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    Pablo Marçal em seu território favorito: a internet_____Reprodução/Instagram

vultos do voto

Palitos de fósforo

A política brasileira está repleta de casos de outsiders que incendiaram eleições e depois se apagaram rapidamente. Tudo indica que Marçal é mais um nessa caixinha

Antônio Sérgio Araújo Fernandes e Marco Antonio Carvalho Teixeira, especial para a piauí | 03 out 2024_08h31
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Estamos a três dias das eleições municipais. Na cidade mais importante da América Latina, na capital do estado mais pujante economicamente do país e com o quinto maior orçamento no país, superado apenas por federações como Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de ser o local onde mais se produz conhecimento científico, Pablo Marçal é o mais comentado dos candidatos a prefeito. Sabe-se muito sobre ele – desenvolve cursos, jornadas de motivação, já propôs escalada a uma montanha que deixou 32 pessoas presas em um temporal, criou uma maratona surpresa que resultou na morte de um funcionário e foi condenado por atuar em uma quadrilha que roubava correntistas de banco – e ao mesmo tempo sabe-se pouco (exatamente como chegou ao patrimônio de 169 milhões de reais declarados em seu registro de candidatura). É desmentido todo dia – disse que a mulher transferiu o título de eleitor para São Paulo, algo que a justiça eleitoral negou; afirmou que Donald Trump lhe enviou uma mensagem, e o ex-presidente americano também negou, e por aí vai).

Goiano de origem, mas não radicado em São Paulo, com passado nebuloso, não tem mostrado, nem nas entrevistas, nem nos debates, habilidade para lidar com as divergências, ao mesmo tempo que conseguiu fazer toda a conversa girar em torno dele. Quando vai para as redes sociais, não tem para ninguém: mesmo com as contas principais vetadas pela Justiça Eleitoral por remunerar o engajamento, algo proibido na disputa, construiu novos perfis que deixam os dos concorrentes no chinelo.

Sua estratégia até o momento se notabiliza por emular as características de um político da antipolítica.

As crises são espaços propícios para o surgimento de lideranças carismáticas com discurso demagogo que propõem soluções rápidas, fáceis e simples para problemas complexos. O Brasil não está em má fase econômica, mas ainda vive uma tensa polarização lapidada durante anos tempestuosos de Lava Jato e crise econômica, fora os atentados à democracia. Max Weber já alertava que tais lideranças se conectam com as massas pela relação afetiva criada pela expectativa salvacionista de seu discurso e perdem essa relação quando tal confiança se esvai. Se colocam acima dos partidos quando ingressam na política, acima das instituições quando assumem governos, personalizam as decisões governamentais e, se preciso, buscam alterar regras, cooptando a classe política e líderes de outros poderes da esfera estatal, para se manterem no Poder adotando posturas que podem levar o país a uma autocracia. Dá para reconhecer Marçal nessa descrição, mas também outros nomes, alguns de políticos de carteirinha disfarçados de outsiders, outros novatos nas urnas.

O empresário João Doria Junior, fenômeno na eleição de 2016, que o elegeu prefeito de São Paulo no primeiro turno, e depois emplacou como governador, é um ótimo exemplo do segundo grupo. Com ele, Marçal têm em comum a desenvoltura no marketing pessoal e o tino para comunicação. Se apresenta como “próspero”, que sempre trabalhou, e que conquistou tudo como um selfmade man. Para ele, tal como para Doria, o serviço público tem pouco valor e o governo reúne todos os problemas de ineficiência, não tendo nenhum receio de atropelar quem esteja à frente para fazer realizar seu projeto ou ambição de poder. O final da história é conhecido: Doria acabou caindo em desgraça diante dos eleitores ao rivalizar com Jair Bolsonaro e não se viabilizar como candidato do PSDB ao Palácio do Planalto, além de implodir a legenda internamente. Foi como um palito de fósforo, que acende rápido, para se apagar rapidamente em seguida.

