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    Ilustração de Carvall

questões imunológicas

Atraso e confusão na segunda dose da vacina

Promessa de acelerar calendário de vacinação terá de concluir imunização de quem parou na primeira dose – pelo menos 1 milhão de pessoas em apenas oito estados do país

Camille Lichotti e Amanda Gorziza | 14 jun 2021_17h38
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Acelerar o calendário de vacinação e começar a vacinar mais gente, como anunciou esta semana o governo de São Paulo, esbarra numa questão ainda não resolvida: em apenas oito estados, pelo menos 970 mil brasileiros estão com a segunda dose da vacina contra Covid-19 atrasada. Isso significa que todas essas pessoas já deveriam ter finalizado o esquema vacinal, mas ainda não estão completamente imunizadas. A piauí solicitou dados às secretarias de Saúde das 27 unidades da federação através de e-mail e telefonema, e oito enviaram dados referentes ao atraso vacinal: São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. Pouco mais de 70% das abstenções nesses estados são de pessoas que se vacinaram com a CoronaVac. O número de pessoas com a segunda dose atrasada pode ser ainda maior, já que os outros estados não enviaram informações. 

A reportagem optou por utilizar dados apurados diretamente com as secretarias porque os números de vacinação disponibilizados pelo Ministério da Saúde via Open Data SUS não condizem com os dados reportados diretamente pelos municípios. De acordo com os microdados do Open Data SUS, tabulados pelo Laboratório de Estatística e Ciência de Dados da Universidade Federal do Alagoas (Ufal), até o dia 10 de junho, 1,85 milhão de pacientes dos estados em que a piauí fez o levantamento estavam com a segunda dose atrasada – quase o dobro do que as secretarias estaduais informaram à revista. Em todo o país, segundo o ministério, seriam 4,4 milhões de pessoas com a segunda dose em atraso – mas, de novo, a discrepância entre os dados nacionais e os dados locais não permite ter a dimensão exata do problema.

Atrasar a segunda dose da vacina tem um impacto ainda não totalmente dimensionado no controle da Covid. O prazo recomendado entre as duas doses da CoronaVac deve ser de 14 a 28 dias. Para a Oxford/AstraZeneca, 12 semanas. Não existem evidências de que apenas uma dose seja suficiente para completar a imunização. Por isso, pessoas que não retornaram para a segunda dose no tempo indicado não estão devidamente protegidas. “O programa de vacinação pode acabar não sendo exitoso”, alerta a epidemiologista Carla Domingues, que dirigiu o Programa Nacional de Imunizações do Brasil de 2011 a 2019. “Os governos precisam fazer campanhas para convocar os atrasados e esclarecer a necessidade da segunda dose. Isso não está sendo feito a nível nacional. Não basta simplesmente vacinar e deixar o resto a cargo da população, esperando que ela entenda uma campanha complexa como essa.”

As explicações para o atraso da segunda dose são variadas. Em cidades de pelo menos oito estados, faltou vacina para a reaplicação. Gestores, imunologistas e profissionais de saúde ouvidos pela piauí também listaram outros motivos, desde o esquecimento da data até dificuldade de se locomover ao local de vacinação. Domingues lembra que essa é a primeira campanha de vacinação adulta que utiliza duas doses de imunizante, com intervalos diferentes. É, portanto, um desafio complexo e novo, que demanda mobilização do poder público. Além da falta de informação, ela acredita que a desinformação também pode contribuir para o alto número de atrasos na segunda dose. “Existem muitas fake news em relação aos efeitos adversos da vacina. Isso pode fazer as pessoas duvidarem se vale a pena tomar a segunda dose”, acrescenta. “Então é preciso esclarecer também que febre e dor no corpo são comuns depois da imunização.”

 

Carla Domingues diz que a discrepância entre números dos estados e do ministério não deveria existir. “O Ministério da Saúde não cria dados, apenas consolida as informações enviadas pelos municípios. Se existem problemas na transmissão, é uma atribuição das três esferas de poder (nacional, estadual e municipal) identificá-los e corrigi-los juntos”, explica. O SUS é de gestão tripartite e, portanto, todos os entes federativos devem estar com informações alinhadas para gerir campanhas de saúde pública. “A qualidade dos dados é fundamental para monitorar o processo de vacinação. Dados subestimados ou superestimados impactam toda a estratégia de política pública”, diz Domingues.

