Daniel Plentz, Dudu Stein e Ramiro Levy: o trio da Selton Foto: Marcella Savino
“Ainda tem muita aventura para acontecer”
A trajetória da banda gaúcha que nasceu em Barcelona tocando Beatles pra turistas de Gaudí, fez carreira na Itália e hoje quer provar que todo mundo é gringo
Se a vida da banda brasileira Selton fosse um filme, a primeira cena poderia ser mais ou menos assim: em meio às colunas, paredes e esculturas multicoloridas do Parque Güell, uma das criações do arquiteto catalão Antoni Gaudí em Barcelona, um grupo de quatro músicos gaúchos toca canções dos Beatles. A formação é um tanto quanto mambembe: os quatro cantam, mas os instrumentos se resumem a um violão, uma bateria de brinquedo e um baixo acústico ligado num amplificador movido a bateria de moto. Todos na faixa dos 20 anos, eles se apresentam em horários heterodoxos para animar os turistas, tentando ganhar uns trocados para curtir a Europa em meados dos anos 2000.
Duas décadas e muitas confusões depois, como diria um narrador da Sessão da Tarde, eles já não são quatro, mas três artistas beirando os 40, de terno e óculos escuros, na porta do lendário Abbey Road Studios, famoso por sediar quase todas as gravações dos garotos de Liverpool. Em abril deste ano, o trio brasileiro gravou no mítico estúdio 2, usando o mesmo piano em que Paul McCartney registrou Penny Lane ou Martha My Dear. “Se mandassem uma carta ao Ramiro adolescente dizendo que isso ia acontecer, eu teria me matado antes”, gracejou o vocalista e guitarrista da Selton, Ramiro Levy.
Não foi só: a sessão teve produção de Ricky Damian, prodígio italiano radicado em Londres, que aos 21 anos de idade ganhou um Grammy como engenheiro de som pelo registro de Uptown Funk, hit de Mark Ronson e Bruno Mars. Essa, porém, é apenas uma das muitas aventuras da Selton, banda gaúcha de coração, mas que nasceu mesmo em Barcelona e desenvolveu sua carreira na Itália, cantando em quatro idiomas – português, italiano, inglês e espanhol. Em quase vinte anos de trajetória, o trio já acumula sete discos de estúdio – o mais recente deles, “Gringo Vol.1”, saiu no começo do mês de maio. Além de nove músicas originais, o álbum tem a participação especial de Ney Matogrosso na faixa de abertura, uma versão em italiano de Sangue Latino, do Secos & Molhados.
“Sonhei com uma versão em italiano da música, e aí resolvemos gravar. Um amigo nosso daqui conhecia o Ney e pediu pra ele gravar umas vozes, mas ele não tinha tempo pra fazer. Mas aos 45 do segundo tempo os áudios chegaram. Foi literalmente um sonho que se realizou”, comemora Levy, cuja voz também pode ser ouvida na atual novela das seis da TV Globo. A trilha sonora de No Rancho Fundo, novela de Mário Teixeira que estreou em abril na TV Globo, tem uma versão de Qui Nem Jiló, clássico de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, feita pelo grupo em 2013, com participação do cantor e guitarrista Arto Lindsay. “A Globo nos mandou um e-mail pedindo pra usar a música. É um alinhamento astral maluco”, afirma o baterista Daniel Plentz ao celebrar a boa fase do conjunto.
A formação original da Selton era composta pelo guitarrista Ramiro Levy, o baterista e percussionista Daniel Plentz, o baixista Eduardo Stein Dechtiar (Dudu) e o guitarrista e vocalista Ricardo Fischmann — que deixou a banda em meados de 2017. Levy, Dudu e Ricardo compartilharam a adolescência em Porto Alegre e nas temporadas de veraneio no litoral gaúcho, em praias como Capão da Canoa e Atlântida. Plentz orbitava o trio, mas não tinha uma relação tão próxima.
Em meados de 2005 o grupo começou a ganhar forma de maneira espontânea. Fischmann trancou a faculdade de psicologia na capital gaúcha e mudou-se para Barcelona. Dudu e Levy trilharam caminho semelhante, mas antes fizeram uma parada de seis meses no Algarve, região sul de Portugal, para trabalhar e tocar em bares. “Quando eu e o Dudu vimos, já estávamos nos apresentando cinco noites por semana. Daí surgiu a ideia de tocar na rua em Barcelona”, conta Levy. As primeiras exibições tinham como repertório canções dos Beatles e Chico Buarque, mas eles sentiam falta de ritmo. Decidiram, então, convidar Plentz, que havia migrado para a Europa no mesmo período, após terminar o curso de publicidade em Porto Alegre. Em Barcelona, ele estudava música em um conservatório de violão e fazia bicos diversos, como vender quadros na rua, lavar pratos e limpar lesmas servidas como escargot.
