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    Getúlio e seu ministério, em novembro de 1930. O terceiro, da direita para a esquerda, é Francisco Campos. Na época, era ministro da Educação, e em 1935 assumiu o cargo de Secretário de Educação do Distrito Federal Foto: Acervo da Escola de Ciências Sociais/CPDOC/FGV

anais do radicalismo

Deus e o diabo na universidade

Nos anos 1930, as raízes da cruzada da extrema direita pelo controle ideológico do ensino

André Jobim Martins, especial para a piauí | 23 out 2024_15h04
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Poucas pessoas sabem, hoje, quem foi Otávio de Faria. Menos gente ainda leu a Tragédia burguesa, ciclo de quinze romances que ele escreveu entre os anos 1930 e 1970. Alguns podem se lembrar de ter visto seu nome em algum relato sobre a juventude de Vinicius de Moraes, de quem ele foi amigo. Cinéfilos se recordarão de sua amizade com Mário Peixoto, o diretor do clássico Limite (1931), e sua pioneira atividade como cineclubista e crítico no Chaplin Clube, nos anos 1920. Para os que se interessam pela história das sexualidades desviantes, o nome também soa familiar. Otávio de Faria era gay, ou, como se dizia na época, “invertido”.

Lançada há décadas no ostracismo, a obra de Otávio de Faria ganhou recentemente uma oportunidade de redescoberta, mas apenas a parte ficcional. A ensaística, além de bolorenta, com seu catolicismo tradicionalista, é resolutamente fascista, ideologia da qual o intelectual e escritor foi um introdutor no Brasil.

A Editora Sétimo Selo tem reeditado desde 2021 os volumes da Tragédia burguesa. Sete deles já chegaram às livrarias: Mundos mortos (publicado originalmente em 1937), Os caminhos da vida (1939), O lodo das ruas (1942), O anjo de pedra (1944), Os renegados (1947), Os loucos (1952) e O senhor do mundo (1957). Da saga, ainda falta reeditar: O retrato da morte (1961), Ângela ou as areias do mundo (1964), A sombra de Deus (1966), O cavaleiro da Virgem (1972), O indigno (1976), O pássaro oculto (1979) e os dois últimos volumes, publicados postumamente: Atração e A montanheta (ambos de 1985). Otávio de Faria morreu em 1980, aos 72 anos.

Gostaria, neste texto, não de falar da Tragédia burguesa, mas da tragicomédia ideológica que envolveu a nomeação do jovem fascista Otávio de Faria como diretor de faculdade na recém-fundada Universidade do Distrito Federal (UDF), às vésperas do Estado Novo (o Rio de Janeiro era então a capital federal). A conjuntura política e cultural dos últimos anos dá uma estranha atualidade ao caso. Desde que surgiram movimentos como o “escola sem partido”, temos nos habituado à crítica conservadora à universidade, acusada pela extrema direita de ser um laboratório da “doutrinação esquerdista”, o que impediria a liberdade de pensamento.

Os antepassados ideológicos de Olavo de Carvalho, Abraham Weintraub e Ricardo Vélez Rodriguez atacavam a ideia mesma de liberdade no ensino, tida por engodo liberal destinado à superação pela marcha da história. Conseguiram suprimir, na UDF, o projeto de uma universidade orientada para a vida democrática, o que não surpreende, dada a tradição brasileira de “contrarrevolução permanente”.

O interessante está no que não conseguiram fazer. A resistência da sociedade constrangeu os elementos mais conservadores a renunciar ao projeto de converter a nascente instituição universitária em uma escola comprometida com ideias fascistas.

 

Filho de uma família rica e bem relacionada, Otávio de Faria nasceu no Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1908. Seus anos de formação coincidiram com a ascensão do intelectual católico Alceu Amoroso Lima, seu cunhado, de quem era uma espécie de pupilo em questões espirituais. Foi Amoroso Lima, homem disciplinado e de elevada erudição, que assumiu a liderança do laicato católico depois da morte, em 1928, do pensador Jackson Figueiredo – boêmio, atormentado e estridente.

O laicato católico era um movimento estreitamente ligado ao alto clero carioca e de cunho ferozmente reacionário. Dono de grande capital social, além de um considerável talento de jornalista, Amoroso Lima imprimiu ao movimento um espírito de ação e organização que lhe granjeou crescente influência cultural e política, irradiada a partir do Centro Dom Vital, instituição fundada por Figueiredo, e de sua publicação oficial, a revista A ordem.

Embora não encampasse integralmente o ideário católico como professado pela liderança do Centro Dom Vital, Faria formulou sua visão de mundo a partir desse mesmo repertório. Quando cursou a Faculdade Nacional de Direito, organizou com colegas o Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos (Caju), agremiação que, ressentida com o predomínio das ideias de esquerda, às vezes marxistas, entre os professores, se propunha a “levar o direito a sério”.

Do Centro Dom Vital participaram algumas figuras destinadas a carreiras importantes no Estado brasileiro, como San Tiago Dantas e Almir de Andrade. O primeiro se destacava pela habilidade oratória, enquanto Faria, que se expressava de viva voz com grande embaraço, se destacava no pensamento e na escrita. Feio, baixinho, tímido, sempre de cara amarrada e apegado a maneirismos e formalidades, não podia tirar vantagem das dimensões exteriores, corporais, da existência. Quando apareciam dificuldades no trato com as pessoas, preferia sempre a comunicação por cartas, às vezes longuíssimas.

