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    A então candidata – e agora ministra – Daniela Carneiro, durante um comício ao lado do marido, Waguinho (ao centro), e do deputado estadual Márcio Canella Foto: Reprodução/Redes sociais

questões de violência e política

As relações do prefeito e da ministra com a milícia

Como o grupo político de Waguinho e de sua mulher Daniela, ministra do Turismo de Lula, alimentou e foi alimentado pela milícia de Belford Roxo

Camille Lichotti e Allan de Abreu | 08 fev 2023_15h24
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“Eu voto 22, mas a ‘puliçada’ do Waguinho aí… comi um na porrada, porque me agrediu, e outros dois polícias me juntou [sic]. Meu telefone sumiu. Eles tão intimando o pessoal de Belford Roxo a votar no Lula”, disse um homem magro com voz exasperada, num vídeo gravado em meados de outubro, durante a campanha eleitoral. Ele estava no Jardim Redentor, um dos bairros mais pobres da cidade. A ‘puliçada’ a que o morador se referiu são policiais que integram o “bonde do Jura”, a maior milícia de Belford Roxo. O grupo é liderado pelo ex-policial militar Juracy Alves Prudêncio, condenado por homicídio e formação de quadrilha nos anos 2000.

O vídeo circulou nas redes sociais poucos dias depois de o prefeito de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho (União-RJ), declarar apoio a Lula no segundo turno da eleição presidencial. Na condição de presidente estadual do União Brasil, Waguinho havia apoiado Bolsonaro desde o começo da campanha. Mas aceitou mudar de lado ao receber a garantia de que sua mulher, Daniela Carneiro, ganharia um ministério caso Lula fosse eleito. Feito o acordo, Lula foi a Belford Roxo participar de um comício organizado pelo prefeito. Foi a única cidade da Baixada – um bolsão de pobreza e violência na região metropolitana do Rio de Janeiro – que o petista visitou durante a campanha. (Nota de correção: Belford Roxo foi a única cidade da Baixada visitada por Lula na campanha do segundo turno. No primeiro turno, o então candidato esteve em Nova Iguaçu, outra cidade da Baixada.)

A parceria deu certo para Waguinho, que viu sua mulher ser nomeada ministra do Turismo. Para Lula, nem tanto: o petista teve 40% dos votos válidos de Belford Roxo no segundo turno, contra 60% de Jair Bolsonaro. Para piorar, a aliança resultou no primeiro desgaste do novo governo, quando o jornal Folha de S.Paulo revelou as ligações de Waguinho e Daniela com o “bonde do Jura”.

A denúncia feita no vídeo e corroborada por outros moradores da cidade ouvidos pela piauí é indicativo da relação entre Waguinho e a milícia liderada por Prudêncio. O prefeito se aliou ao ex-PM tão logo assumiu a prefeitura de Belford Roxo, em 2017. Quem tratou de aproximá-los foi Marcelo Canella (União-RJ), vice-prefeito e braço direito de Waguinho. “Não tem como fazer política na Baixada sem se render aos caras”, resume um policial militar que mora em Belford Roxo – por segurança, ele pediu para não ser identificado.

Naquele ano, quando ainda cumpria pena em regime semiaberto, Prudêncio foi nomeado para um cargo de assessor na prefeitura. Dali em diante, viu seu “bonde” prosperar como nunca antes. Uma das primeiras ações do grupo miliciano, ainda em 2017, foi tomar o Jardim Redentor, na época controlado pelo traficante Geonário Fernandes Pereira Moreno, da facção Terceiro Comando Puro (TCP). “O lugar estava horrível, cheio de barricadas, molecada com fuzil em cada esquina. Depois, com o bonde do Jura, acabou a bagunça”, conta o mesmo policial. Operações similares, sempre muito violentas, se repetiram em outros bairros.

