Liderança das mulheres da Terra Indígena do Xingu, filha mais velha de um importante cacique e sobrinha de outro, Watatakalu Yawalapiti viu sua família ser devastada pela Covid. Oito parentes morreram em decorrência da doença, incluindo a mãe, a pajé Iamoni Mehinako, e o tio, o cacique Aritana Yawalapiti, líder histórico dos povos do Alto Xingu, em Mato Grosso. “Nosso povo ficou órfão”, afirma a artista e ativista de 40 anos, coordenadora-geral do departamento de mulheres da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX-Mulher).
No relato a seguir, Watatakalu relembra a dor da perda e descreve como a campanha de desinformação e a má gestão da pandemia por parte do governo federal fizeram com que o vírus se espalhasse pelas áreas indígenas. Até março, segundo dados do DSEI Xingu (Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu), foram registrados entre os povos indígenas da região 1.894 casos e 21 mortes por Covid, 16 delas no Alto Xingu, onde vive a família de Watatakalu.
(Em depoimento a Bruno Weis e Sília Moan, do Instituto Socioambiental)
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Minha mãe, a pajé Iamoni Mehinako, era uma liderança feminina do povo Mehinako, uma das dezesseis etnias que habitam o Território Indígena do Xingu (ou Parque Indígena do Xingu, como é mais conhecido), no Norte de Mato Grosso. Criada em 1961, o TIX foi a primeira grande área indígena demarcada pelo governo federal, com 26 mil km2, onde vivem atualmente mais de 6 mil indígenas. Muito nova, Iamoni se casou com meu pai, o cacique Pirakumã Yawalapiti, e foi viver na aldeia dele.
Minha mãe fez questão de ensinar a mim e a minha irmã, Ana Terra, as tradições dos antepassados. Somos descendentes de quatro etnias: nossa avó era Kamayurá, nossa bisavó era Wauja e nossos avós, pais do nosso pai e da nossa mãe, eram Mehinako e Yawalapiti. Temos familiares espalhados pelas aldeias desses quatro povos. Aprendemos com ela que parente a gente tem que cuidar, receber em casa, não é só dizer: “Aquele ali é meu primo.”
Ela se levantava cedo para cozinhar. Nossa comida era tradicional, não era arroz e feijão. Sempre tinha mingau de pequi em casa. “A Iamoni vai fazer tucunaré com castanha de pequi”, festejavam. São coisas que, no dia a dia do nosso povo, já não eram tão comuns, então atraíam muita gente. “Vocês devem dividir os alimentos com todos. Na nossa cultura é assim: quando o líder tem algo, deve compartilhar com seu povo”, ensinava. Os primos do meu pai, que são caciques do Xingu, viviam em nossa casa. Conheço todos por causa disso.
À noite, minha mãe contava histórias na língua indígena. “Os brancos têm os documentos deles. Os nossos são a nossa língua e a nossa cultura. Vocês vão aprender português, mas dentro de casa vamos falar na nossa língua”, dizia. Aprendi os cantos com ela. “Vai ter um Kuarup [ritual xinguano em homenagem aos mortos] e você vai nos representar.” Às vezes, eu ia contra as tradições. Aos 15 anos de idade, não aceitei um casamento arranjado. Meu marido, Ianukulá Kaiabi Suiá, foi escolhido por mim.
Quando foi decretada a pandemia de Covid, em março de 2020, eu estava de quarentena porque tinha acabado de voltar da Bélgica, onde recebi um prêmio de um coletivo de mulheres feministas. Minha mãe me ligou e perguntou: “Disseram que a doença chegou ao Brasil, o que eu faço?” “Fique aí. Não vá visitar a Ana porque não sabemos como está a situação lá”, respondi. Ana, minha irmã, mora com o marido e os filhos na aldeia Yawalapiti. Minha mãe voltou a morar com os Mehinako após meu pai falecer em 2015.
A Covid entrou no território Xingu no final de maio de 2020, na região do Rio Culuene, e o primeiro boletim com casos confirmados saiu em junho. Em julho de 2020, Ana pegou a doença. Ela tinha passado um tempo com minha mãe entre os Mehinako, mas a pressionaram para voltar para a aldeia Yawalapiti e ficar com o marido. Na época, já havia casos de Covid ali, mas a convenceram a retornar mesmo assim: “A gripe não é forte, todo mundo aqui já pegou, pode vir.”
Quando voltou, Ana foi infectada pelo coronavírus. Ela foi tratada com cloroquina — medicamento comprovadamente ineficaz para casos de Covid — pelas equipes de saúde indígena no Polo-Base Leonardo Villas Boas, na região do Alto Xingu. “Eu falava nas redes sociais contra a cloroquina e estavam me dando cloroquina sem eu saber”, minha irmã contou. O caso foi se agravando e fui entrando em desespero. Ela chegou a ter mais de 80% do pulmão comprometido e sofreu duas paradas cardíacas.