Para entrar no Caju, era preciso defender uma “tese de candidatura”. A de Faria, dramaticamente intitulada A desordem no mundo moderno, identificava na obsessão de “liberdade a todo custo”, apregoada pelo Iluminismo e entronizada nas constituições políticas do Ocidente pela Revolução Francesa, a origem da “desordem” social de sua época. O argumento era típico do pensamento reacionário nascido entre os opositores da Revolução Francesa, como Joseph de Maistre: ao se descolar da liderança espiritual da Igreja Católica, o homem moderno se apaixonou por uma noção distorcida da liberdade. Sedutor a princípio, esse amor à liberdade é uma ideologia suicida. Seu prolongamento lógico e histórico, o liberalismo político, ao negar a autoridade espiritual da Igreja e a soberania absoluta do Estado, e ao afirmar a igualdade entre os homens e a competição como princípio organizador da sociedade, provocou a dissolução das almas e da sociedade.

Para Faria, a consequência lógica do pluralismo de ideias, com sua crença de que todas as opiniões são válidas e têm direito à expressão, é confusão e cinismo. A consequência política – com o Estado aberto à disputa entre facções rivais na forma da competição eleitoral e sujeito à alternância de poder – é a inação e a desagregação. A consequência econômica – o capitalismo – é igualmente antissocial, com o desamparo de uma classe trabalhadora condenada à pobreza e sempre a serviço de uma burguesia espiritualmente decaída.

O tipo característico desse mundo, o burguês – que não crê realmente em nada além da manutenção de uma vida confortável –, é o emblema de tudo que há de mais detestável na época moderna. Nas palavras de Léon Bloy, um escritor estimado por Faria, “o burguês é um porco que gostaria de morrer de velhice”. Desfazer, pela militância política e cultural, o domínio do burguês e suas ideias, restaurar um modo de vida permeado por um sentido de missão e heroísmo, era uma das principais frentes de ação do programa reacionário defendido por Faria.

 

Parte do que atraiu no estilo de Otávio de Faria, logo que ele despontou para a vida intelectual no Rio de Janeiro, foi a sua maneira particular de fazer o pensamento prosperar na complicação, no flerte com a contradição, mas sempre para alavancar decisões rígidas e inapeláveis.

Ainda que tivesse Machado de Assis como grande referência na literatura brasileira, era leitor de Proust e acompanhou com interesse o surgimento da vanguarda artística da Semana de Arte Moderna de 1922. Amava, entre as manifestações artísticas de sua época, sobretudo o cinema. Em um ensaio sobre a “posição do cinema”, escrito em 1931, quando estava com 23 anos, aplicou na crítica de arte a atitude conservadora que tinha com relação a mais ou menos tudo. Lamentou o advento do cinema falado (difundido a partir de 1927) e elogiou a resistência de Charles Chaplin – seu ídolo – ao uso da fala.

No mesmo ano de 1931, Faria publicou Maquiavel e o Brasil, seu primeiro e mais famoso ensaio político. A segunda estrofe do soneto “Octavio”, que Vinicius de Moraes dedicou ao amigo, descreve bem a disposição do livro: “(…) olha o mundo e o vê morrendo/Sob a opressão tirânica do mal/E como um passarinho vai correndo/escrever um tratado social.” Mesmo não se deixando convencer pela maior parte dos argumentos do livro do cunhado, Amoroso Lima escreveu na sua coluna de crítica literária em O Jornal que o livro era o “poema em prosa” de uma nova geração de jovens da elite, destinada a grandes feitos.

De redação ágil, ritmo vertiginoso e permeado por referências culturais populares e eruditas, o texto será comparado por mais de um crítico à vividez da experiência cinematográfica. Lido hoje, causa a impressão de ser não muito mais que uma apologia embolorada do fascismo italiano, a partir de paráfrases e citações diretas de um de seus principais teóricos, Alfredo Rocco, acompanhada de uma análise da conjuntura política brasileira repleta de lugares-comuns e em boa parte derivada de outro livro que marcou sua época, o Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado. Isso tudo supostamente embasado em uma interpretação da obra de Maquiavel, de quem Otávio de Faria extrai a ideia-força do livro: “O homem não presta – é preciso contê-lo.”

Para conter o homem brasileiro, degradado por séculos de relaxamento espiritual manifestado nas principais características da sociedade – a mestiçagem, a libertinagem, a corrupção generalizada –, seria preciso um Mussolini brasileiro, capaz de impor pela força da autoridade e do exemplo uma nova ordem. Enquanto isso não acontecesse, continuaria a grassar a anarquia espiritual, a ação moral e intelectual do “homossexualismo moderno”, a progressiva “intercomunicação entre os sexos de que resultou e está resultando uma indistinção geral”.

Tudo isso é muito reminiscente daquilo que, desde meados da década passada, alguns analistas chamam de “direita radical” ou “extrema direita” brasileira. Um ponto, porém, que diferencia Maquiavel e o Brasil do comum dos reacionários atuais, é a grande expectativa que o livro deposita no poder edificador das universidades. Para “civilizar”, não toda a população, mas aqueles que estivessem “em estado de compreender”, a instituição-chave seria a universidade – não uma mera “fábrica de diplomas”, como vinham sendo as instituições de ensino superior brasileiras, formadoras de “maus médicos e maus engenheiros, péssimos advogados e péssimos arquitetos”, mas o lugar “de onde o indivíduo comum possa sair um homem formado para a vida”.

