ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O fim de Zafira
A morte violenta não é exclusividade do mico-leão-dourado
Bruno Moreschi | Edição 20, Maio 2008
A buzina e o grunhir dos freios de um Chrysler PT Cruiser prateado foram o sinal para Zafira se virar e avistar a própria morte. Ela queria apenas chegar ao outro lado da Marginal Tietê e, talvez, descansar à sombra de uma mangueira. Mas o impacto com o veículo a fez voar, soltar no ar um berro jurássico e voltar ao chão de ossos quebrados. O motorista não teve ferimentos.
Com o atropelamento de Zafira, para desânimo dos pequenos criadores agropecuários, mais uma vaca morreu numa via pública. Números do Ibama mostram que 1 083 animais morreram atropelados no ano passado, crescimento de 8% em relação a 2006. Minas Gerais, estado com a mais extensa malha rodoviária, é líder no ranking, com quase 100 casos. No Rio Grande do Sul, as principais vítimas de atropelamento foram o gambá-de-cola-lisa, o tatu-peludo e o preá.
Na cidade de São Paulo, segundo o Centro de Controle de Zoonoses da prefeitura, 530 animais mortos foram recolhidos nas pistas nos últimos dois anos. As classificações mais freqüentes nos registros são “bovino”, “boi”, “vaca” e “bezerro”, com 320 ocorrências, além de uma espécie de quimera do novo milênio, descrito como “semelhante a uma vaca, mas com incrementos na região da cabeça, entre vaca e felino, mas sem confirmação plena”.
Enquanto o mico-leão-dourado, o tamanduá-bandeira e o jacaré-de-papo-amarelo continuam na pauta dos debates político-preservacionistas, os bichos que são vítimas rodoviárias aparentemente preocuparam apenas a ex-deputada federal Maria Elvira, do PMDB mineiro. Em 1999, ela apresentou um projeto de lei que dispunha sobre a “implantação de dispositivos que impeçam a morte de animais silvestres por atropelamento nas rodovias”. A proposição, talvez por não contar com o apoio da bancada dos criadores de gado – bois e vacas, como se sabe, não são silvestres –, foi arquivada.
Para Euzébio Lima, o dono de Zafira, a conta é mais simples. Em um ano, ela foi sua quarta vaca atropelada, depois de fugir do terreno sem cerca de 90 metros quadrados à beira da Marginal, ocupado irregularmente. Com pesar, ele conta que, no seu rebanho, Zafira era a única vaca com nome e que entendia a voz humana. Tinha o pêlo branco e lustroso, com uma solitária mancha preta na região central do lombo. Nascida numa fazenda no interior, ainda bezerrinha foi parar na capital, e, antes de se mudar para o terreno na Marginal, já havia passado pela mão de dois criadores. Em 2005, Lima estava em busca de uma vaca que desse bastante leite. “Bati o olho na gracinha e ela mugiu”, relembra. “Levei por 80 reais.”
Oitenta reais era também o preço a pagar pela remoção do animal, dois anos depois. Por isso, quando o carro da Companhia de Engenharia de Tráfego chegou ao local do atropelamento para levar o corpo, Lima se esquivou. Encostou-se na mesma mangueira que Zafira almejava e, quando lhe perguntaram se conhecia o dono da vaca, fez que não com a cabeça. “Só vi o acidente, uma baita trombada”, comentou com os guardas.
Lima diz ter sofrido tanto com o atropelamento de Zafira que, num domingo, apelou para os serviços do padre Julio Alvarenga. O religioso não quis conversa ao saber que o cadáver tinha rabo e se expressava por singelos muuus – pela teologia cristã, o luto se justificaria apenas se a vítima fosse humana e não bovina. Lima insistiu. Imaginar sua mimosa leiteira no purgatório o angustiava. O padre, diante da amargura irremediável, improvisou então umas palavras de consolo: revelou-lhe que Zafira estava em algum lugar bem mais aprazível do que as margens do Tietê. Para provar, abriu a Bíblia em Isaías 11, versículo 7: “A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi.”
Lima anda pensando em se desfazer das duas vacas que lhe restaram. Caso a idéia vingue, pretende se concentrar no cultivo de repolho, cenoura, alface e beterraba, seres vivos menos audaciosos, que se contentam com a existência estática.