Os planos para as férias começaram em janeiro, com a reserva de um Airbnb romântico no alto da Ilha de Capri, na Itália, com um pontinho de vista para o mar azul anil. Terminaram na segunda quinzena de março, em um quarto de hotel que amanheceu alagado pelo ar-condicionado defeituoso, em Corumbá, na fronteira do Brasil com a Bolívia, após uma tragicômica saga de cinco dias para voltar para São Paulo antes do início das quarentenas na América do Sul. Nos dois meses que separaram os planos da realidade, o novo coronavírus havia saltado da casa das dezenas de vítimas para a das centenas de milhares, fechando as fronteiras do mundo como nunca antes na história da humanidade. No Brasil, que registrava o maior número de casos entre os países sul-americanos, o governo esticou a corda até o limite, lidando com a crise como se fosse uma “gripezinha” e liberando a entrada indiscriminada de estrangeiros até o dia 22 de março.
Olhando em retrospecto, tirar férias em meio a uma pandemia parece sandice. Ainda mais para uma jornalista que escreveu uma reportagem intitulada “Rumo à quarentena global: a distopia do coronavírus”, no final de fevereiro, com apenas um caso confirmado no Brasil. Houve quem achasse exagerado. Mas era o que os epidemiologistas de respeito diziam: a única forma de conter o novo coronavírus, ainda sem tratamento ou vacina, era restringir o contato entre as pessoas. Duas semanas e meia depois, no exterior, eu me perguntava: como fui parar nessa furada? A resposta é: tentei fazer os números do coronavírus se encaixarem no meu cronograma de férias. Mais que otimista, fui terraplanista. Depois de três anos sem tirar férias juntos, por falta de dinheiro ou tempo, eu e Alan, também jornalista, iríamos viajar, com ou sem pandemia.
Quando compramos as passagens para a Itália, em 14 de janeiro, havia menos de cinquenta casos do novo coronavírus no mundo, só um fora da China. Ninguém mudava planos por causa da doença. Nossos dilemas eram deliciosamente frívolos: o Alan queria me convencer a acompanhá-lo ao Vaticano, em Roma, enquanto eu queria que ele se juntasse a mim para uma aula de gastronomia italiana, do fettuccine ao tiramisú. Só em 31 de janeiro a Itália registrou seus primeiros dois casos. Em 20 de fevereiro, ainda eram três. A partir daí, a situação explodiu no Norte do país. Ainda assim, até o início de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o governo brasileiro recomendavam aos viajantes que evitassem apenas o Norte italiano. Decidimos cancelar a viagem. Em 9 de março, dia em que pegaríamos o avião para Roma, a Itália decretou quarentena total. Conseguimos reembolso de todos os gastos – exceto dos ingressos para o Vaticano. Brinquei no Twitter: será que isso significa que estou com crédito com Deus? Dias depois, o Vaticano devolveu o dinheiro. Senti um nervosismo supersticioso: não seria melhor deixar o crédito com o Divino em aberto?
Trocamos a ilha italiana por um chalé romântico no Chile, de frente para os vulcões do Atacama. Em um deserto, imaginávamos, estaríamos a salvo do coronavírus. Quando fizemos a escolha, em 4 de março, o número de casos no mundo havia saltado para 95 mil, e só havia um no Chile. No Brasil, eram quatro. Seriam dez dias de férias. Nos meus cálculos, São Paulo poderia estar às portas de uma quarentena quando voltássemos. Tomei medidas de precaução: renovei a carteira de motorista no Poupatempo da Praça da Sé, pensando que a instituição poderia estar fechada na volta. Comprei ração para a gata e o cachorro. Fiz supermercado. Aconselhei a todos que encontrei que adquirissem uma caixa extra dos remédios sem os quais não vivem – poderia haver uma corrida às farmácias que esgotasse algum medicamento. Todos me olhavam com curiosidade: que pessoa paranoica! Em 11 de março, a OMS decretou pandemia de coronavírus. Depois de deixar minha casa pronta para o apocalipse, peguei o passaporte e fui viajar.