Pode parecer estranho, mas, nessa época, tanto esquerda como direita encaravam a educação como uma área de importância suprema na vida nacional – era um tempo em que se acreditava sinceramente na capacidade de realizar utopias, e de todos os lados pensava-se que a educação tinha um papel importante em plasmar o futuro sonhado. A atenção dada pelos jornais a assuntos da educação prova que o tema comandava um apelo existencial para todo o público leitor. Também mostra que a política educacional era uma das maneiras que os governos tinham de comunicar à sociedade uma visão de longo prazo do país.

Essa era uma característica da gestão modernizante, embora ideologicamente ambígua, de Getúlio Vargas, que oscilou entre diferentes projetos ao longo de sua Presidência, atitude que refletiu na sua política de educação.

 

Gustavo Capanema, ministro da Educação e da Saúde Pública entre 1934 e 1945, é a figura associada geralmente à formulação de uma política para a área no primeiro governo Vargas (1930-1945). Mas Francisco Campos, titular da mesma pasta entre 1930 e 1932, teve influência comparável no setor.

Campos vinha de uma carreira promissora na política mineira, tendo sido responsável por uma reforma educacional que serviria de modelo à que implantou ao chegar ao governo federal. Vestia ternos de linho bem cortados e, até a meia-idade, teve aspecto agradável e bonachão, com um rosto de protuberâncias arredondadas e olhos inteligentes. Em abril de 1964, prestará à ditadura militar seus derradeiros serviços de constitucionalista autoritário, redigindo o AI-1. Sua árvore genealógica, entrelaçada com as de outros figurões mineiros do período, como Capanema e os Melo Franco, podia ser remontada ao bandeirante que fundou a cidade de Pitangui, em Minas Gerais. Político escorregadio e intelectual sofisticado, era agradável no trato pessoal e cultivava em público uma atitude de cínico divertido e um pouco atrapalhado.

Pedro Nava, que compôs um punhado de frases lapidares sobre “o nosso Chico Campos” espalhadas pelas suas memórias, descreve-o como “todo nietzscheano”, “libertado no mundo pela vontade”, mas oscilante entre a disposição que mantinha em seu apartamento de Copacabana, onde “não acreditava em nada, absolutamente nada”, e outra, que o assaltava na noite mineira, quando tinha “medo que lhe aparecesse [no caminho] um trem…”. Essa era, porém, uma fachada habilidosamente construída e que dissimulava um caráter pautado por algumas poucas mas firmes convicções do teor mais tenebroso. É outra vez Pedro Nava quem lembra, depois de caracterizá-lo como um dos poucos estadistas inteligentes de sua época, a “frase estarrecedora” de Campos, de que “governar é prender”. Outra, que Nava cita na sequência: “O povo não precisa de governo, precisa é de curatela.” Campos deve ter gostado quando leu, no livro de Otávio de Faria sobre Maquiavel, que “o homem não presta”, e que era preciso “contê-lo”. Também não lhe deve ter escapado o interesse do jovem autor pela universidade.

Em política educacional, Campos inicialmente se inspirou, pelo menos em parte, no que havia de mais moderno e progressista em termos de pedagogia – a filosofia da educação do americano John Dewey (1859-1952). Expoente do chamado “pragmatismo” filosófico, Dewey e seus discípulos (entre os quais, o educador baiano Anísio Teixeira, seu aluno na Universidade de Columbia) propunham uma compreensão abrangente da educação, entendendo-a como a forma pela qual as sociedades se reproduzem. Apostavam no poder transformador da experiência de sala de aula, não como mera transmissão de conhecimentos, mas como forma mais autônoma, visando a emancipação do indivíduo do controle familiar e religioso. Para Dewey, a educação era a base a partir da qual se poderia transformar e democratizar a sociedade. Diante do caráter antiquado e acanhado das instituições educacionais brasileiras, não é inteiramente estranho que tal pedagogia atraísse espíritos de tendência modernizante, embora de inclinação autoritária, como Campos.

Uma das primeiras medidas de sua política educacional já indicava que o compromisso com esse ideário progressista pedia adaptações ao contexto brasileiro que desafiavam os próprios fundamentos da teoria de Dewey. Em 1931, o governo Vargas decretou, depois de quatro décadas de proibição, a volta do ensino religioso. Sem estar completamente comprometido com as pautas católicas, Campos encontrava uma maneira de estabelecer credenciais do governo junto à Igreja e ao influente laicato, ao mesmo tempo em que marcava uma diferença em relação à chamada República Velha. Deslaicizar a política era uma das características marcadamente “novas” do regime que se apresentava então como a Nova República. A Igreja e seus militantes aliados tinham nesse decreto a sua maior vitória política desde 1889.

Em 1940, já Ministro da Justiça, depois de ter redigido a constituição autoritária de 1937 e ser reconhecido como o cérebro da ditadura varguista, Campos publicará a coletânea de seus discursos no livro Educação e cultura. Verdadeira montanha-russa ideológica, a obra parece refletir o despudor de quem pensa gozar de um prestígio inabalável, ou então da incapacidade interpretativa de seus leitores. Textos que apregoam a autonomia no processo de aprendizagem, que poderiam ter sido escritos por Dewey ou Anísio Teixeira, foram publicados ao lado de discursos sobre os “valores espirituais”, que atacam falsidade das doutrinas pedagógicas liberais, como a liberdade de cátedra e o ensino laico, condenando a exposição da sociedade ao materialismo vazio e suicida da sociedade de mercado e do perigo bolchevique.

