José Eduardo Agualusa teria razões de sobra para estar enfurecido. Não é o que demonstra, porém, na sua coluna,  publicada segunda-feira passada (25/5/2015), no Globo. O texto sugere, ao contrário, que ele pode até estar satisfeito. Embora reconheça a distância que há entre o filme O vendedor de passados, dirigido por Lula Buarque de Hollanda, e seu romance homônimo, recusa-se a optar entre um e outro

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Agualusa – feliz em ser traído pelo cinema

José Eduardo Agualusa teria razões de sobra para estar enfurecido. Não é o que demonstra, porém, na sua coluna,  publicada segunda-feira passada (25/5/2015), no Globo. O texto sugere, ao contrário, que ele pode até estar satisfeito. Embora reconheça a distância que há entre o filme O vendedor de passados, dirigido por Lula Buarque de Hollanda, e seu romance homônimo, recusa-se a optar entre um e outro

| 01 jun 2015_11h13
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José Eduardo Agualusa teria razões de sobra para estar enfurecido. Não é o que demonstra, porém, na sua coluna,  publicada segunda-feira passada, no .

O texto sugere, ao contrário, que ele pode até estar satisfeito. Embora reconheça a distância que há entre o filme O vendedor de passados, dirigido por Lula Buarque de Hollanda, e seu romance homônimo, recusa-se a optar entre um e outro – prefere ficar com os dois.

Não há motivo, em princípio, para duvidar da sinceridade da postura de Agualusa. Mas nas entrelinhas do que escreveu há ambiguidade suficiente para levantar dúvidas. Estará apenas sendo cortês?; ou pouco se importa com o que foi feito do seu romance?

Ao comentar O vendedor de passados na semana de estréia, Agualusa colabora com a campanha de promoção do filme. O espaço que ocupa no Segundo Caderno é valioso e chama atenção que possa ser usado em proveito próprio. Mas encobrir eventuais reservas, caso existam, seria uma atitude ainda mais desconcertante, e a falta de um endosso explícito ao filme, de sua parte, permite supor que esse seja o caso.

É verdade que Agualusa informa já ter assistido ao filme três vezes, deixando claro, portanto, que não o renega, ao menos publicamente.

No caso da terceira edição do livro, lançada este ano pela editora Gryphus, o fato de vir estampada na capa uma montagem de fotos de Lázaro Ramos e Alinne Moraes, intérpretes dos personagens principais de O vendedor de passados, é um exemplo claro de propaganda enganosa, na qual Agualusa pode até não ter alguma responsabilidade.

Mas quem comprar o livro depois de assistir ao filme, atraído pelos dois atores, ou for assistir ao filme depois de ter lido o livro, levará um duplo choque. Primeiro, ao descobrir que o romance e o filme guardam relação longínqua. Depois, ao verificar a inconsistência da versão filmada de O vendedor de passados, especialmente quando comparada ao romance.

Agualusa não demonstra de modo claro nenhum desagrado com a largura e profundidade do abismo que há entre seu romance e a versão dirigida por Lula Buarque de Hollanda, que seria, conforme escreve, “livremente adaptado” de O vendedor de passados. Os créditos finais do próprio filme, porém, indicam ser apenas “livremente inspirado” no livro, o que não quer dizer a mesma coisa.

Há uma diferença considerável entre um roteiro “livremente adaptado” e outro “livremente inspirado” em obra literária, diferença que Agualusa passa por cima. Ele considera um absurdo comparar um filme com o livro que lhe deu origem, mas traça um paralelo sem o menor sentido entre essa comparação e a necessidade de escolher entre um copo e um sapato. Ora, copos e sapatos são objetos utilitários, cada um com sua própria utilidade, ao contrário de filmes e livros, ambos destituídos de finalidades utilitárias. Querer o copo e o sapato, como Agualusa, é natural, mas não há nenhuma decorrência lógica equivalente a essa vontade no caso de um filme e um livro.