Era sexta-feira, 13, quando embarcamos para o Chile. No aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, a única referência ao novo coronavírus era um comunicado sonoro – naquele dia, havia 151 casos no Brasil. Já no Chile, que registrava 43 casos, tivemos que assinar um termo juramentado informando se tínhamos sintomas da doença e por quais países havíamos passado. Quem vinha da Itália ou da Espanha era obrigado a ficar em quarentena por catorze dias. Nossa temperatura foi medida e recebemos um folheto com informações sobre o coronavírus e um número de telefone para ligar em caso de sintomas. Perto do Brasil, o Chile parecia o paraíso do sanitarismo. Ao fim do dia, saímos a pé para tomar uma cerveja em Santiago. Inadvertidamente, escolhemos o mesmo trajeto de um protesto de estudantes – a avenida Libertador Bernardo O’Higgins, no Centro da cidade. Enquanto as moças chilenas estavam de máscara de gás estilo Chernobyl, eu estava de rosto descoberto e batom vermelho. Saímos de lá correndo de mãos dadas, intoxicados pelo gás lacrimogêneo atirado pela polícia.
A passagem por Santiago foi breve. Logo chegamos ao desejado Atacama. A janela da cabana dava visão para um vulcão nevado. Inocentes, decidimos que, dentro de alguns dias, tentaríamos escalá-lo. Naquela noite, esquecemos por algumas horas que uma pandemia assolava o planeta, enquanto participávamos de uma observação das estrelas. Até que ouvimos um casal gaúcho anunciar que um grupo de amigos havia sido enxotado da Argentina por causa do coronavírus. Às 23h55, meu irmão escreveu: “A Argentina fechou a fronteira até abril.” Contra todos os meus cálculos, começava a quarentena na América do Sul. Imaginei que o Chile não demoraria a seguir o país vizinho. No dia seguinte, 16 de março, o presidente chileno Sebastián Piñera decretou que todas as fronteiras – inclusive as aéreas – seriam fechadas em 48 horas. As férias haviam acabado, três dias depois de terem começado. Era hora de organizar a volta para casa.
A única maneira de ir diretamente do Chile para o Brasil é de avião, já que os países não fazem fronteira – no meio dos dois, está a Argentina. Pagamos R$ 918 para antecipar o voo de Santiago a São Paulo. Mas a antecipação jamais foi confirmada pela empresa aérea. Comecei a calcular opções. Segundo o DataAmanda (desculpem a piadinha), sete em cada dez turistas no Chile eram brasileiros. Visualizei a cena do aeroporto de Santiago lotado de brasileiros disputando a tapa os últimos aviões. Nossas chances me pareceram pequenas demais. Por outro lado, o Atacama estava próximo da fronteira com a Bolívia, que, por sua vez, faz fronteira com o Mato Grosso do Sul. Pensei: se formos para a Bolívia, teremos a segurança de que voltaremos para casa. Além disso, a Bolívia tinha apenas onze casos de coronavírus, não iria decretar quarentena com um quadro epidemiológico tão confortável. Na madrugada de 17 de março, pegamos um ônibus que levaria oito horas até Uyuni, na Bolívia.
Na fronteira boliviana, tivemos que preencher um formulário com perguntas sobre o coronavírus. Mesmo com tão poucos casos, a Bolívia estava sendo mais cautelosa do que o Brasil. Concluídos os trâmites migratórios, voltamos para o ônibus. Pouco depois, quando o veículo tentou fazer sua única parada para banheiro e comida, os passageiros bolivianos começaram a protestar. “Por favor, não desçam”, suplicou uma senhora na primeira fila do ônibus. Ela dizia que era preciso chegar o mais rápido possível, para não sermos pegos pela quarentena. Quarentena? Na Bolívia? Senti a espinha gelar e voltei para a poltrona, cabisbaixa. Seguimos viagem. Assim que chegamos a Uyuni, por volta de 13h30, soubemos que o governo interino da Bolívia, que assumiu após a renúncia de Evo Morales, havia decretado que, em 72 horas, as fronteiras do país seriam fechadas e todos os transportes de passageiros, aéreos ou terrestres, seriam interrompidos. Até lá, ônibus e carros só estavam autorizados a sair no período da manhã. Esperávamos chegar à Bolívia vitoriosos, livres da quarentena. Mas entramos no país com o tempo martelando em nossas cabeças: tínhamos três dias para percorrer os 1,5 mil quilômetros que nos separavam da fronteira, sob severa limitação dos transportes.