É de Bolsonaro, que conseguiu a proeza de se eleger em 2018 como um candidato antissistema depois de sete mandatos de pura fisiologia como deputado federal, que ele parece ser o maior herdeiro. Marçal traz, até de maneira mais ostensiva, o discurso religioso. Se coloca como o Messias que propicia curas. Bolsonaro apenas repetia passagens bíblicas e deixava as orações e manifestações de fé mais enfáticas aos pastores que o cercavam, mas – justiça seja feita – não se tem notícia de que tenha tentado ressuscitar mortos em velório. A retórica violenta do ex-coach na relação com os seus adversários também o aproxima do ex-presidente, que chamou Lula de “pinguço” e “jumento”. Mas, por ser de uma outra geração, e mais jovem, Marçal utiliza-se de uma imagem cênica impactante para distribuir ofensas diretas ou subliminares, e argumentos pouco racionais ao tratar de problemas públicos. Ao longo da campanha, sugeriu criar um teleférico nas periferias para “dar mobilidade” e triplicar o efetivo da Guarda Municipal, sem dizer como executar a proposta.

Se a atuação dos governantes caracterizados pelo discurso da antipolítica é questionável, para dizer o mínimo, a permanência na política também é incógnita. Eles tendem a ter vida curta como protagonistas e, na maioria das vezes, do mesmo modo que surgem rápido, costumam submergir em igual velocidade, ao cair no isolamento político pelo tipo de ação que empregam, baseada sempre no confronto e na eliminação do adversário. Candidato do incipiente Partido da Reconstrução Nacional (PRN), Fernando Collor incendiou a campanha de 1989 se colocando como o bastião da honestidade e da modernização do país com um discurso que desqualificou os partidos e amaldiçoou parte importante das lideranças políticas da época com sua pose de moralizador. Resultado: foi cassado por corrupção, nunca mais recuperou o status de liderança nacional e ainda se viu diminuído como referência política no seu estado, apesar de duas eleições bem-sucedidas para o senado em 2006 e 2014. Em 2022, foi preterido por Renan Filho (MDB).

Doria ganhou rapidamente a pecha de traidor dentro do próprio partido por se colocar acima dos projetos políticos da legenda e obrigar lideranças políticas históricas do tucanato a buscar outra agremiação porque não se somavam às suas ambições individuais. A soma de ações baseadas no personalismo político e em projetos de poder vinculadas a ambição pessoal fez com que o tucano de ocasião colecionasse inimigos e se isolasse rapidamente. Outro personagem dessa lista é Sérgio Moro, que se notabilizou nacionalmente ao julgar os casos da Lava Jato, mas abandonou a toga para ser ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro. Foi escorraçado com um ano e quatro meses de governo. Elegeu-se senador pelo Paraná em 2022, mas o brilho de outrora junto à opinião pública e parte do eleitorado (inclusive à direita, onde está sua base) esvaiu-se significativamente.

O que Bolsonaro não é, como dito algumas linhas atrás, é um outsider. Ainda que se comportasse como tal, logo mostrou jogar bem com as regras do Centrão. Suas estratégias nos primeiros dois anos de governo foram de enfrentamento constante com a Câmara dos Deputados, mais especificamente com Rodrigo Maia, presidente da Casa, ancorado em uma coalizão à margem dos partidos e sustentada na bancada evangélica, nos militares e em representantes do agronegócio, tratando o restante da sociedade, e até mesmo dos demais poderes, como inimigos do seu governo. Com o decorrer da gestão, percebeu o limite de uma política baseada na exclusão do diálogo. Isso o levou a um segundo momento que foi representado por influenciar na ascensão de Arthur Lira à presidência da Câmara e de partidos à sua coalizão, como o PL, o PP e o Republicanos.

Apesar desse deslocamento para a política partidária, ele continuou governando para alguns e excluindo das ações e do discurso governamental quem pensava diferente. Apesar de sua elevada votação em 2022, tornou-se o primeiro presidente da República pós-1988 a não ser reeleito. E sua influência, agora, começa a ser revista, segundo dois representantes da cúpula do União Brasil. Em maio deste ano, ACM Neto, ex-governador da Bahia, afirmou em evento da Fundação FHC que “o candidato à direita em 2026 não pode ser refém do radicalismo” e que deve “furar a bolha e falar com o eleitorado de centro”. Em junho, Wilson Lima, governador do Amazonas, disse ao jornal O Globo que Bolsonaro “foi importante para reavivar a direita”, mas que a busca agora deve ser por um candidato menos radical.

