“O jornalismo brasileiro vive um péssimo momento”, discursou o defensor público federal Daniel Macedo num fim de tarde de domingo, na praia do Leme, no Rio de Janeiro. Não se referia ao enxugamento das redações ou à cobertura da Operação Lava Jato, mas criticava as reportagens sobre a fosfoetanolamina, molécula que ficou conhecida como a “pílula do câncer”. Falava a pacientes e familiares que reivindicavam a liberação do uso da substância.
Poucos dias antes o STF havia revogado a lei que autorizava seu consumo. A história da ascensão e queda da fosfoetanolamina foi contada na reportagem “A panaceia”, da piauí 120, atualmente nas bancas (disponível para assinantes).
A crítica à cobertura da imprensa é unânime entre os simpatizantes da causa. Eles veem na mídia uma peça fundamental da engrenagem movida por interesses poderosos que querem negar à sociedade o acesso à molécula capaz de curar qualquer forma de câncer – a aliança ainda envolveria a indústria farmacêutica e setores da academia, da comunidade médica e do Poder Judiciário.
Um elo em especial da engrenagem irrita os partidários da fosfoetanolamina: o oncologista Drauzio Varella. Quando uma onda de decisões judiciais obrigou a USP a fornecer o composto a pacientes com câncer, Varella condenou, no Fantástico, o uso da substância, considerando absurda a liberação sem que houvesse evidências de sua segurança ou eficácia. A reportagem motivou respostas agressivas nas redes sociais e, meses depois, ainda é lembrada pelos críticos.
Foi por causa de Varella que o defensor público Daniel Macedo se engajou na campanha – em entrevista no dia da manifestação, ele se disse perplexo com o tom do oncologista. Convencido de que se negava à sociedade uma substância que poderia beneficiar milhões de pessoas, ele entrou com uma ação coletiva solicitando a liberação do seu uso e ajudou a articular em Brasília o projeto de lei que foi aprovado com agilidade e derrubado pelo STF semanas depois.
Ao discursar para os manifestantes no Leme, Macedo alegou interesses econômicos poderosos por trás da proibição e voltou a criticar Varella. “A reportagem foi comprada”, acusou.
A crítica do defensor público ecoa a opinião do pesquisador da USP que criou o método de síntese da fosfoetanolamina, o químico Gilberto Chierice, aposentado em 2013. Figurinha fácil na imprensa quando a substância produzida em São Carlos ganhou as manchetes dos jornais, ficou menos acessível à medida que eram publicadas reportagens que lhe pareciam tendenciosas. “Vocês, repórteres, estão sendo pagos para descaracterizar tudo isso”, afirmou Chierice quando me recebeu na sede de suas empresas em Araraquara, próximo a São Carlos.
O químico estava irritado com relatos publicados na blogosfera sobre um seminário dedicado à fosfoetanolamina realizado semanas antes em São Paulo. Os jornalistas Ruth Helena Bellinghini e Carlos Orsi escreveram sobre o evento; Bellinghini descreveu Chierice como um pajé que promovia o culto à fosfoetanolamina. O pesquisador estava contrariado também com um perfil seu publicado na Veja (ele se recusou a dar entrevista à repórter Natalia Cuminale). “Tudo o que eu disse até hoje foi distorcido”, queixou-se.
Embora estivesse decidido a não falar mais à imprensa, Chierice recebeu a piauí depois de uma negociação com seu filho Gilberto, que administra as empresas e também participou da entrevista. A julgar pela reação do filho, o resultado não deve ter ajudado a abalar a desconfiança de Chierice com a mídia. “Mais uma reportagem cavada e distorcida”, ele me escreveu por Whatsapp depois de ler “A panaceia”.