Uyuni, um dos pontos turísticos mais importantes da Bolívia, parecia uma cidade de faroeste prestes a ser atacada: seca, entocada, vigilante. Poucas pessoas ousavam ficar na rua. A maior parte do comércio estava fechada. O vento fazia rodopiar pelo ar sacolas plásticas e pedaços de papel jogados no chão. Passar a quarentena ali seria o pior cenário possível. Era preciso pressa. Passagens de avião? Esgotadas. Carro para alugar? Não havia. A única opção era pegar um ônibus na manhã seguinte para Sucre, cidade boliviana no caminho até a fronteira com Brasil. Para comprar a passagem, precisaríamos de moeda boliviana. Entramos na única casa de câmbio aberta. “Queremos trocar reais”, dissemos. “Não trocamos reais”, respondeu um boliviano invocado. “Se eu troco real hoje, perco amanhã. O real desvaloriza muito. Não vale a pena.” Naquele dia, a cotação dólar-real tinha batido R$ 5. A nossa sorte era que eu tinha uma nota de 50 euros, guardada há anos junto com o passaporte. Trocamos o dinheiro e compramos a passagem. À noite, descobrimos outra determinação do governo boliviano: a partir das 17h, militares com máscaras cirúrgicas andavam em grupos pelas ruas para fazer cumprir o toque de recolher. A Bolívia havia se transformado em Wuhan.
Na manhã seguinte, antes de pegar o ônibus, telefonamos para a Embaixada do Brasil na Bolívia. Ao telefone, uma diplomata brasileira, muito gentil, praticamente nos mandou correr para as montanhas: “Cheguem até a fronteira antes que feche.” Nenhuma instrução sobre como ir de Sucre ao Brasil ou horários autorizados para o transporte. Foi o dia mais tenso. O ônibus pararia no meio do caminho, na cidade de Potosí, onde trocaríamos de veículo. Não sabíamos, mas era uma operação clandestina. Havendo ingressado em uma cidade, as regras da quarentena não permitiam que o ônibus seguisse viagem para outro lugar no mesmo dia. Seria preciso aguardar até o dia seguinte. De fato, quando chegamos a Potosí, a rodoviária já tinha sido fechada. Disposto a nos levar a Sucre, o motorista dirigiu até um ponto afastado da cidade, longe dos olhos das autoridades. Ali, o segundo ônibus nos esperava. Respirei aliviada.
A tranquilidade durou pouco. Na saída da cidade, havia bloqueio policial e uma fila de veículos. O motorista do ônibus parou, saiu do volante e pediu aos passageiros, assustado: “Se perguntarem aonde vamos, digam Betanzos. Não vão nos deixar ir até Sucre.” Ficamos tensos. Se não chegássemos a Sucre naquela noite de quarta-feira, não teríamos chances de entrar no Brasil antes do início da quarentena. A quinta-feira era o dia D: havíamos conseguido um voo de Sucre para Santa Cruz de La Sierra, a cidade boliviana de grande porte mais próxima da fronteira brasileira – ainda assim, a 650 quilômetros. De lá, tentaríamos avião, ônibus, trem, táxi, qualquer meio de chegar ao Mato Grosso do Sul. Receoso de não ser autorizado a seguir, o motorista (bendito seja!) deu meia-volta na fila do bloqueio e pegou um atalho por uma estrada de terra, longe do cerco policial. Seguimos viagem.
Às 19h, o ônibus parou de vez. Havíamos chegado aos pés da montanha onde a cidade de Sucre está instalada. O acesso estava bloqueado por militares de capacete e máscaras, abrigados em capas de chuva verde-oliva com formato de poncho andino. Estavam ali para fazer cumprir o toque de recolher, que começara duas horas antes. O ônibus não poderia passar. Poderíamos entrar na cidade, mas a pé. Olhei para o topo da montanha, 150 metros acima – algo como um prédio de cinquenta andares. Avistei, no alto, as silhuetas das construções históricas de Sucre, amareladas pela iluminação urbana. Suspirei. Teríamos que chegar até lá. Pegamos as malas e começamos a subir. O trajeto de quatro quilômetros era ainda mais difícil por causa da altitude – 2,8 mil metros, quase quatro vezes a de São Paulo. Mário, um brasileiro que conhecemos no ônibus e que tentava chegar à fronteira com seu irmão Bruno, me deu folhas de coca para mascar – a planta ajuda a camuflar os efeitos da altitude. No início do trajeto, um militar gritou: “Detener, ocho horas.” Tínhamos apenas uma hora para subir a montanha, senão poderíamos ser levados ao quartel. Pela cidade vazia e silenciosa, crianças bolivianas iam à janela observar os estrangeiros que perturbavam a quarentena. Exatamente às 20h, chegamos a um hotel, esgotados mas triunfantes.