Como uma esponja que suga o que está ao redor ou um filho que assimila aquilo que vê dentro de casa, Marçal sintetiza um pouco de cada um dos seus predecessores. Uma atualização da linhagem de representantes do discurso inerente à antipolítica. Traz consigo o discurso heróico de Collor, a ambição e personalismo de Doria e a automitificação de Jair Bolsonaro, que também usava Deus como escudo em seus discursos. Em seu desejo de se tornar prefeito de São Paulo, ele vem tropeçando na estratégia antipolítica que move sua campanha. Agride adversários, faz acusações sem provas e se coloca como um salvador. Tudo isso era muito cômodo quando as ações dele se resumiam a um território por ele dominado: a internet. Todavia, quando se apresentou ao debate público, acabou assustando a população e viu sua rejeição explodir. Potenciais aliados como o próprio Bolsonaro, que ensaiavam abandonar Ricardo Nunes para apoiá-lo, começaram a se distanciar e a criticá-lo de forma contundente. Marçal contraria uma tese que será colocada à prova neste fim de semana: a de que uma sociedade assustada com as implicações da violência com a qual se deu a polarização Lula x Bolsonaro e com a memória do 8 de janeiro muito presente tende a buscar moderação. Se isso acontecer, esse palito parecerá ainda mais curto e propenso a virar cinzas antes do segundo turno.

A ascensão de figuras como Marçal está alicerçada em fatores variados. As redes sociais exprimem o sentimento antissistema de modo muito intenso. A consequência disso é a colonização da política pelas plataformas sociais e redução do espaço e debate público, assim como da discussão política racional e respeitosa. Nas eleições legislativas, o sistema eleitoral brasileiro também age como fator de estímulo para nomes com esse perfil. O tamanho da bancada de parlamentares de cada partido depende da soma dos votos dados pelos eleitores individualmente aos seus candidatos e as suas respectivas legendas partidárias. Quanto maior o desempenho, mais se supera o quociente eleitoral, mais parlamentares são eleitos e mais volumosos serão os recursos provenientes dos Fundos Partidário e Eleitoral para a legenda. Como o melhor desempenho se traduz num negócio, os partidos se sentem estimulados a buscarem celebridades, sobretudo das redes sociais e das forças de segurança pública, na maioria das vezes sem nenhum traquejo político e incapazes de viverem pacificamente num ambiente diverso, para se tornarem seus “puxadores de voto”.

O cenário descrito acima tem consequências para a política brasileira. Uma das principais é o já precário debate programático, antes e depois do voto. Nos debates eleitorais, prevalece a versão do diálogo dos surdos, e no Congresso, o grito e o tumulto em busca da lacração. É uma situação em que todos perdem, pois uma política repleta de candidatos influencers, personalistas e supostamente antissistema nos deixa ainda mais longe de chegar a um mínimo de capacidade de tratar as questões mais essenciais. E notem que os problemas a serem resolvidos se tornam mais complexos e requerem consensos mínimos, como é o caso do meio ambiente, que este ano já nos deu duas situações dramáticas: a enchente do Rio Grande do Sul e os incêndios na maior parte do território nacional.

Publicado em 2011, o livro The Dictator’s Handbook: Why Bad Behavior is Almost Always Good Politics, de Bruce Bueno de Mesquita e Alastair Smith, revisita os governos ditatoriais do século XX e XXI na Europa, Ásia e África. Um ponto comum entre eles é o culto à personalidade que o tirano exerce, com um modo messiânico de afirmar-se antissistema. Voltando a Weber, isso ocorre quando a demagogia, atributo de políticos irresponsáveis, se sobrepõe ao carisma, atributo dos políticos de vocação. Políticos de vocação assumem riscos e responsabilidades pelos atos. Os políticos de vocação vivem “para” a política e não se locupletam na política, não vivem “da” política. Como muitos que terminam por alavancar negócios e carreiras pessoais a partir do interesse público na ocupação de um cargo. Diante do que já vimos até este momento na campanha paulistana e baseado no histórico do candidato, posicionar Marçal na história não é tarefa difícil.

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