Ricardo Darín, à esquerda, no papel do promotor Julio Strassera Foto: Divulgação
Argentina, 1985: um filme maravilhoso?
Premiada por críticos, louvada por jornalistas, obra do cineasta Santiago Mitre peca pela narrativa ultra convencional e os lugares comuns
Após ter estreado no Festival de Veneza 2022, onde recebeu o prêmio da Fipresci – Federação Internacional de Críticos de Cinema –, o filme Argentina, 1985 ganhou, em 10 de janeiro deste ano, o Globo de Ouro de Melhor Filme não falado em inglês, atribuído pela Hollywood Foreign Press Association (HFPA). Na semana seguinte, a jornalista Vera Magalhães comentou em sua coluna no jornal O Globo: “Assistir ao maravilhoso Argentina, 1985 (…) permite transpor para o Brasil pós-8 de janeiro uma série de dilemas vividos na redemocratização de países da América do Sul, que nossos vizinhos resolveram de forma muito distinta da nossa.”
Visto aqui no Brasil, neste momento, não há dúvida de que Argentina, 1985 leva o espectador a comparar, de um lado, o tratamento dado aos integrantes das juntas militares responsáveis por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura argentina de 1976 a 1983, e, de outro, a impunidade dos responsáveis pela adoção da tortura como política de Estado durante a ditadura civil-militar brasileira de 1964 a 1985. Comparação que também pode ser feita com as críticas de militares à Comissão da Verdade, instalada em maio de 2012; a adesão de integrantes das Forças Armadas ao projeto antidemocrático do bolsonarismo; e a cumplicidade de integrantes do Exército com os acampamentos feitos diante de quartéis e o vandalismo golpista de 8 de janeiro – do qual alguns militares participaram.
Não há motivo, pois, para divergir quanto à pertinência de contrapor, a partir do filme, os diferentes modos como a questão militar foi e vem sendo tratada nos dois países. Em um caso, cinco dos nove integrantes de três juntas militares foram julgados e condenados, inclusive o general Jorge Rafael Videla, ditador de 1976 a 1981, cuja pena foi de prisão perpétua. Já no outro caso…
Estabelecer paralelos entre situações semelhantes pode permitir não só aproveitar melhor as lições da história, como avaliar o processo decisório nas primeiras semanas do governo brasileiro empossado em 1º de janeiro.
O impasse resultante da chamada Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979 e que protegeu criminosos fardados a serviço da ditadura brasileira, nunca foi resolvido de modo satisfatório. Isso desaguou, em certa medida, na postura cuidadosa que o atual governo adotou inicialmente frente ao papel das Forças Armadas no 8 de janeiro. Ao exonerar no sábado (21) o general comandante do Exército, considerado omisso e insubordinado, o presidente Lula teria afinal assumido de fato, segundo alguns, a Presidência da República.
Por outro lado, quero discordar que Argentina, 1985 seja “maravilhoso”, mesmo estando ciente de que o juízo de Magalhães deve ser compartilhado pelos integrantes da Fipresci que premiaram o filme em Veneza, pela maioria dos pouco mais de cem obscuros jornalistas internacionais que lhe atribuíram o Globo de Ouro e, o que é mais relevante, pelo público argentino. Segundo o jornal Buenos Aires Times, o filme “dominou os cinemas locais e atraiu espectadores para a Amazon Prime”, tendo obtido “a maior renda do ano [de 2022] nos cinemas nacionais”. Além disso, Argentina, 1985 foi indicado como um dos cinco concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Internacional, a ser entregue na cerimônia de premiação em 12 de março.
A meu ver, Argentina, 1985 não faz jus ao adjetivo “maravilhoso” – ao menos não no sentido indicado pelo Dicionário Houaiss, de primar pela excelência, ser primoroso, perfeito. Para merecer tamanho louvor, não é suficiente ter uma mensagem “fundamental e necessária”, conforme proclama a coluna intitulada “Nunca mais!” da Appoa – Associação Psicanalítica de Porto Alegre –, publicada no site Sul21.
Falta algo essencial ao filme dirigido por Santiago Mitre, a partir do roteiro escrito por ele com Mariano Llinás – uma certa audácia de linguagem, à altura da relevância de seu tema (a Justiça) e de seu argumento (o julgamento civil dos integrantes das juntas militares da ditadura argentina). Submetido a uma narrativa ultraconvencional, eivada de lugares comuns dramáticos, a experiência estética do espectador resulta banalizada, sem estar à altura da importância do assunto abordado.