A repercussão da Intentona Comunista, em novembro de 1935, atingiu em cheio a política educacional no Brasil. E significou o rompimento do governo federal com os laços que ainda tinha com o grupo de pedagogos da Escola Nova, liderado no Rio de Janeiro por Anísio Teixeira, secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal (então o Rio de Janeiro), e o prefeito Pedro Ernesto. Suspeito de envolvimento no levante comunista, Teixeira entregou o cargo para aliviar a pressão sobre o prefeito. Também suspeito, Pedro Ernesto, para sobreviver politicamente, nomeou Francisco Campos no lugar de Teixeira.

Campos estava convencido de que, na impossibilidade política de usar os quadros da Escola Nova, chegara o momento de entregar parte importante da política da educação a quadros alinhados à direita católica, movimento no qual era acompanhado pelo ministro Gustavo Capanema. Sem cargo oficial de destaque, Alceu Amoroso Lima consolidava, nessa altura, uma posição de eminência parda na política educacional.

 

A joia da coroa da pasta da educação da capital, que tinha se tornado uma espécie de vitrine política do getulismo, com orçamento consideravelmente aumentado, era a Universidade do Distrito Federal (UDF), criada em 1935. Seria a primeira universidade de fato na cidade. A Universidade do Rio de Janeiro, fundada em 1920, era apenas uma administração comum de várias faculdades autônomas, sem um projeto pedagógico centralizado ou produção rotinizada de pesquisa.

De modo semelhante ao que se dava, ao mesmo tempo, na Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934, Anísio Teixeira contratara vários prestigiados professores franceses para montar os departamentos da UDF, que, segundo alguns historiadores da educação, tinha um desenho mais moderno, democrático e interdisciplinar do que sua contraparte paulista, na qual atuava o também escola-novista Fernando de Azevedo. Mas, situada na capital do país, debaixo do nariz de um governo que fazia uma decisiva inflexão autoritária, a universidade estava destinada a um grau de ingerência política de que a instituição vinculada ao governo paulista estava protegida. Isso seria fatal à UDF.

Desde antes da reviravolta de novembro de 1935, Amoroso Lima tentava convencer Capanema de que a UDF era um perigoso foco de irradiação comunista e anticristã e precisava ser vigiada e controlada de perto pelo governo federal. Os acontecimentos que se seguiram imediatamente à destituição de Anísio Teixeira e do reitor Afrânio Peixoto (outro cunhado de Otávio de Faria) constituem um caso notável de ofensiva reacionária, rechaçada, com sucesso parcial, pela ação quixotesca de um indivíduo: o novo reitor Miguel Ozório de Almeida, que se obstinou, em seu brevíssimo mandato, em barrar uma ação do diretor da Faculdade de Filosofia e Letras, Otávio de Faria, também recém-nomeado por Francisco Campos, em seguida ao expurgo dos “bolchevistas” na UDF.

Depois de ser afastado da reitoria, Ozório publicou uma série estridente de artigos em O Jornal, de Assis Chateaubriand – veículo de tendência governista, mas, como bom jornal, ávido por polêmicas –, contando as conversas privadas que teve com Otávio de Faria e Francisco Campos. As igualmente agressivas respostas de Faria foram publicadas pelo mesmo jornal, atacando o “insaciável exibicionismo” de Ozório e chamando-o de “interminável folhetinista”.

Homem alto, de cabelos cheios e alourados, barba e bigodes pontudos e olhos azul-claros, Ozório passava a impressão, pelas fotografias que dele se conservaram, de levar uma existência superior à dos mortais. Seu aspecto era olímpico, ou, se o observador assim estivesse predisposto, lembrava “o comum das imagens que representam o Cristo”, como escreveu o católico Otávio de Faria numa das tiradas finais da polêmica que travou com Ozório na imprensa. Vaidoso, devia mesmo cultivar essa imagem, ao lado de certa aura de polímata. Fisiologista de profissão, orgulhava-se de suas habilidades de pianista e tinha pretensões literárias, tendo escrito até um “romance científico”.

Ozório foi um cientista importante. Em 1919, foi convidado por Carlos Chagas para atuar na seção de fisiologia do Instituto Oswaldo Cruz, onde realizou pesquisas sobre o tônus nervoso, a epilepsia e a fisiologia do labirinto. Também escreveu obras de cunho histórico e de divulgação científica. Na UDF, antes de ser nomeado reitor, lecionava filosofia da ciência. Contra explicações de cunho racial, então influentes, atribuía o atraso da ciência em países como o Brasil a fatores culturais, como o bacharelismo, o foco puramente profissional do ensino superior e uma concepção utilitária de ciência. Era um proponente da pesquisa autônoma e desinteressada como motor do avanço científico. Anos depois, ajudará a elaborar para a Unesco o projeto de uma História da ciência e da civilização.

