ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Uma história de amor
A segurança e o vendedor de roupinhas de bebê
| Edição 4, Janeiro 2007
Cleusa Aparecida de Lima e Bencion Moisés Sznajedleder Rutko se conheceram no final dos anos 60. Ela trabalhava como segurança no antigo Mappin da Praça Ramos, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. A indicação para o emprego viera do colega de uma cunhada, então delegada no DOPS – o hoje senador Romeu Tuma. Era obrigatório fazer um curso de defesa pessoal, o que não intimidou aquela morena forte de 1,72 metro, que desde então correu atrás de muito punguista. Na maioria absoluta das vezes, conseguiu agarrar o larápio e arrastá-lo até a sala da segurança do magazine.
Moisés ia regularmente ao Mappin entregar mercadoria ou fazer cobranças para a Três Balões, confecção de roupinhas de bebê criada por seus pais, judeus poloneses que haviam chegado ao Brasil quando ele tinha 1 ano de idade. Aproveitava para pedir informações àquela moça vistosa. Solícita, a vigia o acompanhava até o setor adequado. Bastaram três ou quatro encontros desse tipo para que Moisés criasse coragem e propusesse a Cleusa que ela o esperasse no fim do expediente. Foram até uma lanchonete perto dali e Moisés disparou: “Quero namorar com você”.
Cleusa e Moisés, hoje quase sexagenários, foram talvez o casal mais aplaudido na noite de 11 de dezembro passado, na cerimônia coletiva de casamento organizada pelas Casas Bahia no Pavilhão do Anhembi. Quatrocentos matrimônios foram realizados em quatro segundas-feiras consecutivas, durante a feira natalina da cadeia varejista. Sem custo para os noivos, a cerimônia civil foi celebrada simultaneamente por quatro juízes de paz. Cada casal teve direito a trinta convidados, ganhou uma foto-suvenir que simula a capa da revista Tititi, docinhos bem-casados e champanhe, além de hospedagem para a noite de núpcias no Holiday Inn.
Naquela segunda-feira, entre os mais de mil espectadores, um grupinho de cerca de quinze pessoas estava em clima de final de Copa. Eram os convidados de Cleusa e Moisés, todos parentes da noiva. Os parentes de Moisés não foram nem avisados da cerimônia. É que as relações do casal com a família Rutko andam um tanto estremecidas – há mais ou menos 36 anos.
Ao se estabelecer no Bom Retiro, Rachela e Aron Rutko, sobreviventes do Holocausto, não estavam propriamente dispostos a mergulhar no cadinho de raças brasileiro. O casal Rutko logo refez seu pé-de-meia em São Paulo. A loja e confecção Três Balões, com sede na Rua José Paulino, funcionou a pleno vapor nas suas pouco mais de três décadas de existência. Jacó e Marcos, irmãos de Moisés, casaram-se com moças judias, em cerimônia celebrada pelo rabino Henri Sobel e festa no Buffet França da Avenida Angélica. Esse era o destino que os Rutko divisavam para sua descendência. Quando o namoro de Moisés e Cleusa veio à tona, o couro comeu na Rua Ribeiro de Lima. Dona Rachela jamais aceitou que o filho namorasse uma gói. Segundo a própria Cleusa, a cor da pele tampouco ajudou. A mãe de Moisés costumava dizer que a diferença entre elas duas era grande: uma usava salto alto; a outra, sandália havaiana. Moisés não viu saída a não ser manter o namoro fora das vistas da família. Nos fins de semana, visitava Cleusa na casa dos pais dela ou então saíam para passear. Mas, sob o jugo do mátrio poder, devia estar de volta antes das 21 horas.
E assim se passaram 24 anos.
Dura é a lei do homem, mais dura é a lei de Deus. Aron Rutko faleceu na década de 70; dona Rachela, em 1994, aos 64 anos. Poucos meses depois, Cleusa e Moisés passaram a morar juntos, no apartamento da família Rutko no Bom Retiro. Mudaram-se alguns anos mais tarde para a Avenida Cásper Líbero, no bairro da Luz, onde vivem até hoje. O apartamento é alugado por Helena, uma prima de Moisés, que paga também o condomínio. Contam ainda com a ajuda de outra prima, dona Lili, que dá ao casal uma cesta básica por mês. A única renda de Moisés é o auxílio-doença do INSS, por invalidez – as seqüelas de um erro médico o impedem de andar direito. Cleusa continua a trabalhar no ramo da segurança.
O dia do casamento foi um grande momento, aguardado fazia mais de 36 anos. Por ironia, a festa teve como patrocinador um imigrante judeu que veio da Polônia e chegou ao novo continente na mesma época que Aron e Rachela Rutko. Samuel Klein é o fundador das Casas Bahia, que por sinal mantêm uma filial no prédio do antigo Mappin da Praça Ramos, palco do primeiro encontro entre Moisés e Cleusa. O casal só não quis aceitar a noite de núpcias no Holiday Inn. Preferiu receber os irmãos, irmãs e sobrinhos de Cleusa para uma festinha com kibe, coxinha, cuscuz e outros quitutes. Eles agora são a única família de Moisés Rutko.