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    Crédito: Tarso Sarraf/Folhapress

questões de políticas públicas

A pobreza na posta-restante

Na legislação sobre programas de transferência de renda, é urgente incluir um parágrafo esquecido: o que atualiza pela inflação a linha de pobreza e os valores pagos

Letícia Bartholo, Rogério Jerônimo Barbosa, Monica de Bolle e Pedro Ferreira de Souza | 25 ago 2020_18h34
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Muito pouco usada atualmente, a expressão posta-restante refere-se ao local onde são deixadas as correspondências que não chegam diretamente a seus destinatários. Nela, onde esperam a vez de encontro desde objetos banais a cartas de amor, mora há quase vinte anos o Parágrafo Esquecido na legislação federal sobre os programas de renda mínima. E ele nos diz o seguinte: este programa social constitui transferência obrigatória e terá as linhas de pobreza e os valores dos benefícios financeiros reajustados anualmente de forma a, no mínimo, recompor a inflação verificada no período.

O Parágrafo Esquecido foi enviado pela população ao poder público ainda nos idos de 2001, quando surgiu a primeira iniciativa expressiva de transferência condicionada de renda, com o Programa Bolsa Escola Federal. Mas não encontrou seu destinatário e lá ficou: na posta-restante da comunicação entre sociedade e Estado. Viu a criação do Bolsa-Alimentação, Auxílio-Gás e Cartão-Alimentação sem que ninguém o procurasse. Em 2003, aguardou esperançoso por resgate com o Bolsa Família – e nada. Assistiu então ao maior programa de transferência condicionada de renda do mundo ganhar escala, ter resultados ótimos e virar unanimidade. Mas nunca, em nenhuma oportunidade, foram buscá-lo. E em 2021 completará, resignado, duas décadas de esquecimento.

Em realidade, para sermos corretos, nosso Parágrafo Esquecido não precisa ser necessariamente um parágrafo; pode ser um artigo e talvez até um inciso – aspectos definidos com mais propriedade por técnicos em redação legislativa.  É simplesmente um dispositivo constante de legislação federal dos programas de transferência de renda, que afirme duas características: sua obrigatoriedade em incluir todos que cumprem os critérios de atendimento e a necessidade de atualização periódica das linhas de pobreza e dos valores pagos às famílias de acordo com a inflação.

Até hoje, não funciona assim. A legislação do Bolsa Família prevê que o poder Executivo deve compatibilizar as metas de atendimento do programa, ou o tamanho de seu público, com o orçamento existente, e que os valores das linhas de pobreza e dos benefícios pagos podem ser reajustados discricionariamente, isto é, quando o Executivo decide fazê-lo. Isso significa que o Bolsa Família pode ter, sim, milhões de pessoas na fila, e que seus pagamentos fiquem por longos períodos sem atualização monetária, sem que disso derive qualquer problema legal.

Em defesa do esquecimento, há argumentos razoáveis. Sob a ótica da democracia, pode-se argumentar que quão mais obrigatórios são os gastos do Estado, menos margem têm seus governantes eleitos de decidir como o orçamento será utilizado. Numa democracia, em tese, elegemos os governantes conforme a aderência entre suas prioridades e nossas perspectivas sobre o que é melhor para o país. Assim, engessar a atuação dos governantes de acordo com prioridades anteriormente definidas seria um próprio engessamento de nossas escolhas democráticas. Sob a ótica do orçamento público e principalmente num contexto da regra de teto de gastos hoje vigente, as transferências obrigatórias comprimem o gasto discricionário, sobrando poucos pedaços de bolo sobre os quais o governo pode decidir como e com quem repartir.

No entanto, na realidade brasileira, tais argumentos sofrem de incoerência e seletividade. De um lado, defende-se a manutenção do Bolsa Família como gasto discricionário ou mesmo a desconstitucionalização de outros benefícios sociais sob o argumento da restrição às escolhas democráticas. De outro, fixa-se uma regra constitucional que circunscreve estas mesmas escolhas, por no mínimo dez anos, a um espaço fiscal definido por mandato específico. A conclusão que se depreende disso é que a política fiscal não pode ser política, mas a política social deve. É incoerente. E é seletivo.