A julgar pelo fato de ter nomeado simultaneamente Ozório para a reitoria e Faria para a direção da Faculdade de Filosofia e Letras, parece que o plano de Francisco Campos era colocar no primeiro cargo alguém que não tivesse grandes pretensões políticas fora do mundo acadêmico e científico, e concentrar as intervenções de cunho mais militante e doutrinário nas direções das escolas, especialmente naquelas destinadas a formar os quadros intelectuais que comporiam a elite intelectual e cultural – as escolas de economia e direito, além das de filosofia e letras (a primeira também entregue, interinamente, a Otávio de Faria). Campos parece não ter compreendido, porém, que a medalha do desinteresse político de Ozório tinha como reverso um compromisso inegociável com a liberdade de consciência e com a autonomia científica como bases da universidade.

Na primeira conversa que teve com o novo reitor, Campos destacou a importância do cargo que assumia, que só aumentava diante da crise pela qual passava a UDF, fazendo-lhe a cortesia de perguntar se mantinha a indicação de Otávio de Faria para a Escola de Filosofia e Letras. Mal conhecendo o escritor, Ozório disse que aceitava. Campos mencionou então, sem entrar em maiores detalhes, a “questão dos professores franceses” contratados por Afrânio Peixoto e que ainda nem haviam chegado ao Rio naquele turbulento final de 1935.

Na cerimônia de posse, em 30 de dezembro de 1935, deu-se uma cena constrangedora. Ozório proferiu um discurso curto e protocolar, sem apresentar nenhum programa e defendendo a continuidade dos trabalhos normais da universidade. Já Faria falou longamente sobre a falência e a vacuidade espiritual do utilitarismo da “civilização americana” (um ataque velado a Anísio Teixeira e aos escola-novistas, discípulos de Dewey) e da “civilização marxista”. Também exaltou os “valores espirituais”, “sem os quais o homem rui por terra desorganizado e descentralizado, entregue à anarquia”. Na ocasião, houve quem perguntasse reservadamente a Faria, que caracterizou depois o próprio discurso como “em todos os pontos violentamente em contradição” com o de Ozório, qual dos dois teria de pedir demissão.

Um mês depois, Ozório recebeu de Faria um relatório que encomendara sobre a situação da Escola de Filosofia e Letras, um texto “vago, impreciso e escrito em estilo bastante estranho”, na visão do reitor. Uma frase é bem ilustrativa: “Entendemos que essa Escola deve ser essencialmente dirigida e que é especialmente nas seções de Filosofia e Letras que poderemos influir de modo mais decisivo.” Uma escola “essencialmente dirigida”, no estilo críptico do jovem fascista, queria dizer que devia estar comprometida com uma direção, tanto no sentido institucional como no mais amplo, filosófico, de dirigir os espíritos da juventude num sentido construtivo e determinado, contra a desorientação dissolvente do pluralismo da universidade liberal.

Talvez Ozório não compreendesse mesmo o dialeto reacionário no qual Faria redigira seu relatório, mas pelo menos pressentia que o diretor queria fazer da faculdade uma instituição comprometida com uma doutrina muito particular. Estava claro que a “direção” imaginada por Faria tinha como objetivo a “formação cristã, nacionalista, tradicionalista, antimarxista”, o que, na visão de Ozório, valia o mesmo que transformar a UDF em um “instituto fascista”.

Havia, porém, uma dificuldade para Faria: era preciso decidir o que fazer com os professores franceses, cujos contratos não podiam ser rescindidos, sob pena de causar um incidente diplomático, para não falar na repercussão negativa na alta sociedade carioca, amplamente francófila. Não sendo possível mandá-los embora, Faria estava determinado a pelo menos neutralizar a influência que os franceses, peça-chave no projeto da UDF, poderiam ter na vida universitária. “São perigosos”, escreveu a Francisco Campos. “Não por eles próprios, pois não sei se tanto valem, mas pela nossa geral falta de cultura e pela desordem de ideias reinante entre nós.” Seriam até menos perigosos se fossem todos comunistas. O pluralismo de perspectivas, que na visão reacionária significava anarquia espiritual, é que era o pior dos mundos.

 

Ozório decidiu chamar Faria para uma “longa conversação”, ocorrida em 29 de janeiro de 1936, na qual se empenhou em dissuadi-lo de seu plano de suprimir os professores estrangeiros do dia a dia da Faculdade de Filosofia. Faria insistiu no “baixo nível cultural” dos alunos como justificativa para suas medidas. Sinceramente sensível ao mérito da argumentação que o diretor empregava cinicamente para ocultar seus verdadeiros propósitos, Ozório aceitou a contratação de professores brasileiros, mas não como substitutos, e sim como assistentes dos franceses, podendo dar “aulas preparatórias” por indicação dos professores titulares, “preenchendo lacunas”.

No dia seguinte, percebendo que não se saía muito bem nos debates presenciais com o reitor, Faria recorreu, para reiterar e fortalecer seus pontos de vista, à escrita de uma carta. Nela, como fará várias outras vezes, insinua que, por mais que estivesse hierarquicamente abaixo do reitor, era Ozório quem devia ceder na questão, pois seus planos para a Faculdade de Filosofia eram simplesmente a tradução do pensamento do “dr. Campos”. Ou seja, conseguir um “mínimo vital” de orientação para que os alunos pudessem se formar longe de confusões doutrinárias nocivas a espíritos ainda não formados. Isso dependia, insistiu o diretor, na colocação de professores brasileiros à frente dos cursos regulares, com o que os franceses deixariam de ser “perigosos” e “inúteis”, “para valerem o que realmente valem por suas qualidades”.

