Aqui afogamos argelinos
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O documentário Aqui afogamos argelinos, dirigido por Yasmina Adi, passou meio despercebido no Festival do Rio, encerrado no início de outubro, apesar da recomendação feita por Consuelo Lins no Globo (“Rioshow”, 28/09/2012).
O documentário , dirigido por Yasmina Adi, passou meio despercebido no Festival do Rio, encerrado no início de outubro, apesar da recomendação feita por Consuelo Lins no Globo (“Rioshow”, 28/09/2012).
Nas fotos disponíveis no Facebook, há uns 15 gatos pingados, com expressões desoladoras, na plateia do debate, realizado no Centro Cultural da Justiça Federal com a participação da diretora. E a sessão do filme, no último dia do Festival, também teve minguados espectadores. Daí ser possível considerar quase nula a repercussão de durante o evento.
Reflexo, em parte, do gigantismo do Festival que dificulta os filmes exibidos de receberem a atenção que merecem, no caso de , em particular, a ausência de comentários é ainda mais inexplicável e parece ter outras implicações, inclusive a de reiterar a crescente irrelevância do cinema fora do seu próprio âmbito. Como já vai se tornando lugar comum dizer, filmes chegam com atraso – depois dos fatos serem relatados e estudados por jornalistas e historiadores –, tendo participação cada vez mais marginal no debate de ideias.
Duas semanas depois do Festival do Rio, o presidente da França, François Hollande, reconheceu oficialmente, em nome da República francesa, o assassinato em massa de manifestantes argelinos que protestavam contra o toque de recolher imposto aos “muçulmanos franceses da Argélia” pelo chefe da polícia de Paris, Maurice Papon, em outubro de 1961 – justamente, o assunto de .
Ainda assim o silêncio sobre o filme persistiu. A propósito do reconhecimento público de Hollande, não parece ter ocorrido a ninguém sequer mencionar o documentário de Yasmina Adi. O acaso da exibição no Rio ter ocorrido dias antes do presidente romper o silêncio de 51 anos do Estado francês sobre o episódio, não teria merecido ao menos um registro? É claro que alguma referência, da qual não tenhamos tomado conhecimento, pode ter sido feita, mas não a encontramos. Nem mesmo Dorrit Harazim, além de jornalista também documentarista, fez menção a ao tratar do assunto em seu artigo de domingo, publicado dias depois do comunicado de Hollande (“Sem medo da verdade”, O Globo, 21.10.2012).
Segundo o comunicado em que o presidente francês rende homenagem à memória das vítimas, “argelinos que participavam de uma manifestação pela independência foram mortos numa sangrenta repressão. A República reconhece com lucidez esses fatos”. Dois pesquisadores britânicos, por sua vez, citados por Harazim, consideram o massacre cometido “a mais violenta repressão praticada por um Estado da Europa Ocidental contra uma manifestação de rua”.
Mesmo sendo avaliada, de forma geral, como positiva, a declaração do presidente da França não deixou também de ser duramente criticada. O reconhecimento da atrocidade chegou a ser chamado de “ato político cínico e calculado” por “não especificar o balanço dos mortos, nem abrir os arquivos da polícia sobre esse período, que continuam inacessíveis”. E também por não explicar por que “o Estado francês recusou durante meio século admitir o massacre”.
A petulância de quem pintou, em 1961, “ici on noie les algeriens” (aqui afogamos os argelinos) na amurada da ponte Saint-Michel, em Paris, é tão chocante quanto a revelação dos fatos em si, conforme relatados pela imprensa francesa: “entre algumas dezenas e várias centenas de pessoas foram atiradas no Sena, mortas a tiros, com o crânio fraturado por cabos de picaretas ou coronhas de fuzis. O balanço oficial, redigido na época pelo chefe da polícia, Maurice Papon, foi de três mortes ‘causadas por policiais em legítima defesa’”.
A menção a várias centenas de mortos seria exagerada, segundo o historiador Jean-Luc Einaudi, autor deA batalha de Paris, obra de referência sobre o assunto. Einaudi, que teve acesso aos arquivos da Frente de Libertação Nacional (FLN) e recolheu vários testemunhos, considera que de 50 a 250 seria uma estimativa mais aproximada – muito acima, de qualquer modo, do número oficial.
