicos. Eram mexicanos, e apesar de simpáticos comigo, mostraram-se um bocado desinteressados em manter uma interlocução mais longa. Contei que estava tenso antes de ir, mas que a Transnístria tinha me parecido muito tranquila. Perguntei o que tinham achado do local e um deles me respondeu: “É ok, mas gosto mais de Chisinau”, disse, como se comparasse uma maçã com uma laranja.

Flashes da viagem ainda hoje faíscam na minha mente. Um dos mais constantes é o da bandeira da Transnístria, hasteada em vários prédios da cidade. É esteticamente estranha: nas cores verde e vermelha em tons berrantes, traz estampada no alto do canto esquerdo a foice e o martelo em amarelo. Em Tiraspol, veem-se também muitas bandeiras russas afixadas em prédios públicos. “Essas bandeiras são usadas desde 2017, como símbolos de lealdade à Rússia”, explicou Andrey, o dono da agência de turismo. Uma estranha lealdade, porque a própria bandeira russa não exibe mais a foice e o martelo. Será que ele não estava querendo dizer “lealdade à União Soviética”?

Longe de mim especular sobre a personalidade e a situação da Transnístria, tendo passado lá apenas uma parte do dia e não sendo um especialista em geopolítica. Mas, na viagem de volta ao Brasil, também não me saía da cabeça esta questão: afinal de contas, o que de fato me levou a assumir alguns riscos prováveis e visitar um “país fantasma”?

O caráter “soviético” da região, tão apregoado pelos guias turísticos na internet, é meio decepcionante. Imaginei que, ao atravessar o Rio Dniestre, estaria passando por um portal do tempo que me transportaria a um lugar que tivesse escanteado os valores capitalistas. Definitivamente, não é o caso. O “bastião soviético” nada mais é que um slogan. Apesar da foice e do martelo em sua bandeira e dos bem guardados símbolos soviéticos nas ruas, a Transnístria me pareceu muito mais um bastião da Rússia atual. Mas não posso negar que foi ali, em meio à garoa e encostado na fronteira ucraniana, que me dei conta de que estamos de volta à Guerra Fria, embora de outro tipo. Não mais a guerra de capitalistas contra socialistas, mas agora a do imperialismo russo contra o imperialismo americano e seus aliados, ambos ameaçando novamente o mundo com suas armas nucleares. Foi assim que, pouco a pouco, a Transnístria foi ganhando para mim o aspecto de uma doce e tranquila fronteira da catástrofe.

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