Ozório escreveu de volta, ironizando o desapreço do jovem subordinado pelas “conversações de viva voce”, propondo então uma troca de cartas, na qual Faria pudesse “desvendar o seu pensamento”. Sobre a questão do desencontro entre as orientações dos professores franceses, Ozório se fez de desentendido: “A que orientação se refere o senhor? [Charles] Blondel é um psicólogo, [Pierre] Deffontaines é geógrafo. Trabalham em domínios inteiramente diferentes. Se se trata de orientação científica, parece-me que seria sem sentido indagar se eles têm ou não a mesma orientação… Como o que pedimos a esses homens é que ensinem do melhor modo possível as suas matérias, não compreendo sua frase e não sei de que misteriosa orientação extracientífica ou mesmo extrauniversitária fala o senhor.” O fim da carta é ríspido: “Assiste-me o direito de conhecer integralmente suas ideias e seus pensamentos acerca da tarefa que lhe é confiada, de modo a ajuizar da orientação que o senhor pretende dar à Escola, ponto esse ainda inteiramente obscuro senão misterioso para mim.”

Ozório conseguiu o que queria. Três dias depois, recebia uma longa missiva, na qual, em tom já irritado, o diretor desvendava seu pensamento.

Otávio de Faria começa declarando “espanto” diante da suspeita de que ele estaria encobrindo o conteúdo da “orientação” e “direção” que pretendia imprimir à Escola de Filosofia, um conteúdo de direita, em “reação inequívoca” à orientação da gestão anterior, a “orientação de esquerda do sr. Anísio Teixeira”, uma reação “contra toda uma série de tendências destruidoras antinacionalistas e anticristãs que tinham preponderado debaixo da orientação anterior”.

Faria convidava Ozório, se quisesse mesmo “conhecer integralmente” seu pensamento, a ler seus dois livros “’fascistas’, como se costuma dizer” (Maquiavel e o Brasil e Destino do socialismo). Coroando a insinuação já bastante crua de que era o reitor, e não ele, quem devia parar de criar caso e entrar na linha, Faria declara que não podia supor que Ozório “desconhecesse ainda a orientação inequivocamente proclamada do sr. Secretário da Educação [Francisco Campos] e os fatos notórios que o levaram à posição que ocupa, acompanhado pela simpatia e pelo aplauso de católicos, integralistas e fascistas”.

Era justamente por ser fascista que fora convidado ao cargo pelo “nosso amigo em comum Augusto Frederico Schmidt”. E, petulante, lembrava que seu ideário se chocava diretamente com os “ideais comuns da ‘cultura pura’ e outros sonhos ingênuos de tempos idos” em que o antiquado reitor ainda acreditava. Respondendo à pergunta irônica de Ozório, Faria condensa lapidarmente num par de frases o pânico moral que presidia a sua pedagogia fascista e que fundamentava seu agora explícito intento de neutralizar a influência dos professores franceses: “Hoje não se permite mais a ninguém a ingenuidade de acreditar que os professores de geografia só ensinem geografia, e os de literatura só literatura, mesmo sendo eles franceses e mesmo não querendo influir fora da sua zona própria. Hoje já não temos mais o direito de ignorar que todas essas coisas se prendem e que as menores frases contêm afirmações decisivas, capazes de desorientar ou de salvar.”

De posse da carta, Ozório se convenceu de que, num mundo ideal, o melhor seria remover o diretor da Escola de Filosofia, mas que convinha, por ora, evitar nova crise na universidade. Remeteu, em 4 de fevereiro, mais uma carta, na qual, ironizando a sugestão de que sua crença na “cultura pura” seria um ideal de tempos idos, afetava total ignorância de assuntos políticos. “Saber, por exemplo, que o sr. tem determinadas ideias políticas, que o sr. tem um programa a cumprir, pelo qual o sr. se bate, coisas públicas e notórias, teria sido interessante, mas talvez me impedido de fazer algumas experiências em rãs ou cobaias, o que para mim é muito mais interessante. Penitencio-me de muito bom grado, meu caro diretor, e espero que o filósofo e homem de letras que dirige a Escola de Filosofia e Letras perdoe ao fisiologista que dirige a Universidade essas grandes lacunas de sua formação intelectual.”

E explicou que a orientação declaradamente fascista de Faria era “absolutamente inadmissível” para um reitor que, como ele, pretendia manter a universidade “inteiramente alheia às questões políticas, sejam quais forem suas cores”. Sustentou ainda que transformar as escolas em “viveiros de sistemáticos partidários”, como desejava Faria, seria um “crime de lesa-espírito”, resultado da “absoluta incompreensão de todos os problemas fundamentais do ensino e da cultura humana”. Depois dessa declaração de princípios, solicitou ao diretor um “projeto de organização dos cursos dos professores franceses”.

Em resposta, Ozório recebeu a própria carta de volta, acompanhada de um bilhete que a proclamava “escrita em tais termos que só admitem essa resposta”. O reitor deixou passarem quatro dias para que o jovem diretor refletisse se queria mesmo continuar nessa toada, ao final dos quais mandou chamá-lo ao seu gabinete. Recebeu novo bilhete: “Depois de ter recebido sua carta do dia 4 corrente, considero impossível qualquer entendimento entre nós.”