A fotografia da amurada, incluída em e usada também no cartaz do documentário, tendo uma das torre da catedral Notre-Dame ao fundo, é um atestado de intolerância criminosa. Intolerância criminosa que proclama sua satisfação, seu orgulho, e por isso mesmo é ainda mais revoltante. Principalmente, lembrando que, na época, não foi feito sequer um inquérito a respeito.
Hoje, na amurada da ponte, há uma placa com a inscrição “Em memória dos numerosos argelinos mortos durante a repressão sangrenta da manifestação pacífica de 17 de outubbro de 1961.” Somada ao reconhecimento da responsabilidade do Estado, não deixa de ser um progresso.
evita, deliberadamente, informar qual foi o número de mortos, segundo a diretora, por não haver provas. Para Yasmina Adi, “uma única morte já é uma morte demais”. O ministro do interior da época, porém, continua a manter, como diz em entrevista no filme, que foram dois mortos e cento e trinta e sete feridos, o que através de depoimentos e fotos indica não ser verdade.
Em 2005, o cineasta Alain Tasma já tratara dos mesmos fatos no longa-metragem de ficção Outubro 17, 1961, filme que não vimos. Reconhecido, na época, como “inteligente e de valor” retrata em “detalhe os eventos que levam ao assalto sangrento de argelinos cometido pela polícia de Paris”. Quando Outubro 17, 1961 foi exibido no Festival de Toronto, um crítico escreveu que “esperava tivesse difusão ampla [o que não parece ter ocorrido]. A pertinência do seu assunto e dos seus temas deveria ser óbvia no mundo contemporâneo, com o ressurgimento da repressão e selvageria colonialista contra imigrantes, em nome da luta doméstica contra o ‘terrorismo’. Mas a dedicação e sinceridade artísticas também não é uma questão menor. Tasma representa a intelligentsia francesa no que ela tem de melhor – corajosa, clarividente e igualitária.” (David Walsh, 28 de setembro de 2005, wsws.org)
Em entrevista dada também em 2005, Tasma esclarece que “os franceses não têm consciência dos fatos. De forma nenhuma,” ele diz. Livros sobre o assunto vinham sendo publicados anualmente e jornais como Libération e Le Monde haviam publicado grandes matérias a respeito. “Não é que seja desconhecido, simplesmente esses artigos passam despercebidos, sendo uma informação entre outras,” declarou.
Para Tasma, a relevância de Outubro 17, 1961 está no fato das cenas nas delegacias de polícia continuarem “a acontecer hoje em dia. Há cenas de humilhação. Talvez não da mesma maneira, mas outras formas de humilhação.”
Os pontos de contato do massacre de argelinos, cometido em 1961, na França, com o que aconteceu na Argentina, Chile e Brasil pouco depois, são evidentes. Se é verdade que a chamada lei dos desaparecidos, sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de 136 pessoas e criou a Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos, muitos casos continuam inexplicados e foi preciso esperar até o final de 2011 para que a presidente Dilma Rousseff sancionasse a criação da Comissão Nacional da Verdade, cujos trabalhos estão em andamento.
Assim, mesmo reconhecendo que atrocidades também foram cometidas no Brasil, falta identificar os responsáveis, reconhecer responsabilidades e descobrir, em cada caso, o que de fato ocorreu. Não chega a ser um consolo, mas por aqui ao menos nenhuma amurada foi pintada, até onde sabemos, com manifestação de orgulho pela barbárie.
A difusão e debate de filmes como Outubro 17, 1961 e poderiam ter um papel nesse processo. A escassez de filmes brasileiros sobre episódios equivalentes ocorridos no Brasil, por outro lado, reflete a falta de vitalidade do cinema que está sendo produzido entre nós.
No final do artigo citado acima, Harazim escreveu que Dilma Rousseff e François Hollande poderiam, em breve, “trocar ideias sobre comissões da verdade”. No encontro que tiveram segunda-feira passada (10.12), em Paris, não parece terem tocado nesse assunto. Quem sabe da próxima vez que se encontrarem possam começar assistindo juntos Outubro 17, 1961 e Aqui afogamos argelino
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