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    Ilustração: Carvall

questões educacionais

Alunos que a pandemia levou embora

Abandono escolar disparou entre crianças brasileiras de 5 a 9 anos, mas diminuiu entre adolescentes – fato inédito, causado pelo desemprego

Amanda Gorziza | 31 jan 2022_16h19
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Faz dois anos, um mês e quinze dias que Pedro Gabriel, de 8 anos, não pisa no colégio. Desde o início de 2020, quando a pandemia chegou ao Brasil, a Escola Municipal Santa Luzia, onde ele estuda, em Iranduba, no interior do Amazonas, não reabriu as portas, de modo que a última aula presencial a que ele assistiu foi no ano letivo de 2019. De lá para cá, as lições têm sido repassadas somente por WhatsApp. A família teve de se virar para acompanhar as tarefas com o menino, o que nem sempre foi possível. Na casa onde vivem cinco pessoas – o pai, a mãe, Pedro Gabriel e os dois irmãos –, só há um celular. A internet, obtida graças a uma antena presa numa vara de madeira do lado de fora da casa, oscila toda vez que venta.

Graças ao esforço dos pais, a criança conseguiu se alfabetizar a duras penas durante o isolamento, mas ficou com buracos no aprendizado. “A pandemia afetou o desempenho dele, pois não tem o acompanhamento de um profissional qualificado. Se pudesse tirar dúvidas com os professores, e não com a gente, teria sido bem melhor”, constata Deyvid Barbosa, de 37 anos, pai do menino. Barbosa trabalha como microscopista numa Unidade de Saúde de Iranduba e passa o dia fora. Quando chega em casa, à noite, ajuda Pedro Gabriel e os dois outros filhos – Deyseane e Henrique, ambos de 14 anos – a conferir as atividades enviadas pelos professores. Sua mulher, Eliany de Castro, é dona de casa e também auxilia as crianças. O casal era beneficiário do Bolsa Família e agora é contemplado pelo Auxílio Brasil, programa criado pelo governo Bolsonaro.

Mesmo com a dificuldade de adaptação ao ensino remoto, Barbosa e Castro não tiraram o filho da escola. Mas a realidade foi diferente para alguns colegas de Pedro Gabriel, cujos pais, por variadas razões, desfizeram suas matrículas durante a pandemia. Esse perfil de crianças – com idades entre 5 e 9 anos, moradoras de cidades do interior, sobretudo no Norte do país, e cujas famílias estão em programas de transferência de renda – foi o que apresentou o maior crescimento na taxa de evasão escolar nos últimos três anos.

Entre os últimos trimestres de 2019 e 2020, a taxa de evasão escolar no Brasil subiu de 1,4% para 5,5% entre os alunos com idades de 5 a 9 anos. Isto é: 5,5% das crianças brasileiras dessa faixa etária não estavam matriculadas na escola. É o pior patamar registrado nesse grupo desde 2006. No terceiro trimestre de 2021, a taxa recuou para 4,2%, mas ainda permaneceu 128% mais alta que o observado no terceiro trimestre de 2019. Os dados são de uma pesquisa publicada pela Fundação Getulio Vargas (FGV).

Entre os adolescentes, por outro lado, ocorreu um fenômeno atípico: a evasão escolar entre alunos de 15 a 19 anos diminuiu na pandemia, passando de 28% no último trimestre de 2019 para 22% no mesmo período de 2020, menor percentual da série estatística. A redução nesse caso é surpreendente, já que historicamente a evasão escolar é maior entre alunos mais velhos, que muitas vezes largam os estudos para começar a trabalhar. O problema, no caso, foi justamente esse: para muitos adolescentes, não havia trabalho.

“A diminuição da evasão entre os alunos mais velhos teve a ver com a crise e o desaquecimento do mercado de trabalho, além da prática de aprovação e presença automáticas nas escolas. Os jovens não tiveram oportunidades de emprego durante a pandemia, então ficaram matriculados na escola para ganhar o diploma”, explica o economista Marcelo Neri, que coordenou o estudo da FGV. A tendência de diminuição da evasão escolar foi observada em todas as faixas etárias que vão dos 15 aos 29 anos.