Era um sábado. O reitor deu então 48 horas, isto é, até segunda-feira, para que o diretor apresentasse seu pedido de exoneração. Nada tendo recebido, escreveu ao secretário da Educação explicando o ocorrido. Na quarta, dia 12 de fevereiro, Ozório foi chamado por Francisco Campos à prefeitura. O secretário tentou explicar ao reitor o bizarro comportamento de Faria, que teria lhe explicado sua posição. Em certo momento, Campos desatou a rir. Achou engraçado o fato de Faria que se recusava a encontrar Ozório porque estava com “medo”. Não era justo, portanto, esperar dele que se dignasse a um encontro com o reitor. Um pouco contrariado, Ozório concordou em receber em mãos do diretor, em seu gabinete, o “plano definitivo” de organização dos cursos dos professores franceses na Faculdade de Filosofia.

Em 17 de fevereiro, segunda-feira, Faria apareceu na reitoria da UDF empunhando o plano solicitado. Era mais ou menos a mesma coisa que já tinha exposto mais de uma vez, o que Ozório considerou uma afronta. Furioso, despachou Faria porta afora, diante de várias testemunhas, entre elas o escritor Cornélio Penna, diretor da Escola de Artes. O vexame deixou Faria sumamente injuriado. A partir desse momento, o reitor passou a tratar do caso com Francisco Campos.

No dia 20, quinta-feira, Augusto Frederico Schmidt e Francisco Campos encontraram Faria num café do Centro do Rio. Campos assegurou a Faria que a questão da reitoria era contornável. Ele tentava convencer o reitor a ceder, mas era difícil. No mesmo dia, tarde da noite, “tresnoitado e tendo que acordar cedo”, Faria escreveu a Vinicius de Moraes relatando o ocorrido e pintando um quadro de “desânimo e quase desvario”. “Não sei o que faça”, escreve, completando: “Too hard!” Não é fácil saber com quanto entusiasmo Vinicius esposava os ideais políticos e pedagógicos de Faria, ou se simplesmente queria um emprego estável na universidade, talvez em um curso de literatura brasileira (Faria vinha tentando arranjar um emprego na UDF para Vinícius desde que seu cunhado Afrânio Peixoto era reitor).

Se Campos achava tudo isso normal ou não, também não é possível saber, mas o fato é que ele parece nunca ter deixado de tratar Faria com estranha deferência – compreensível, talvez, pela posição brilhante que o jovem intelectual ocupava na sociedade carioca. Campos evitou até onde pôde remover Ozório da reitoria, mesmo diante da crise, tentando manter aparências de normalidade numa universidade que acabara de ter a imagem pública prejudicada pelas demissões recentes. A estratégia de Campos era, com cada vez menos sutileza, fazer Ozório entender que a estima de que gozava na secretaria era bem menor do que a de Faria, na esperança de que ele se fartasse de toda a empulhação do caso e liberasse o caminho para as intervenções do diretor na Faculdade de Filosofia, ou pedisse demissão – mas os princípios, ou a vaidade de Ozório (provavelmente os dois), não permitiram que ele se prestasse a tanto.

Já Faria, na intimidade, parecia admirar a eficiência das maquinações políticas de Francisco Campos, mas não tinha a melhor das opiniões sobre ele. Na carta que escreveu a Vinicius, endossa com gosto a imagem jocosa e nada lisonjeira com que o amigo o descrevera. “Você diz bem”, escreve Faria ao poeta: “Satanás. Satanás fingindo de palhaço.” A facécia do jovem ainda muito influenciado pelo catolicismo talvez não fosse assim tão ofensiva para o sistema de crenças e valores, por assim dizer, do político mineiro. Num dos discursos pedagógicos recolhidos no seu livro Educação e cultura, Campos cita, em alemão (não traduzido), versos que, no Fausto de Goethe, saem da boca de Mefistófeles, o demônio astucioso e galhofeiro com quem ele devia mesmo ter certa identificação.

 

Faria não largou a direção da Escola. Enquanto isso, o reitor continuava determinado a suprimir a sua “nefasta influência”. Propôs uma solução administrativa que preservava, em alguma medida, uma aparência de normalidade: o diretor continuaria no cargo, mas as questões de planejamento e projeto pedagógico da Escola de Filosofia e Letras seriam diretamente tratadas pela reitoria, ficando com Faria o expediente administrativo. Em 9 de março, Ozório recorreu a uma medida mais extrema: suspendeu Faria da direção da Faculdade de Filosofia por quinze dias, enviando, ato contínuo, um ofício ao secretário:

Sr. Secretário, o sr. Dr. Otávio de Faria sobejamente demonstra ser de todo incapaz de dirigir a Escola de Filosofia e Letras. Sem a menor compreensão da alta cultura filosófica e literária, sem ideias claras sobre a função de uma escola superior, sem o sentimento de respeito a contratos assinados e à palavra dada, disposto a transformar a Faculdade sob sua orientação em centro de ação e propaganda políticas e de acordo com suas ideias partidárias, preparado para levar a missão universitária francesa, nas vésperas de sua chegada, a um irremediável desastre, criando para a Universidade e para o país, os mais sérios e alarmantes embaraços, sem a menor noção de civilidade, cortesia e normas universitárias e, acima de tudo, convencido de que se pode permitir resoluções como a de suspender suas relações com o Reitor, seu superior hierárquico, o dr. Otávio de Faria não deve e não pode, em minha opinião, mais permanecer à frente dos destinos que atualmente dirige.