Na disputa com o tráfico, o “bonde do Jura” conta com o apoio tácito da PM e de políticos. Isso ficou claro numa operação da polícia em 2021, no Complexo do Roseiral, em Belford Roxo. Em janeiro daquele ano, Waguinho, Daniela e Márcio Canella deputado estadual e irmão do vice-prefeito se reuniram com o governador Cláudio Castro (PL-RJ) para acertar a instalação de um destacamento da PM no Roseiral, área até então dominada pelo Comando Vermelho. Uma nota publicada no site da prefeitura informa que Canella foi o responsável pela “indicação” do projeto. Na ocasião, a tenente-coronel do 39º Batalhão, Daniele de Almeida Neder, informou que a polícia inicialmente faria um cinturão de segurança no Roseiral “para retirar barricadas e não deixar o tráfico se expandir”.

Na prática, foi muito mais do que isso. Em fevereiro, a PM fez uma megaoperação no bairro. A ação foi brutal. Moradores ouvidos pela piauí lembram que policiais vestiam toucas ninja e, sem a identificação do nome no uniforme, matavam pessoas já rendidas. Um vídeo recebido pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), organização atuante na Baixada com foco em segurança pública e direitos humanos, mostra corpos empilhados numa carroça. “Foi bagulho de filme, a gente nunca tinha visto coisa assim”, relata um morador do Roseiral que falou com a piauí sob a condição de anonimato. “Os policiais estavam cabreiros com todo mundo. Pegaram um menor que era entregador de quentinha, bateram nele e quebraram as quentinhas que ele levava. Qualquer coisa era motivo pra abordagem brusca.”

Ao todo, a IDMJR contabilizou 26 incursões da polícia, 28 tiroteios e três chacinas durante o processo de instalação do destacamento. Mais de trinta pessoas foram assassinadas. Moradores denunciaram também o desaparecimento de pessoas.

“Fazia muito tempo que a gente não via um mês tão sangrento. As operações foram realizadas com arsenal de guerra e quase duzentos policiais”, diz a coordenadora do IDMJR, Giselle Florentino. “No primeiro mês da ocupação, recebemos a denúncia de que vinte rapazes foram levados para uma casa e assassinados de uma só vez. Além de muitos vídeos e fotos dos moradores descendo com corpos.”

A IDMJR denunciou o caso à ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro ainda não prestou esclarecimentos sobre o caso. Florentino conta que a IDMJR ainda tem dificuldade de dimensionar o saldo do massacre porque muitas famílias têm medo de denunciar o que aconteceu.

A nova unidade da PM no Roseiral foi inaugurada em junho de 2022, durante a campanha eleitoral, com a presença de Waguinho, Daniela, Cláudio Castro e de um séquito de políticos locais. O Comando Vermelho foi expulso do Roseiral, que dali em diante passou a ser dominado pelo “bonde do Jura”. Moradores ouvidos pela piauí relatam que, desde então, passaram a operar na região serviços ligados à milícia, como a venda de “gatonet” (aparelho para recepção de sinais de tevê a cabo e internet). A IDMJR também já identificou que milicianos passaram a cobrar “taxas de segurança” de comerciantes e investir em empreendimentos imobiliários. “É comum que operações policiais sejam usadas para enfraquecimento do tráfico local e fortalecimento da milícia na Baixada. No Roseiral, desde a chegada do destacamento [da PM], a milícia está em franca expansão. Algumas pessoas foram expulsas de suas casas e os terrenos foram loteados para erguer prédios que, ao que tudo indica, serão explorados financeiramente pelos milicianos”, explica Florentino.

O “bonde do Jura” impôs ao Roseiral uma rotina de violência e coação política. Em setembro, dias antes do primeiro turno da eleição, milicianos vestindo camisetas pretas agrediram e apontaram armas para cabos eleitorais de candidatos rivais do casal Waguinho e Daniela. As cenas foram filmadas e circularam nas redes sociais. Um dos homens identificados nos vídeos, flagrado na iminência de sacar uma arma da cintura, é Fabio Sperendio, ex-assessor parlamentar de Márcio Canella que atua como segurança particular de Waguinho. Na confusão, uma grávida perdeu o bebê.

Daniela do Waguinho arrebentou nas urnas em outubro. Elegeu-se a deputada federal mais votada do Rio de Janeiro. Obteve, sozinha, 49% dos votos de Belford Roxo (o segundo colocado na cidade teve 4%). Na campanha, recebeu apoio explícito de integrantes da PM. Durante um comício, chegou a discursar ao lado de três oficiais com cargos de comando – entre eles, a comandante Daniele Neder, do 39º Batalhão, responsável pela operação no Roseiral. Militares da ativa não podem participar de manifestações políticas ou partidárias. A Corregedoria da Polícia Militar do Rio abriu uma investigação para apurar o caso.