Ao chegar na zona de Gaudí, os quatro descobriram que os pontos mais atraentes do parque, como a área das colunas centrais com vista para o mar, tinham “dono”. Assim, investiram no melhor horário disponível: terça-feira, às nove da manhã, no ponto mais alto do parque, onde passavam poucos turistas. Nas primeiras sessões, ganhavam algumas dezenas de euros. Pouco a pouco, conseguiram progredir na hierarquia local para ter mais visibilidade entre os transeuntes. Com os primeiros trocados, também se organizaram para gravar um CD amador, vendido a 10 euros em suas apresentações. “Quem compra o CD de uma banda de rua compra uma memória. Se alguém viu um pôr do sol no parque e nós tocávamos Beatles, a pessoa ia querer levar aquilo pra casa. Foi aí que começamos a ganhar dinheiro mesmo”, lembrou Plentz.
Nem mesmo o inverno – e o risco de tocar com dedos congelados – parou o grupo. Pelo contrário: foi em meio às baixas temperaturas que o quarteto galgou os melhores lugares. “Quando os músicos voltaram na primavera, no começo de 2006, eles tentaram retomar seus lugares, mas não deixamos. Ali começou a história de verdade: a gente tinha definido que Beatles funcionava bem e começamos a nos divertir, tocando 4 ou 5 horas por dia e vivendo só daquilo”, lembra Plentz. Na média, cada membro ganhava cerca de mil euros por mês. “Ao mesmo tempo, a gente estava se conhecendo como banda, foi um período cheio de ensaios abertos e muita liberdade.”
Enquanto bebiam cerveja, pagavam o aluguel e se divertiam em Barcelona, algumas coisas diferentes começaram a acontecer. Primeiro veio um convite para uma performance na edição de 2006 do Les Voix du Gaou, um festival na França, que também teve na programação Pixies e Jamiroquai. Em meados de 2006, uma reportagem da MTV italiana levou os produtores milaneses Gaetano Cappa e Marco Drago a convidar a banda para tocar no país da Bota, o que deu início a uma ponte-aérea de um ano entre Barcelona e Milão, resultando até num contrato para gravar um disco. “Eles deixaram o estúdio à nossa disposição, deram um laptop pra gente gravar umas demos. Parecia até pegadinha”, conta Plentz.
Ao chegar no Norte da Itália, sem falar nem um “Bella ciao”, o grupo começou a trabalhar em dois discos – um com suas próprias canções e outro com um repertório de releituras do milanês Enzo Jannacci, proposto pela gravadora local. “Devagarinho, a gente se dá conta de que eles só estavam nos deixando fazer o nosso disco, enquanto no fundo eles iam lançar mesmo era o outro. Ainda assim, a gente topou experimentar”, diz o baterista. “Era uma coisa meio surreal: a gente não falava italiano, não entendia nada e os caras ainda nos colocavam numas coisas meio absurdas, tipo tocar numa festa chique para o presidente da Inter de Milão. Cara, a gente tocava na rua até outro dia.”
No fim das contas, as gravações desembocaram em Banana à milanesa, primeiro disco da Selton, lançado em 2008, quase todo dedicado às canções de Jannacci, definido pelo grupo como uma espécie de “Tom Zé italiano, meio surrealista”, mas ilustre desconhecido fora da península itálica, a despeito de ter colaborado com Chico Buarque na fase do autoexílio do compositor brasileiro. Nem sempre foi assim: nos anos 1950 e 1960, a Itália fez parte da vanguarda do pop global, como lembra o compositor Maurício Pereira. “Acho maluco uma banda brasileira estar lá, porque a Itália sumiu do mapa, diferente da hegemonia dos anos 1960, com cantores como Rita Pavone, Sergio Endrigo ou Gianni Morandi. Era um país que propunha pop de ponta. O som da Jovem Guarda, por exemplo, é 50% Elvis e 50% Gianni Morandi”, comenta Pereira. “Mas nos anos 1970 e 1980, eles se esconderam no mainstream.”