Se é verdade, como Agualusa afirma, que há uma diferença considerável entre o custo financeiro para escrever um livro e o necessário para produzir um filme, as consequências dessa desproporção não se aplicam à versão de Lula Buarque de Hollanda.

O diretor, segundo Agualusa, “frequentemente é forçado a fazer compromissos, escolhendo caminhos em que não acredita totalmente”. É verdade, embora nada indique que isso tenha ocorrido em O vendedor de passados, filme do qual Lula Buarque de Hollanda, além de diretor é também produtor.  Sendo, além disso, sócio da empresa produtora, cabe a ele mesmo responder em última instância pelo que foi realizado.

É difícil acreditar que Agualusa, autor da proeza de escrever um romance consistente e divertido como O vendedor de passados, narrado por uma osga – vulgarmente conhecida como lagartixa –, não perceba a fragilidade do filme, pronto a desmoronar como um castelo de cartas, ou a explodir, ao menor toque, como uma bolha de sabão. Um bom escritor como Agualusa, certamente é capaz de perceber o que fizeram com seu romance e de reagir à altura. Salvo se, tendo concluído, como seu personagem Félix Ventura, que 10 mil dólares, ou mais, “não se deitam fora”, tiver decidido, também como ele, “fazer-se à vida”.

A lagartixa narradora de Aqualusa é descrita como pertencendo a uma espécie muito rara, sendo “um animal tímido” – ela se incomoda quando falam dela “porque o faziam como se [ela] não estivesse presente”. Não possuindo o dom da fala, emite gargalhadas. Mas não deixa de filosofar, de se divertir e de se comover todas as tardes contemplando “as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas”.

Abandonada à própria sorte pela transposição para o cinema, a lagartixa, que além de ter tido um nome, possui o dom de ser uma excelente ouvinte, faz falta. Assim como o filme se ressente também, entre outros aspectos do romance, da ausência da sátira política enraizada em um país jovem. Agualusa quis irritar a nova burguesia angolana mas confessa que não conseguiu.

Em entrevista ao programa Roda Viva, em 2011, Agualusa foi claro quanto a seus objetivos: “O que me interessa mais numa sociedade como a angolana é a possibilidade que esses livros sejam capazes de provocar debate, de perturbar, de incomodar, de aborrecer algumas pessoas.”

Quanto a Lula Buarque de Hollanda, é difícil saber qual foi sua intenção ao fazer o filme. Ao contrário de Agualusa, com toda certeza não quis “criar algum debate” ou coisa parecida.

O que sobrou do romance no filme, segundo Agualusa, foi “a discussão sobre memória e identidade, que constitui afinal a essência do livro”. A que ponto pode chegar a benevolência de um autor! No filme, situado em um reino da fantasia com atrações turísticas semelhantes às do Rio de Janeiro, e destituído de um contexto social identificável, memória e identidade são temas artificiais, frágeis, tratados de forma inconvincente. O crédito “livremente inspirado” não serve de justificativa dada a precariedade do resultado dessa inspiração.

Para Agualusa, “existe, também, é verdade, a tentação […] de inventar mais do que o necessário. Alguns roteiristas, na ânsia de exibirem habilidades esquecem por vezes soluções narrativas que o autor explorara com sucesso e que poderiam ter transitado para o filme com idêntico sucesso. A subversão exige talento.” A ressalva final de Agualusa é dirigida a Lula Buarque de Hollanda? Seria adequada, embora não pareça provável que a intenção do autor angolano seja essa.

Agualusa tem razão ao dizer que as adaptações mais bem sucedidas são as “inteligentemente desrespeitosas, as que melhor sabem subverter o original”. Faltou completar que tudo depende do que essa subversão for capaz de produzir.

Além de não demonstrar talento subversivo, para poder ser levado a sério, falta ao filme O vendedor de passados o discernimento mínimo necessário para perceber o que o romance de Agualusa tem de melhor, e a capacidade de subvertê-lo de forma criativa e consistente.

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