Às vezes tendo a achar que vivemos numa época triste. Excitada, mas triste. Ao mesmo tempo, parece que se recusa em olhar dentro da própria tristeza. No desespero de mantê-la afastada, recorre a toda sorte de estimulantes. Fazer o mundo girar cada vez mais freneticamente não deixa de ser um modo de tentar fugir de nossa tristeza constitutiva, criando a ilusão de que estamos indo para algum lugar – e de fato estamos, mas não exatamente para esse que as pessoas querem pensar. Talvez tenhamos nos tornado demasiadamente infantis, para sempre isolados da lentidão reflexiva que a tristeza impõe, e que uma compreensão madura exige. Quanto mais criamos escudos contra a tristeza, mais ela nos assombra, revertendo em mal-estar, na sensação de que a vida é oca. Fico pensando em como estariam as coisas se não houvesse uma barreira química (com tarja preta) neutralizando as investidas de Saturno.
Esses pensamentos me remetem a Beware of darkness – uma canção que George Harrison gravou no seu primeiro álbum pós-Beatles, All things must pass, de 1970. Bob Dylan disse numa entrevista que “George (Harrison) tinha a esquisita habilidade de apenas tocar acordes que não pareciam estar conectados e daí… Surgia com uma melodia e a canção. Não conheci ninguém mais que fizesse isso”. Beware of darkness é um exemplo lapidar dessa “esquisita habilidade” do ex-Beatle. Realmente, é difícil conceber uma melodia convincente quando se olha o desenho harmônico da canção, com acordes que parecem não dialogar entre si – como se fosse uma arquitetura com aposentos fechados, que não se comunicam. Em alguns momentos ela se arrasta em modulações cromáticas da harmonia. É o que acontece, por exemplo, no percurso dos versos que abrem as estrofes: logo após as insistentes recomendações de cuidado (“watch out now, take care, beware…”), a descrição dos perigos que se deve evitar (“devassos decadentes”, “pensamentos parasitários”, “líderes gananciosos”) é acompanhada por um inusitado deslizamento ascendente de meio tom, indo de um acorde maior para um menor. É como se o caminho da frase melódica fosse interrompido pela abertura de uma cratera, revelando na canção um espaço mais sombrio, com o qual não contávamos. De uma hora para outra o ambiente escurece. A presença súbita desse acorde menor gera também uma impressão de desaceleração do tempo da música, jogando o ouvinte na temporalidade do atônito: o perigo estava ali ao lado – a apenas meio tom de distância – e a gente não percebeu; agora é tarde.
Há muitos anos ouço essa música, e ela continua me surpreendendo com sua estranheza. As modulações e o tom de aconselhamento da letra trazem para ela uma qualidade ritualística, de misteriosa e sombria reza, como se fosse necessário prestar tributos às forças negras do universo – como os gregos antigos prestavam tributos às Parcas, lúgubres mulheres que teciam e cortavam o fio da vida dos mortais – pois somente assim, encarando essas forças negativas de frente, seríamos capazes de expurgá-las. E para encará-las é preciso evocá-las. É a partir da própria escuridão que a canção de Harrison pretende sublimá-la. Sua voz ecoa das entranhas da própria tristeza. Como se fosse uma corajosa visita ao Hades – e não se deve esperar menos da arte de Orfeu – ela evoca uma atmosfera sombria para nos lembrar dos perigos que pairam ao nosso redor, para nos ensinar, justamente, um caminho de saída do reino das sombras.
Às vezes fico pensando no que está por trás da contemporânea ojeriza da tristeza. Às vezes tendo a achar que somente quando tivermos a coragem de visitar o nosso Hades é que conseguiremos deixar pra trás tudo o que nos atravanca.
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