Outros nove estados não informaram os dados de atraso vacinal, alegando que a operacionalização da vacina é de responsabilidade dos municípios – ou que eles não têm as informações solicitadas. Os municípios são também responsáveis por abastecer as bases de dados do Ministério da Saúde. “É lamentável quando governos estaduais se eximem da responsabilidade de fazer esse acompanhamento. Se os estados identificam que uma região tem baixa procura de segunda dose, eles têm que apoiar essa região – contratando mais pessoal, pensando em campanhas de publicidade, desenvolvendo novas estratégias. É um esforço conjunto”, argumenta Domingues.

Em nota, o Ministério da Saúde informou ter enviado “todo o quantitativo pendente, apresentado por doze estados, para a aplicação da segunda dose da vacina Sinovac/Butantan, até o dia 14 de maio de 2021”. Ou seja, o atraso não estaria relacionado à falta de imunizantes, segundo a pasta. Até março deste ano, a orientação do ministério era para que metade das vacinas enviadas fossem reservadas como estoque de segurança, para garantir a imunização total de quem recebesse a primeira dose. Isso porque existia incerteza em relação à entrega de novas remessas do imunizante. Em abril, a falta do ingrediente farmacêutico ativo atrasou a entrega de 4 milhões de vacinas da CoronaVac, e várias cidades precisaram interromper a vacinação. Mesmo assim, estados e municípios agora estão liberados para utilizar o estoque de reserva na ampliação da cobertura vacinal.

Em Goiás, onde mais de 40 mil habitantes estão com a imunização incompleta, a prefeitura da capital fixou prazo para resolver o problema das abstenções. Os moradores de Goiânia tinham até a última sexta-feira (11) para receber a dose de reforço atrasada da vacina. Quem não procurou o serviço de saúde até a data estabelecida perdeu prioridade. A partir de agora, as doses reservadas aos atrasados serão redistribuídas para iniciar a imunização em outras pessoas e ampliar o grupo-alvo. Carla Domingues avalia que essa estratégia seria correta se a prefeitura tivesse certeza de que todos os atrasados ainda não tomaram a segunda dose por decisão própria. 

“É preciso investigar se essas pessoas estão atrasadas simplesmente porque não conseguem ou não sabem que precisam retornar. Nesse caso, é fundamental fazer a busca ativa”, explica. Segundo ela, todos devem tomar a segunda dose, mesmo após prazo de reaplicação. “As datas estabelecidas são métricas operacionais e vêm da observação dos estudos clínicos. Ainda assim, o mais importante é receber as duas doses, mesmo com atraso”, resume Domingues. 

O governo do estado de São Paulo anunciou no último domingo (13) que também vai acelerar o calendário vacinal. A previsão é de que toda a população adulta receba pelo menos uma dose da vacina até setembro deste ano. O cálculo do governo é baseado no adiantamento da estimativa de entrega dos imunizantes pelo Ministério da Saúde e não modifica as regras de prioridade na dose de reforço. A assessoria de imprensa informou que a orientação do estado é para que os municípios continuem reservando doses para quem já tomou a primeira. 

 

Na capital paulista, a prefeitura faz campanhas para verificar os motivos da abstenção na segunda dose e orientar as pessoas sobre a importância de completar a vacinação. Segundo a prefeitura, a maioria dos paulistanos que estavam com a segunda aplicação atrasada na semana passada tinham dificuldades de locomoção até os postos de vacinação. As Unidades Básicas de Saúde que possuem equipes do Programa Estratégia Saúde da Família ajudam no trabalho e na conscientização da população que ainda não tomou nenhuma das doses ou apenas a primeira.