Na alvorada seguinte, pegamos um táxi para o aeroporto de Sucre. Apertei a mão do Alan e deitei a cabeça em seu ombro. Naquele momento, achei que não conseguiríamos sair da Bolívia. Pensei nos nossos pais no Brasil. E se acontecesse algo com eles? Pensei também em tudo que poderia ocorrer no nosso país, enfurnado em uma disputa política que retardava as ações contra o novo coronavírus. Por causa das medidas draconianas impostas pela Bolívia, talvez não chegássemos em casa. Mesmo assim, eu sentia extremo respeito pela decisão do governo boliviano. A Bolívia estava certa. Se o sistema de saúde não pode garantir atendimento a todos, o melhor a fazer é restringir o contato e evitar que a doença se espalhe rápido demais. Eu estaria mais tranquila se soubesse que o Brasil estava promovendo o isolamento naquela altura. No aeroporto, tivemos nossa temperatura medida mais uma vez. A grande maioria dos aeroportos brasileiros não estava fazendo o mesmo, nem no caso de voos vindos do exterior.
Ao chegarmos em Santa Cruz de La Sierra, nos disseram que não havia mais lugares disponíveis nos voos para o Brasil. A fila de espera tinha dezenas de pessoas, brasileiros e estrangeiros de várias nacionalidades que, cercados por quarentenas de todos os lados, tentavam embarcar para o Brasil, um dos únicos países que ainda os recebia. Um senhor boliviano com quem comecei a conversar por acaso nos deu a melhor notícia de toda a viagem: os últimos ônibus para a fronteira sairiam dentro de poucas horas. Pegamos um táxi e partimos para a rodoviária. No caminho, contei para o taxista nossa saga e chorei como criança. Quando peguei os bilhetes de ônibus na mão, chorei outra vez.
O ônibus leito tinha dezenove lugares vagos. Um pouco mais de informação por parte do serviço diplomático brasileiro certamente teria ajudado mais pessoas a chegar até ali. O Ministério das Relações Exteriores estima que cerca de seis mil brasileiros continuam retidos fora do país. Era noite quando finalmente chegamos à fronteira. No lado boliviano, militares pediram para ver nossos passaportes. No lado brasileiro, a Polícia Federal observou de longe, sem fazer nada, pessoas de diversas nacionalidades ingressarem no país – apesar de, horas antes, o governo brasileiro ter publicado um decreto impedindo estrangeiros de entrarem no Brasil por terra. A restrição só seria posta em prática na manhã seguinte. A primeira coisa que li em português foi “Receita Federal” – que também atua na fronteira. Nunca essas palavras motivaram tamanha alegria.
Para chegar a Corumbá, a alguns quilômetros da fronteira, dividimos um táxi com dois brasileiros que estudam medicina na Bolívia. O motorista, um bolsonarista barrigudo, foi logo dizendo que o coronavírus era uma grande “paranoia”. Certa estava a Bolívia, dissemos eu e Alan. O taxista e os dois estudantes se incomodaram com nosso elogio ao país vizinho e começaram a criticar a corrupção boliviana. Até para futuros médicos, a divisão política se sobrepunha às necessidades da saúde pública. Por volta de 22h, chegamos a Corumbá. Não havia toque de recolher. Bares e restaurantes funcionavam normalmente, ao som sertanejo. Ao contrário de Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai, Colômbia e Peru, o Brasil estava apenas começando a planejar sua quarentena, em meio a uma queda de braço entre presidente e governadores. Naquele 19 de março, o número de casos no país passava de seiscentos – quatro em cada dez de toda a América do Sul. Nossas férias ficavam para trás. À nossa frente, um Brasil sem rumo definido. Ainda assim, como é bom estar em casa. Mesmo de quarentena.