Procurado pela piauí, o prefeito Waguinho disse, por meio de sua assessoria, que desconhece a atuação da milícia no Complexo do Roseiral e que compete ao governo do estado investigar a denúncia. Ele também afirmou não ter nenhum tipo de relação com Juracy Alves Prudêncio, embora tenha nomeado o miliciano para um cargo de assessoria em 2017. Questionado sobre isso, o prefeito afirmou apenas que Prudêncio “foi nomeado, mas nunca tomou posse”, e que, na época, ele cumpria expediente na prefeitura como parte do seu processo de ressocialização. Waguinho negou estar envolvido em qualquer prática de coação eleitoral, como relatam moradores da cidade. A campanha, segundo ele, foi “em clima de paz”.

A ministra Daniela Carneiro, por sua vez, afirmou que “não compactua com qualquer ato ilícito” e destacou ter recebido voto de “milhares de eleitores em diversos municípios do estado”. Os irmãos Marcelo e Márcio Canella não responderam aos contatos da reportagem. O espaço segue aberto para eventuais manifestações.

 

Belford Roxo convive com a violência desde que se emancipou de Nova Iguaçu, em 1990. O primeiro prefeito da cidade, Jorge Júlio Costa dos Santos, o Joca, foi assassinado em 1995. Atualmente, a taxa de homicídios em Belford Roxo é de 39 por 100 mil habitantes, o dobro da média brasileira. É um município marcado pela pobreza. Mais da metade da população não tem acesso à rede de esgoto.

O caso de Belford Roxo é ilustrativo da transformação pela qual passaram as milícias do Rio de Janeiro. Formadas inicialmente como grupos de matadores, presentes sobretudo na Baixada, essas organizações paramilitares abriram, ao longo do tempo, novas frentes de atuação mais lucrativas, cobrando taxas para manter a segurança de uma determinada região ou prover serviços básicos para a população, como luz, água e internet. Tornaram-se hegemônicas em boa parte do estado, sempre com algum grau de relação com a política institucional uma característica das milícias, geralmente comandadas por policiais e ex-policiais.

Essa relação com a institucionalidade explica a rápida expansão do “bonde do Jura” nos últimos anos. Com apoio do poder político local, o grupo avançou sobre Belford Roxo. Em 2016, controlava territórios que somavam 2,2 km², segundo levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Cinco anos depois, em 2021, essa área já tinha triplicado para 6,5 km². A violência também aumentou no período. O número de pessoas desaparecidas bateu recorde em 2022: foram 215 casos. No ano anterior, haviam sido 180.

Denúncias de coação política tornaram-se comuns em Belford Roxo. Depois de Waguinho oficializar o apoio a Lula, virou raridade encontrar um morador da cidade vestindo verde e amarelo, cores associadas a Bolsonaro (apesar da votação maciça que a cidade deu ao candidato). Em outubro, uma retroescavadeira que interditava o trânsito durante a carreata de Waguinho e Lula matou um motorista que passava ali. O homem de 54 anos, apoiador de Bolsonaro, protestou contra o bloqueio da via. O que se seguiu foi uma briga generalizada. No meio da discussão, ele foi imprensado pela retroescavadeira contra a porta do próprio carro, que trazia a bandeira do Brasil no vidro traseiro.

Waguinho foi reeleito com 80% dos votos na eleição de 2020, apoiado pelo diretório municipal do PT. Em 2022, o prefeito patrocinou a candidatura de sua mulher para deputada federal e de seu principal aliado, Márcio Canella, para deputado estadual. A exemplo da vitória incontestável de Daniela, Canella também teve uma votação acachapante. Foi o deputado mais votado para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), concentrando 46% dos votos de Belford Roxo. Em seguida, rompeu com Waguinho, por discordar do apoio a Lula no segundo turno. Canella, embora seja do mesmo partido de Waguinho, é apoiador convicto de Bolsonaro.

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