A enfermeira Juliana Gianetti Almança, de 30 anos, é uma das profissionais responsáveis pela busca ativa na UBS/AMA Vila Barbosa, no bairro do Limão, na Zona Norte de São Paulo. A partir das informações de um relatório gerado pelo sistema VaciVida, da base estadual, ela telefona diariamente, um a um, para verificar o motivo do atraso para a aplicação da segunda dose. “É um trabalho de formiguinha”, brinca. De acordo com a enfermeira, na maioria dos casos, o paciente tomou a vacina, mas foi cadastrado incorretamente no sistema. Também existem pessoas que não receberam a segunda dose porque esqueceram da data ou contraíram a Covid-19 no intervalo. Os agentes comunitários de saúde visitam diariamente as residências dos pacientes do território do Limão para conscientizar a população sobre a vacinação. Quando encontram uma pessoa que deveria ter recebido a vacina, mas não o fez, eles comunicam à equipe técnica que vai à casa aplicar o imunizante.

Mesmo com o empenho dessas campanhas, até o dia 9, cerca de 116 mil pessoas estavam com a segunda dose atrasada na capital. Em todo o estado de São Paulo, são 360 mil, segundo informações da secretaria de Saúde. Dados do ministério, por outro lado, apontam 1,06 milhão de paulistas com a segunda dose atrasada. Em nota, o governo do estado de São Paulo reconheceu que “os dados divulgados pelo Ministério da Saúde possuem uma defasagem com relação aos dados importados da base estadual”, mas não explicou por que essa diferença existe. 

Muitos estados estão cientes da fragilidade dos dados. A secretaria de Saúde do Ceará, por exemplo, não respondeu ao e-mail enviado pela piauí. Por telefone, a assessoria de imprensa disse que o estado criou uma plataforma própria para ajudar os municípios na consolidação das informações, mas que eles não tinham certeza de que elas eram confiáveis. Segundo a assessoria, a equipe técnica da secretaria de Saúde concluiu que os dados disponíveis não condizem com a realidade e que, por isso, não os enviaria à reportagem. A piauí insistiu, mas não obteve retorno.

 

As contradições não estão presentes apenas entre as bases municipais e federal. O painel do Ministério da Saúde e o Open Data SUS, ambos gerenciados pelo ministério, teriam que conter informações semelhantes – mas essa não é a realidade. De acordo com os microdados do Open Data SUS, até 10 de junho foram aplicadas 68,26 milhões de doses de vacina contra a Covid-19, sendo 47,3 milhões de primeira aplicação e 20,8 milhões de segunda aplicação. Já no painel do Ministério da Saúde constam 71,57 milhões de doses aplicadas até a mesma data (50 milhões com a primeira dose e 21,5 milhões com a segunda). Cerca de 3,3 milhões de doses – 4,6% do total – não entraram nos microdados.

No Open Data SUS estão disponíveis dados de cada paciente, tratados de forma que as informações não permitam saber quem é o titular – são os chamados dados anonimizados, ou mascarados. Para cada paciente vacinado há 32 informações, como data de nascimento, onde recebeu a vacina, o grupo prioritário, entre outros dados. Mas esses números apresentam anomalias. Em relatório, o laboratório da Ufal verificou que os possíveis problemas encontrados na base podem levar a significativos erros de avaliação da campanha de vacinação contra a Covid-19. Segundo a pesquisa, até dia 6 de junho, foram identificados 1,29 milhão de registros duplicados, ou seja, que têm todos os espaços da planilha preenchidos com as mesmas informações. A grande maioria é referente ao estado de São Paulo. Além disso, 812 mil pessoas constam na base federal como se tivessem recebido mais de três doses da vacina – e um desses pacientes, de forma surpreendente, aparece 229 vezes no sistema.

A piauí procurou o Ministério da Saúde por e-mail e telefone para perguntar o motivo da discrepância de doses entre as duas fontes, mas a pasta se limitou a informar que o “sistema do LocalizaSUS é alimentado por estados e municípios e é atualizado a cada quatro horas”. Além disso, o órgão solicita aos entes federativos que as informações sejam inseridas no sistema em até 48 horas. Questionado por meio da Lei de Acesso à Informação no dia 13 de maio sobre o motivo da diferença de dados e a metodologia utilizada na coleta, o órgão prorrogou o prazo de resposta e não retornou até a publicação da reportagem.

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