Mitre declarou que seu trabalho como cineasta foi “fazer bom cinema respeitando o rigor histórico”. Considerou, também, que “tiveram sorte por ser virtualmente um gênero cinematográfico – o thriller judicial. Isso nos ajudou a usar determinadas ferramentas para poder narrar esses fatos reais, mantendo a tensão e o interesse… Na medida do possível, usamos os elementos tradicionais do cinema, mas ao mesmo tempo somos fiéis à história”. A entrevista completa de Mitre ao Buenos Aires Times pode ser acessada aqui. Os termos usados por ele falam por si quanto ao deliberado viés conservador da forma do projeto.
Enaltecer Argentina, 1985 é a consagração da mesmice, como se recorrer a fórmulas exauridas para contar uma história fosse uma fatalidade à qual o cinema estivesse condenado. Nem Ricardo Darín consegue evitar algumas canastrices em sua caracterização do jurista Julio Strassera (1933-2015), o promotor chefe do julgamento civil que condenou integrantes das juntas militares.
Avaliar filmes por seu conteúdo é uma falácia recorrente que distorce e empobrece o potencial da experiência proporcionada pelo cinema, reduzida dessa maneira a meras variantes de entretenimento e persuasão que coexistem, por vezes, e podem forjar sucessos como o de Argentina, 1985.
Ao receber o troféu do Globo de Ouro, visivelmente tenso, Mitre declarou, em inglês, seguindo o protocolo, querer compartilhar o prêmio com “todos aqueles que, desde a ditadura, lutaram para construir uma democracia melhor na Argentina e continuam lutando. Eu acredito que democracia é uma coisa pela qual temos de continuar lutando”. Ao seu lado, Darín, mais à vontade, limitou-se a agradecer, primeiro também em inglês, dizendo estar muito orgulhoso pelo prêmio e, a seguir, em espanhol, que “para todos os argentinos, depois de ganhar a Copa do Mundo, este prêmio é uma grande alegria”.
Passados 37 anos, fazer um filme sobre o julgamento civil de integrantes das juntas militares continuava a ser um ato de coragem. Esse mérito de Argentina, 1985 é inegável. A adaptação feita no filme das alegações finais do promotor Strassera, que dura cerca de oito minutos, é contundente. Considerada “peça fundamental da defesa dos direitos humanos”, um trecho resumido da versão original vai transcrito a seguir:
“Nós, argentinos, tentamos obter a paz baseando-nos no esquecimento, e falhamos… Tentamos buscar a paz por meio da violência e do extermínio do adversário, e nós falhamos… A partir deste julgamento e da sentença que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória, não na violência, mas na justiça. Quero usar uma frase que não me pertence, porque já é de todo o povo argentino. Juízes: ‘Nunca mais.’”
Por fim, considero a carência no cinema brasileiro de produções equivalentes a Argentina, 1985 um testemunho eloquente de nossa debilidade. A invisibilidade e o silêncio audiovisual quase absolutos a respeito dos crimes da ditadura militar de 1964 a 1985 nos desmerece.
Argentina, 1985 está disponível na Amazon Prime desde outubro de 2022, sem previsão de lançamento no circuito de salas. Por que será?
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Destaque (XXVI): “Todo filme é, sem dúvida, um sistema, mas nenhum sistema formado humanamente se apresenta sem brechas, falhas, aporias, contradições, sem manifestar sua própria contestação ou sua destruição. Os buracos do sistema, eis o que convém examinar. Quanto mais o poder se exerce por meio da fabricação, do controle e da distribuição das imagens e dos sons, mais é necessário nos apoiarmos nesta rocha do sentido aberto que é a concepção cinematográfica do mundo, digamos que às reduções triunfantes da indústria do espetáculo que procedem por meio de efeitos (de velocidade, de trucagem, sonoros…) nada teríamos a opor além daquilo que, na experiência histórica do cinema, é impulsionado pelas ínfimas, pacientes e obstinadas forças do olhar e da escuta: elas se mantêm apenas graças à experimentação contínua de seus próprios limites.” Jean-Louis Comolli, Ver e Poder A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Editora UFMG, 2008. p.187 (Éditions Verdier, 2004).
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