Nossos parentes eram levados para receber tratamento médico na cidade e morriam. Teve um dia que escutei o barulho do avião levando o corpo do meu tio e temia que a minha irmã fosse a próxima. O povo falava: “De hoje, a Ana não passa.” Nossos parentes ligavam para minha mãe e diziam: “Você é pajé e tem que vir cuidar da sua filha.” Mas não a deixei ir porque ela poderia se infectar.
Meu tio, o cacique Aritana Yawalapiti, morreu por complicações da Covid no dia 5 de agosto de 2020. A morte dele foi um choque para todos nós. O Xingu todo parou. Nosso povo ficou órfão. Sabe um cachorrinho largado e sem dono? Eu me senti assim. Quando contei para minha mãe, ela começou a chorar. Naquele momento, as pessoas das aldeias já tinham percebido que não era uma “gripezinha”, como havia dito o governo federal, porque vários parentes nossos estavam morrendo por causa da doença.
Em agosto de 2020, houve a suspeita de um caso de Covid na aldeia Mehinako. Tiramos então minha mãe, meus irmãos e meus sobrinhos de lá e levamos para a cidade de Canarana (MT), vizinha à Terra Indígena do Xingu, onde moro com meu marido e meus filhos. Depois de um tempo trouxemos também minha irmã, Ana. Ela estava melhor, apesar de ainda usar tubo de oxigênio.
No final de 2020, fomos para a aldeia Ytapap. Queria que minha mãe fosse junto, mas ela preferiu ficar em Canarana. Ela tinha pressão alta e sentia dores nas pernas. “Vou fazer uns exames médicos e depois vou para a aldeia”, disse. No entanto, ela pegou uma pneumonia. Melhorou, mas preferiu permanecer na cidade, caso precisasse de um médico. Chamou uma irmã e uma sobrinha para fazerem companhia.
A vacinação no Xingu começou em fevereiro de 2021. Dias antes recebemos a notícia do pessoal do DSEI Xingu (Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu, do Ministério da Saúde, responsável pelo atendimento médico da região) de que apenas os indígenas cadastrados como moradores das aldeias seriam vacinados. Mas, assim como eu, muitos parentes têm casa na cidade. Meu marido, Ianu, é presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX) e eu sou coordenadora-geral da ATIX Mulher. Temos casa em Canarana (MT) porque é onde fica a sede da ATIX, mas nasci e cresci na aldeia e estou sempre indo e vindo de lá.
Antes do início da vacinação, nós perguntamos várias vezes às equipes de saúde do DSEI: “Vocês precisam de ajuda? Estão com todas as informações para o cadastro indígena? Porque há parentes em trânsito.” Elas diziam que estava tudo certo. Quando soube que aqueles que possuem residência na cidade não seriam vacinados naquele momento, fiquei revoltada: “Como assim não vamos ser vacinados?” Ameacei amarrar os funcionários da saúde até que todos os parentes recebessem a vacina. Virou uma confusão tão grande que o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, teve que ir lá checar o que estava acontecendo.
Minha mãe tomou a primeira dose de CoronaVac em fevereiro de 2021 em Canarana. Ela obrigou a técnica de saúde do DSEI Xingu a vaciná-la e só conseguiu tomar a segunda dose após 60 dias – com 30 dias de atraso. Mesmo assim, depois de muita briga. Minha mãe morava na aldeia Mehinako, mas estava passando um tempo em Canarana para se proteger. Ela falava bem português, então cobrava a segunda dose dos responsáveis pela vacina, mas eles ficavam enrolando. Chegou um momento em que pararam de responder às mensagens dela. Meus tios e o agente indígena de saúde da aldeia Mehinako tiveram que intervir. Em meados de abril, ela, enfim, recebeu a segunda dose. Se tivesse tomado um mês antes, a chance de estar viva seria maior.
No final de abril, decidi ir para Canarana ficar com a minha mãe, mas soube então que minha tia e minha prima estavam lá. Quando ela me contou, eu surtei: “Você não pode receber ninguém em casa.” Ela falou: “Estou tentando orientá-las a não sair.” Na véspera de encontrá-la, liguei e falei: “Amanhã estou aí.” Ela respondeu: “Melhor você não vir porque acho que estou gripada, com uma sensação ruim no corpo.” Perguntei se ela tinha feito o teste de Covid. “Fiz, mas o resultado sai só daqui a dez dias”, ela respondeu. Falei para ela ficar em cima do pessoal da Casai (Casa de Saúde Indígena). “O pessoal da Casai não cuida da gente, estou ligando, mas eles não retornam”, ela disse.