Ozório finalmente ultrapassara os limites do que Campos considerava aceitável. Ao receber o bilhete, o secretário chamou o reitor para se explicar. Ao final, Ozório deixou claro: ou saía o diretor, ou saía ele, mas o secretário teria que demiti-lo. Foi então que, a se levar em conta o relato de Ozório, Francisco Campos revelou algo que não sabia: Ozório nunca fora o reitor titular, e sim reitor em exercício. Havia sido convidado para reitor, mas o ato de nomeação foi para vice-reitor. Não era preciso demiti-lo, apenas removê-lo da posição que ocupava interinamente no lugar do próprio Campos, que então comunicava que retornaria ao cargo imediatamente. Ozório voltou, então, para seu piano, seus livros e as rãs de seu laboratório de fisiologia em Manguinhos.

Tudo faria supor que, com isso, Faria retornaria à direção da faculdade e implementaria, finalmente, seu plano. Não voltou. Insistiu no pedido de exoneração por “motivos de saúde”. Era mentira. No brevíssimo perfil biográfico de Otávio de Faria composto para a antologia Escritores brasileiros contemporâneos, de 1964, Renard Perez escreve algo que deve ter ouvido do próprio escritor, nessa altura mais conhecido por seus vários romances: “Durante três meses, em 1936, foi diretor da Faculdade de Filosofia da UDF, mas não se adaptou ao cargo e pediu demissão.” A sua manifesta inabilidade política não abalou a estima de Francisco Campos pelo jovem ideólogo fascista. Enquanto Ozório expunha o caso na série estridente de artigos que serviu de fonte principal a este relato, Campos fez publicar, no mesmo O Jornal, uma carta aberta em que prestava solidariedade e oferecia a Faria seu cargo de volta.

Faria nunca mais voltará à vida pública e viverá, meio recluso, em meio à escrita da sua interminável e atormentada Tragédia burguesa. Será substituído na direção da Faculdade de Filosofia e Letras por Prudente de Moraes Neto, crítico literário de inclinações políticas liberais, que escrevera, sobre o Maquiavel e o Brasil, o primeiro livro de Faria, que era “tão constantemente mal escrito que dá a impressão de ser uma tradução errada do francês”. Pouco depois, chegarão os professores franceses, recebidos em comitiva composta pelo embaixador da França e, entre outros professores da UDF, por Miguel Ozório, já sem cargo administrativo, mas ainda professor. Prudente indicará, para assistente de um desses franceses, Henri Tronchon, o seu amigo Sérgio Buarque de Holanda, que terá na UDF seu primeiro emprego como professor na cadeira de literatura.

A partir de 1936, a UDF foi descaracterizada em ritmo acelerado até 1939, quando suas faculdades se incorporaram à Universidade do Brasil, criada em 1937, sob controle direto do governo federal. Nesse meio tempo, ela chegou a ter como reitor Alceu Amoroso Lima. Em seu discurso de posse, Amoroso Lima disse que a universidade estava destinada a um papel central na restauração de um ideal social “aristocrático”. Ele tentará edulcorar seu passado reacionário com uma empáfia desconcertante na longa entrevista biográfica que leva o título cabotino de Memórias improvisadas. Sobre as divergências passadas com Anísio Teixeira e o grupo da Escola Nova, dirá em 1973 o velho Amoroso Lima, já então convertido em crítico da ditadura militar: “Assim como a Revolução de 30 me separou de Anísio Teixeira, que deixava a Igreja Católica quando eu nela ingressava, a de 64 terminaria por nos reunir, embora na verdade tenha sido a experiência e a meditação que acabaram por nos aproximar. Compreendemos ambos que a verdade é muito mais complexa e acolhedora que os sectarismos.”

A equiparação um tanto exótica entre os “sectarismos” de ambos remete ao uso reiterado do termo “sectário” por Amoroso Lima, em textos de A ordem e cartas a Capanema, em ataques virulentos a Teixeira e aos escola-novistas, por sua defesa da educação livre da ingerência religiosa. Depois de ter ajudado a destruir a UDF, Amoroso Lima será importante na criação de outra importante instituição de ensino, a PUC-Rio.

Por vias tortas, o imbroglio da UDF acabará rendendo a Vinicius de Moraes um emprego, mesmo que não como professor de letras. Ao deixar o cargo de censor cinematográfico no Ministério da Educação e Saúde para assumir a direção da Escola de Filosofia da UDF, Prudente de Moraes Neto indicará o amigo Vinicius para a vaga, que exercerá até 1938, quando é agraciado com uma bolsa da diplomacia cultural britânica para estudar literatura inglesa em Oxford.

É na Inglaterra que escreverá o segundo de seus sonetos sobre Otávio de Faria, menos maldoso e muito mais sofisticado do que o já citado Octavio, onde se presta a gracejos fáceis como “quanto livro a escrever ainda teria/O ditador Otávio de Faria”. No Soneto a Octavio de Faria, inserido entre os eroticamente explícitos Balada do mangue e Rosário nos Poemas, sonetos e baladas, Vinicius apostrofa o amigo a partir de uma perspectiva de tonalidades cristãs e metafísicas. Faria surge, extático, “entre os negros abismos do luar”, “coisa pura/Arrancada da carne intransigente/Pelo trágico amor da criatura.”

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