Contrariando as expectativas, Banana foi um sucesso midiático, levando a banda não só a fazer turnês pelo país, como também se apresentar na tevê e receber matérias de página inteira na imprensa italiana. É nessa época também que se solidifica o nome Selton – que o grupo esclarece não ter nada a ver com o ator Selton Mello. “Era uma piada interna nossa que envolvia Elton John e South Park, tipo transmissão de pensamento, mas a gente nem sabe mais explicar como chegou nisso”, diz Plentz.
Dois anos depois, na hora de gravar o disco autoral, que incluía canções em italiano, o abismo: a gravadora Barlumen Records decide romper o contrato da banda, deixando a Selton a ver navios. Voltar para casa, porém, não era uma opção – ainda mais depois de o grupo ter aprendido a falar o idioma local a duras penas. “Retornar ao Brasil significava não fazer mais música, porque aí a gente começaria do zero. Na Itália tinha aquela coisa do ‘lembra daqueles caras?’. Era também uma idade em que nós nos permitíamos errar, de achar que éramos nós contra o mundo”, explica o baterista.
O quarteto, porém, tinha alguns ajudantes, como o engenheiro de som Tommaso Colliva, que já trabalhara com bandas como Muse, Franz Ferdinand e The Jesus and Mary Chain, e topou produzir o primeiro disco autoral do grupo, o autointitulado Selton, de 2010. Outro apoio veio de Roberto de Luca, produtor de shows que pagou boa parte dos custos da obra. No primeiro show com canções próprias, em um espaço chamado Arci Taun, em Fidenza, a plateia foi de apenas um pagante (que a banda não conhecia). “Mas a gente vai lá, faz o show pra essa pessoa e, aos poucos, devagarinho, vai construindo uma carreira”, diz Plentz. Como banda independente e tocando onde fosse possível, a Selton gravou três discos na Itália: além do já citado Selton, vieram ainda Saudade, de 2013, e Loreto Paradiso, de 2016, todos produzidos e financiados pela banda, com os recursos obtidos ao longo de anos de turnês.
Se o primeiro disco serviu para restabelecer a Selton no circuito italiano, os outros dois foram parte de uma tentativa de abraçar o mundo – e o Brasil no meio do processo. “O disco não chama Saudade à toa: a gente realmente estava com muita saudade e tinha uma ideia de tentar voltar ao nosso país”, lembra Ramiro Levy sobre o álbum, que rendeu o prêmio de melhor Grupo de Rock em 2013 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Entre 2013 e 2016, o grupo tocou várias vezes em São Paulo e Porto Alegre, levando bom público a espaços tradicionais como Auditório Ibirapuera e Theatro São Pedro, respectivamente, ou casas de shows independentes já extintas, como Studio SP, Casa do Mancha e Puxadinho da Praça na capital paulista.
Em uma das visitas ao Brasil, eles gravaram um EP com Maurício Pereira, interpretando juntos as canções Pra Marte, do compositor paulistano, em italiano, e uma versão de Eu Nasci No Meio de Um Monte de Gente, do quarteto, com o sax tenor de Pereira. “Me chamou a atenção o DNA de música pop que eles têm: timbres, arranjos, timing, uma coisa que o Pato Fu tem também. Eles também cantam absurdamente bem e abrem vozes lindamente”, explica Pereira. “Outra coisa que me pegou foi o fato de que eles são uma banda multipátrida, qualquer idioma é um idioma para eles. E o trabalho deles é leve e bonito, com canções de uma melancolia pós-moderna, enfrentando um mundo louco, cheio de solidões e trombadas afetivas.”
Entre 2013 e 2016, porém, o cenário no Brasil mudou, com a eclosão de uma crise econômica que afetou o câmbio – tema vital pra um grupo que se alterna entre dois países – e também reduziu orçamentos de fundos de incentivo à cultura, responsáveis por ajudar a Selton a circular pelo país. Aos poucos, a banda decidiu focar suas atenções na Itália. Até porque na mesma época o grupo conquistou seu primeiro hit de rádio por lá: Voglia di infinito, gravada no disco Loreto Paradiso. “Quando eles tocam essa música nos shows, é um negócio tipo Anna Júlia [sucesso da banda carioca Los Hermanos]”, conta o jornalista e curador cultural Julio Pacheco, que assistiu aos shows do grupo na Europa nessa época. O sucesso também abriu caminho para o quarteto assinar um contrato com uma grande gravadora, a Universal Music italiana, lançando o disco Manifesto Tropicale em 2017.