Cheguei em Canarana no dia 3 de maio. Fiz uma videochamada com a minha mãe. Ela estava tossindo e tentando disfarçar. De noite, pedi para o meu irmão medir a saturação dela. Estava em 92. Aí fiquei bem preocupada. Conversei com o pessoal da Casai e perguntei se ela tinha feito exame de tomografia. Ela não tinha feito. Perguntei por quê, e eles disseram que o DSEI não tem dinheiro para isso.
Minha mãe me contou que ofereceram tratamento com cloroquina, mas ela se recusou a tomar e devolveu. Pedi para fazerem o teste de Covid particular e veio o resultado positivo. Até então minha mãe não tinha certeza de que estava com Covid. Fiz uma videochamada com ela e falei: “Mãe, você tá com Covid. Como está se sentindo?” Aí ela me contou: “Tô muito ruim, nunca senti isso.” Pedi para fazerem o exame de tomografia e o pulmão já estava todo comprometido.
Ela teve contato com uma pessoa com sintomas de Covid no dia 16 de abril. Àquela altura, tinha se infectado fazia mais de duas semanas. Nesse período, não cuidaram da minha mãe nem deram os remédios certos para ela. Ela piorou e foi levada para um hospital em Querência (MS). Conseguimos uma UTI aérea para levá-la a um hospital em São Paulo. Mas, quando chegou ao aeroporto, ela começou a ficar roxa e teve parada cardíaca. O médico perguntou à minha irmã: “Levamos mesmo assim? Você precisa decidir.” Aí a levaram de volta ao hospital em Querência e ela ficou mais uma semana lá.
Eu tinha pegado Covid e estava em Canarana. Mas ainda consegui visitá-la no hospital em Querência. Como já estava com sintomas, me deixaram ir. Esses momentos finais foram muito difíceis. Abrimos um grupo de mensagens com os irmãos dela e fomos acompanhando juntos os boletins médicos. Ela não conseguiu sobreviver porque aquele hospital não tinha condições de cuidar dela, era muito precário. Ficou entubada em uma UTI e morreu no dia 25 de maio.
Trouxemos o corpo para nossa casa de Canarana. Quando Ana abriu o caixão, passou mal. Ficou com falta de ar, tontura e começou a vomitar. Foi muito forte ver o corpo da minha mãe cheio de seringas e agulhas. Eu não estava pronta para fazer a preparação do corpo dela, mas não podia deixar ser enterrada daquele jeito. Normalmente quem faz isso são outras pessoas, mas não podíamos pedir isso a ninguém por causa do risco de contaminação. Eu e minha irmã já estávamos com Covid.
Demos banho no corpo dela, arrumamos o cabelo e pintamos seu rosto. Colocamos um vestido que ela gostava, fechamos o caixão e o levamos para a aldeia Mehinako. Quando chegamos, o túmulo já estava pronto. Minha mãe foi enterrada como uma liderança tradicional. Na nossa cultura, chorar no enterro é sinal de respeito, mas pedimos para os parentes pararem porque seus pulmões estavam debilitados. A aldeia inteira estava com Covid. “A gente não vai se ofender se vocês não chorarem”, explicamos.
Desde que a pandemia chegou ao território Xingu, além da minha mãe, perdi dois tios, duas primas, uma tia-avó, um tio-avô e o marido da minha prima por conta da Covid. Foram oito pessoas da minha família direta. Durante todo esse tempo, a saúde indígena nos abandonou. Quando se criou a Funai (Fundação Nacional do Índio) nos anos 1960 e depois a saúde diferenciada no final dos anos 1990, o objetivo era auxiliar os povos indígenas, e não é isso o que está acontecendo.
Tudo o que temos hoje não nos foi dado, fomos nós que conquistamos. Nossos antepassados conseguiram com muita luta. A Funai foi uma conquista da geração do meu avô. O DSEI e a questão da saúde diferenciada são da época dos nossos pais. Meu pai levava muito branco para dentro da nossa terra, para eles verem como era difícil a situação e cobrava uma resposta do governo.
É muito fácil a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) fazer uma visita rápida e divulgar um vídeo dizendo: “Estamos fazendo esse trabalho.” Mas quando nosso parente fala: “Precisamos de remédio de verdade”, esse remédio não é a Sesai que dá pra gente. Os EPIs (equipamentos de proteção individual), as máscaras, o álcool em gel e os medicamentos que a gente recebeu na pandemia não vieram da Sesai. O atual governo federal é uma ameaça à vida dos povos indígenas. É essa situação que é preciso mudar.