Num outro sinal de valorização do casal incoerência e seletividade, parte expressiva dos benefícios sociais destinados aos dois terços mais pobres de nossa população está indexada ao salário mínimo. Isso vale para as aposentadorias que estão no piso previdenciário, tal como para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), prestação assistencial devida a idosos e pessoas com deficiência impossibilitadas para o trabalho. Todos esses benefícios seguem a perspectiva do direito: cumpridos os critérios para seu recebimento, a pessoa lhe fará jus, sem possibilidade de negativa pelo Estado. Mas nada disso vale para o Bolsa Família.

Seja qual for a lógica subjacente à retórica que mantém o Bolsa Família como o primo pobre de nossa proteção social, ela faz com que a margem de manobra democrática se transforme no cerceamento de direitos da parcela mais empobrecida de nossa sociedade.  E o custo social disso é elevado, subjetiva e objetivamente. Sob a ótica subjetiva, a ausência de regras sobre o tamanho e os valores do Bolsa Família leva à insegurança das famílias atendidas e ao potencial uso eleitoral do programa. A cada eleição parece que o Bolsa Família é posto num leilão, sob gritos de “quem dá mais?”

Do ponto de vista objetivo, isso diminui o impacto do Programa na redução da pobreza, seja pela impossibilidade de atender a todos que cumprem os critérios, ou pela defasagem dos próprios critérios. Uma linha de pobreza desatualizada torna fácil a um governo diminuir a população pobre – por óbvio, quanto mais baixa a linha, menor o número de pessoas que está aquém dela. Mas é um achatamento fictício da pobreza, pois descolado das necessidades reais da população. O mesmo argumento vale para valores de benefícios insuficientes. Para exemplificar, se o Bolsa Família contasse com o Parágrafo Esquecido, não teria sido reduzido exatamente num cenário de recessão econômica, como aconteceu em 2019, ano em que mais de 3 milhões de pessoas esperaram por meses sua inserção no Programa, sem êxito. O valor médio dos benefícios por família atingiu seu máximo em agosto de 2014. A mera correção da linha de pobreza e dos benefícios pela inflação acumulada desde então faria com que seu público abrangesse mais de 7 milhões de novas pessoas, com benefícios médios 21% maiores do que os atuais 188 reais mensais por família. 

Até setembro, essas dificuldades estarão temporariamente atenuadas, já que basicamente todas as famílias pobres estão recebendo o Auxílio Emergencial, o que inclusive fez a desigualdade e a taxa de pobreza recuarem em 2020. Mas esse efeito é, além de transitório, ilusório: as reais condições de vida de seus beneficiários não se alteraram de forma duradoura e diversos aspectos característicos da pobreza podem ter se deteriorado – como as dificuldades de acesso ao trabalho, por exemplo. No instante da interrupção do Auxílio, a desigualdade atingirá um pico histórico e cerca de 30% da população terá menos de um terço do salário mínimo por mês para sobreviver. A pergunta que então se impõe é: quando o Auxílio Emergencial acabar, qual será nossa resposta?

Neste debate hoje intenso, podemos optar por uma ampliação substantiva do Bolsa Família, por uma renda básica para todos os brasileiros, ou mesmo por um modelo que combine benefícios focalizados com outros de caráter universal. São escolhas da sociedade e devem ser respeitadas, mas precisamos evitar a incoerência nas decisões, tão mais as que se aplicam seletivamente sobre os pobres. E, caso optemos por definir que a garantia de um patamar mínimo de renda deve ser tarefa perene do Estado brasileiro, como fizemos há pouco com o Fundeb, precisaremos voltar à posta-restante e resgatar nosso Parágrafo Esquecido. Sem isso, novamente veremos nossas linhas de pobreza e valores de benefícios se defasarem com o tempo, deixando à margem da memória os setores mais vulneráveis de nossa população.

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