Para os alunos pequenos, o cenário foi mais complicado. “As crianças mais novas são dependentes do professor, têm menos autonomia para lidar com a internet e apresentam maiores taxas de isolamento social rigoroso”, ressalta Neri. Prestes a começar o 3º ano do Ensino Fundamental, Pedro Gabriel ainda não sabe quando voltará à sala de aula, já que a variante Ômicron causou um recrudescimento no número de casos de Covid na região onde mora. “Ele sente muita falta dos colegas e da professora, mas, infelizmente, a situação é essa. A gente não pode desrespeitar as medidas contra a Covid”, lamenta seu pai.

 

A pesquisa da FGV utilizou dados da Pnad Covid, levantamento realizado pelo IBGE durante a pandemia. A partir desses números, a equipe coordenada por Neri desenvolveu uma metodologia para analisar a quantidade de matrículas, se os alunos estão recebendo atividades para estudar em casa e quanto tempo dedicam diariamente e semanalmente aos estudos. A pesquisa concluiu que os estudantes mais jovens da rede pública, que moram em cidades pequenas e em locais remotos foram os que mais perderam tempo de estudo. Em setembro de 2020, alunos de escolas particulares dedicaram, em média, 3h6min do dia para estudar, enquanto na rede pública a média foi de 2h18min. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece que a jornada mínima deve ser de 4 horas.

O IBGE mediu o tempo de estudo dos alunos em somente dois anos na série histórica da Pnad: em 2006 e em 2020. Os dois anos, coincidentemente, registraram índices de evasão similares. O tempo gasto com estudos, no entanto, foi muito menor em 2020: os estudantes de 6 a 15 anos estudaram uma média de 2h23min por dia no primeiro ano de pandemia, contra 4h07min em 2006. Entre as famílias que recebiam Bolsa Família, a mudança foi ainda maior, passando de 4h01min de estudo por dia para apenas 2h01min, em média.

“Vamos levar cinco anos para recuperar o tempo perdido”, lamenta o professor Manoel de Araújo, de 53 anos. Ele é diretor da Escola Municipal Edilsa Maria Batista, localizada em Assis Brasil, município de 7,6 mil habitantes no Acre. O colégio só atende alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. Segundo Araújo, a maioria dos pais dos estudantes é funcionário público ou autônomo e as mães, donas de casa.

Houve uma baixa evasão no colégio, com exceção de alguns estudantes peruanos que voltaram ao país de origem no começo da pandemia (como Assis Brasil faz fronteira com Peru e Bolívia, casos assim são comuns). Araújo, porém, pôde ver na prática o impacto da pandemia sobre o aprendizado das crianças. Em setembro de 2020, a escola fez um levantamento e concluiu que só 53% dos alunos estavam recebendo lições por WhatsApp e cumprindo as atividades propostas pelos professores. No começo da pandemia, todo o conteúdo era repassado por meio do aplicativo. A direção do colégio não demorou a constatar, porém, que muitos alunos não conseguiam acessar a internet, e por isso passou a entregar tarefas impressas na casa das crianças. A mudança surtiu efeito, e a participação dos estudantes chegou a 82% no final do ano letivo de 2020 (que só terminou em abril de 2021).

De acordo com a pesquisa da FGV, 12% dos alunos brasileiros (o que representa em torno de 3,5 milhões de crianças) passaram parte da pandemia sem receber qualquer conteúdo escolar, fossem aulas ou tarefas para fazer em casa. Os estudantes da região Norte foram os que menos se envolveram e, na faixa etária de 6 a 15 anos, o Acre foi o estado que apresentou menor tempo médio de estudos em 2020, totalizando 1h23min diários.

Araújo relata que as turmas com maiores dificuldades foram as do 1º ano – etapa em que as crianças se alfabetizam e, por isso, dependem muito do professor – e as do 5º ano – devido à complexidade dos conteúdos. No último bimestre de 2021, a escola retomou parcialmente as aulas presenciais: metade das turmas compareciam numa semana e a outra metade comparecia na semana seguinte. A expectativa dos professores era diagnosticar a situação de aprendizado das crianças. O resultado não foi animador: segundo Araújo, parte das crianças apresentou conhecimentos muito abaixo do nível esperado. “Nós criamos uma expressão para definir o que aconteceu durante a pandemia: foi uma ‘distorção série-habilidade’”, explica o diretor da escola, frustrado. “O que acontece é que a série em que muitos alunos estão não condiz com as habilidades deles.”

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