O disco novo veio acompanhado de um momento complicado para o grupo: a saída de Ricardo Fischmann. “Ele resolveu que queria mudar de vida e achou que se afastar da banda ia permiti-lo buscar outras coisas. Para nós, foi um momento muito delicado: uma banda é como um casamento, e quando uma pessoa não acredita mais nesse voto, ela coloca em xeque algo invisível que é muito grande”, conta Plentz. “O Ricardo trabalhava junto do nosso gerenciamento, então com a saída dele a gente ficou sem empresário, sem agência para marcar os shows… e sem um membro da banda, que cantava e compunha muito bem. O mundo não viu isso, mas foi um desespero total.” Procurado pela piauí, Ricardo não quis conceder uma entrevista. Em vez de desistir ou mudar de nome, os três seguiram em frente. Para esse novo começo, cada um se desdobrou um pouco – Plentz, por exemplo, passou a alternar a bateria com guitarra, cavaquinho, percussão e até algumas incursões eletrônicas.
Gravado ao longo de 2019, mas lançado apenas em 2021, em razão da pandemia, o disco Benvenuti mostra o agora trio num processo de reconstrução. “Chamamos vários produtores e músicos, para abrir geral e ver o que ia sair”, lembra Levy. Um deles foi o do produtor Guilherme Kastrup, que produziu quatro canções do trabalho em gravações em São Paulo – entre elas, a faixa-título e Fammi Scrollare, com a participação de Emicida e do rapper italiano Willie Peyote.
Em um momento em que a Itália também dava uma guinada à extrema direita com o crescimento e ascensão do partido nacionalista e conservador Fratelli D’Italia (Irmãos de Itália), liderado pela atual primeira-ministra Giorgia Meloni, o trabalho foi o primeiro totalmente cantado em italiano e se posicionou diretamente sobre o tema da imigração, no que a Billboard local descreveu como um “convite ao encontro”. “Só o fato de sermos quem somos, brasileiros fazendo música na Europa e misturando tudo, já é em si uma resistência. A gente tenta, na nossa dimensão, sensibilizar ao máximo as pessoas a terem um lugar mais inclusivo e com menos medo”, diz Plentz, que tem família alemã e portuguesa. A família de Dudu veio da Polônia pro Brasil, enquanto o pai de Ramiro é egípicio, além de somar origens gregas e italianas.
Talvez a Selton nunca tenha sido tão própria quanto em Gringo Vol.1, o disco que a banda lançou agora em maio – além do nome em si e de músicas em quatro línguas diferentes, às vezes tudo junto e misturado, há o conceito que inspirou o disco, elogiado na Itália por ser um “trabalho de maturidade” e, ao mesmo tempo, “um retorno às origens”, como disse a Rolling Stone local. “A gente sente que virou uma espécie de alienígena que é de todos os lugares, e de lugar nenhum ao mesmo tempo”, brinca Levy. O disco foi gravado em Londres e tem canções em italiano, espanhol, português e inglês. “Com toda a humildade do mundo e guardadas justas proporções, o Gringo é o nosso álbum branco”, gaba-se Levy, em referência a um dos principais álbuns do Beatles. Eles afirmam ter repertório para um segundo volume de “Gringo”, que incluirá as gravações feitas em Abbey Road – o trabalho ainda não tem data para sair.
Para lançar o disco, o grupo se apresentou no último sábado (25) no festival Mi Ami, em Milão, ao lado de bandas como Phoenix e Bar Italia. Depois, ponte aérea para o Brasil: a Selton tocou no Rio de Janeiro, na quarta-feira (29), no Blue Note Rio, e toca no Sesc Sorocaba, nesta quinta (30). O último show da rápida passagem pelo Brasil será no sábado, 1º de junho, no Sesc Pompeia, Zona Oeste paulistana. Entre julho e agosto, o grupo segue em turnê pela Itália com apresentações em festivais em Roma, Turim, entre outras cidades.
Depois de tanta história, de tocar Beatles na rua a usar os mesmos instrumentos que eles, pode parecer que não falta mais nada no filme do grupo. Ou não: “Eventualmente ganhar uma grana seria bom”, diz Levy. Plentz sonha mais alto: “Nós ainda podemos tocar com o Caetano Veloso ou Paul McCartney. O legal da música é que ela te permite conhecer muita coisa. Ainda tem muita aventura pra acontecer”, rebate o baterista. Hora de descer os letreiros, então: “to be continued…”
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