minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos
questões musicais

A mulher que canta

Zelia Duncan | 11 maio 2011_14h51
A+ A- A

A música sempre me pareceu ser a arte mais imediata de todas, a que mais tem a capacidade de nos assaltar nas mais surpreendentes ocasiões. Claro que as artes plásticas também têm essa capacidade de, de repente, nos transportar pra outro mundo, só por uma combinação de cores ou da falta delas. Mas a música é assim, mais despudorada e invasiva. Música tem cheiro, música é teletransporte. Quando eu era bem adolescente, me sentia mulher feita ouvindo certos sons que tinham profundidade. Hoje, mulher feita, posso voltar aos dias mais fresquinhos da juventude, por causa de um refrão ou do timbre de uma voz.

Outro dia fui ao cinema. Taí outra arte que me desbunda, me arrebata, me leva pra onde quiser. E faz o que quer da música. Quando os filmes eram mudos, havia o carinha tocando piano ao vivo nas sessões. O cinema não pode – nem deve – abrir mão da música. No cinema, música é imagem. O filme nada tinha de especialmente musical, pelo contrário, ali a música auxiliava nos climas, mas não tinha um papel determinante na história toda. Porém, no meio de um roteiro duro, em que uma mulher jovem, que morava numa aldeia do Líbano nos anos 70, transgride e vê seu namorado ser assassinado por seus irmãos, ao mesmo tempo em que se descobre grávida, um detalhe me tocou especialmente. Essa mulher, por motivos religiosos e políticos, comete um delito e vai parar numa terrível prisão, onde passa quinze longos anos de sua vida, sendo torturada, obviamente. Mas com uma força interior impressionante, essa mulher vira meio que uma lenda, porque numa noite, em meio aos gritos de outra cela, ela começa a cantar baixinho. Não, não tinha uma extensão impressionante, e nem virou uma pop star, pois o filme é canadense e não americano! Mas ela canta pra achar uma saída pra sua sanidade. Você não fica ouvindo a mulher cantar durante o filme, mas ela fica conhecida e de certo modo respeitada na sua dor, porque se tornou “a mulher que canta”.

O canto, de certo modo, salvou sua vida e deixou um rastro para que alguns mistérios fossem desvendados. Inevitavelmente, me lembrei do filme Piaf. Há uma cena, entre tantas emocionantes, que me marcou profundamente. Quando, já na fase final, ela cai no palco, diante de uma plateia repleta, seu empresário manda as cortinas baixarem, a leva pro camarim, dizendo que terminou. Piaf entra em total desespero e implora a ele que volte atrás. Ela diz algo como: “você não entende, eu não tenho outra opção, eu tenho que voltar”. O pedido é tão dramático e verdadeiro, que eles a levam de volta ao palco, ela ainda consegue cantar de novo, mesmo que por pouco tempo. Era um pedido de socorro.

A grande Billie Holiday, dama definitiva do jazz, com sua voz de carne viva, tem uma história de vida que também parece fantasiosa de tão surpreendente. Aos 14 anos já vivia a prostituição e, mais tarde, desesperada pela falta de dinheiro, caminhando pelas ruas do Harlem, resolve entrar num estabelecimento que dizia admitir dançarinas. Billie, dançarina desastrosa, acaba por acaso fazendo também um teste para cantar e se torna a cantora mais comovente que já se ouviu, até os dias de hoje. Seu timbre carrega a dureza de sua vida, seus vícios e possíveis alegrias. Viciada em heroína, numa audição que nem precisa ser especializada, percebe-se a mudança da voz com o passar do tempo. Não menos comovente e importante, porém menos melódica, mais arranhada. Billie sobreviveu e deu algum sentido à sua vida, graças à sua voz, que estava ali, esperando por ela o tempo todo.

A voz é um instrumento misterioso. Ela mora dentro da pessoa. Não existe luthier possível, é você e ela. É uma extensão do corpo porque se expressa através dele e por causa dele. Então fica tudo ali, corpo físico e sentimento, mais a história de cada um, que vai influenciar não só o jeito de cantar, mas as escolhas.

Adoro ouvir atentamente as gravações de grandes cantoras, ligada nas suas respirações. Quando elas puxam o ar, já existe uma intenção que emociona. Claro que vai depender do tipo de gravação e de música. Recomendo Ella Fitzgerald e Joe Pass, voz e guitarra, e, para dar um exemplo mais próximo de nós, Elis e Tom. Um álbum sensacional, clássico, gravado em Los Angeles em comemoração aos dez anos de carreira de Elis Regina. Ouçam “O que tinha de ser”, de Tom e Vinicius. Se liguem na voz e chorem com Elis ao final.

A gravação de Gal Costa da canção “Minha voz, minha vida” soa aos ouvidos (aos meus!) como uma oração. É perturbador guardar dentro de si, de forma tão literal, a razão maior da sua vida. Saber que mora ali, no seu corpo, o que vai ser sua expressão nesse mundo. Naqueles dois musculozinhos chamados cordas vocais e que são muito mais que isso pra quem vive delas.

“A mulher que canta” comove no filme – que se chama Incêndios – porque, cantando, consegue superar e sobreviver às torturas que lhe foram impostas. Em nada difere de Billie, Piaf, Gal, Elis e tantas outras.

“Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação
minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação
Por ser feliz, por sofrer, por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer, pra esperar, eu canto…”
(Caetano)

Obs.: Acabei de escrever e a voz de Cássia está insistentemente nos meus ouvidos, dizendo: “sou inquieta, áspera e desesperançada, embora amor dentro de mim eu tenha…” Eu sei, Cássia, cantar é um desatino e uma salvação!

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí