Casa de Candaces - III Black'N'Gold Ball - durante a 35ª Bienal de São Paulo. Iza Guedes / Fundação Bienal de São Paulo
Brasil is burning
Como a cultura das houses e ballrooms se espalhou pelo país e chegou até as comunidades indígenas
Entre 1985 e 1989, num grande galpão no Harlem, promoviam-se concursos cujos participantes, gays, desfilavam numa passarela improvisada interpretando personagens – executivos, militares, estudantes ou madames. Quanto mais realista a personificação, mais alta a nota. Quem vencia os diferentes concursos ia acumulando poder a cada vitória. Os grupos de participantes formavam uma espécie de times, as houses. Cada house tinha sua chefe ou mãe, ou father, ou pai, que batizava o grupo, como por exemplo a House of Labeija, House of Xtravaganza e House of Ninja, cujos integrantes incorporavam o sobrenome desses clãs, como Louis Xtravaganza e Willi Ninja.
Essa pungente vivência é o assunto do documentário Paris is burning, dirigido por Jennie Livingston e lançado em 1990. O título se refere ao nome do galpão em que os concursos se realizavam. Na década de 1990, o filme foi exibido em São Paulo no bar Paparazzi e no festival de cinema MixBrasil. Poucos anos depois, a maior parte das pessoas entrevistadas no documentário já havia morrido.
Nos últimos 25 anos, o vogue se desenvolveu, transformando-se na cultura ballroom – espaço de expressão pessoal, proteção, acolhimento, fortalecimento de identidade de gêneros, moda, arte, dança e cultura, difundido em diversas partes do globo, ganhando contornos distintos em cada território em que aparece.
A partir de entrevistas, livros, teses, pesquisas e vídeos, vamos entender de que forma essa cena se fortaleceu no Brasil, tornando-se um verdadeiro ecossistema, baseado na oralidade e na presença de seus corpos que a internet ajudou a registrar e a propagar. “Uma história nunca dá para ser contada por uma só pessoa. São muitas visões”, diz Tom Grito, integrante da cena ballroom.
“A ball não é um evento, não é uma festa. É um ritual que tem início, meio e fim, que acontece sempre de maneira diferente”, define Cuxe Candace, da Casa de Candaces, fundada em São Paulo em 2019. “A ballroom tem sido muito importante para mostrar pessoas trans num lugar de arte, de saber artístico, produção de conhecimento, produção artística, de não ver mais pessoas trans e travestis num lugar marginalizado. Na cultura ballroom, a travesti é a pessoa que mais se endeusa, porque ela foi uma cultura criada por travestis”, afirma a Up and Coming Legend Imperatriz Patfudyda, da House of Mamba Negra, que surgiu em Brasília, em 2018, a partir da Legendary Queen Mother Katita Mamba Negra.
A origem do voguing remonta à prisão de Rikers Island, no Bronx, no East River nova-iorquino. Era lá que, nos anos 1970, a trans Paris Dupree começou a imitar as poses das modelos das revistas de moda, publicações que eram liberadas para os detentos, por supostamente serem fúteis, não trazerem muita informação. Ao sair da prisão, Paris incorporou música às poses e intensificou a velocidade dos movimentos, transformando tudo aquilo em dança. Há quem sustente que o marco zero do movimento nasceu na boate Footsteps, na 2nd Avenue com a 14th Street, em 1972, quando Paris Dupree teria começado a fazer isso na pista, logo estabelecendo batalhas com outros frequentadores. Segundo consta, ela abriu uma revista Vogue que levava na bolsa, e, exibindo determinada página, parou, numa batida, na mesma pose da modelo. Em seguida, virou a página e parou em nova pose, no ritmo da música. Outra queen apareceu e fez outra pose na frente de Paris, que a encarou e fez uma pose. A coisa pegou e logo virou moda.
Os encontros de homens gays, drag queens, travestis e pessoas gênero-diversas já aconteciam em bailes de salão, as chamadas balls, que recebiam concursos de drags no Harlem, e que floresceram entre os anos 1960 e 1980. Juntar as competições de vogue com as balls se transformaria no fenômeno hoje em curso. Nesse ambiente dos bailes, as performances das pessoas fazendo poses, fingindo se maquiar, pentear o cabelo e se montar, encarnando personagens e afirmando suas identidades, eram usadas até mesmo para resolver pacificamente disputas entre rivais num ambiente que pressupunha um grau de respeito mútuo e compaixão. Usando dança e pantomima, os voguers chochavam (e ainda chocham) uns aos outros (prática conhecida como reading) – e se divertem também. Ganha quem faz o melhor shading (termo que pode ser traduzido como “tombação”, em gestos de deboche e superioridade) e a melhor apresentação, aos olhos do público e do júri.
Ainda que valorize a tradição e os legados de quem veio antes, o voguing é uma arte em transformação, ganhando contornos locais e variações que acompanham a entrada de novas pessoas e corpos. É possível estabelecer a existência de três macrocategorias: 1) Old way: estilo mais clássico, com uso de linhas e ângulos mais retos no desenho das posições, com inspiração tanto nas poses da moda quanto nas posições das artes marciais e da arte egípcia; 2) New way: variação surgida no final dos anos 1980 / início dos 1990, que incorporou outros elementos, como o catwalk, o duckwalk (caminhar agachado, levantando as pernas), o spinning (série de giros que geralmente resulta no dip, queda radical e dramática ao chão) e a movimentação das mãos (hand performance); 3) Vogue femme: parte do repertório do New way, com muitas acrobacias, velocidade e sensualidade.
Com o passar do tempo, as balls ganharam desdobramentos. Na década de 1980, as categorias se concentravam em performance e caracterização, enquanto nos dias atuais aparecem também a Face (para as mais belas e expressivas), Best dressed (melhores looks), Sex siren (de sensualidade), além da Runway e suas variações: American, que é um caminhar mais duro e sério, de passarela; European, inspirado nas supermodels dos anos 1980, 1990, e que tem os pivôs e as poses; e Brazilian, como se verá adiante.
A cena ballroom da atualidade se divide em duas: a mainstream, descrita acima, considerada a “cena original”, e a kiki, aquela criada em outros contextos, que adquire contornos locais. A cena kiki nasceu nos Estados Unidos, no início dos anos 2000, para proporcionar ambientes de cuidado e proteção às populações LGBT+, sobretudo às mais jovens, e driblar dificuldades de políticas públicas e acesso à saúde, educação, transição e hormonização. “Fora do Brasil, a kiki é vista como uma brincadeira, amigos que se unem para fazer uma cena mais descontraída”, conta o Overall Father Diego Cazul, fundador da House of Cazul, pioneira casa de vogue nascida no Rio de Janeiro, em 2015. A cena mainstream também tem suas representações em terras brasileiras. “O fundador ou fundadore tem certa relevância e a possibilidade de pedir autorização para abrir essa casa [localmente] e fundá-la”, explica Father Rafael Buthmann, da House of Ninja Brasil.
O universo ballroom é cheio de regras, códigos e fundamentos. “A comunidade criou suas próprias nomenclaturas e hierarquias com base no desenvolvimento de preservar a cultura através da oralidade. É uma cultura que vem da fala e do movimento do corpo, mais do que da escrita”, conta Noah Pulva. “A gente recebe títulos, conforme o tempo que está ali contribuindo para a cena”, explica Puri Yaguarete, da Casa de Candaces. Esse sistema é chamado Legends, Statement and Stars (LSS). Os de status mais elevado, em termos de respeito, são os Pioneiros. Os critérios divergem um pouco no Brasil e nos Estados Unidos. Pioneiros brasileiros não são reconhecidos fora do país como Pioneers e sim como Trailblazers, pessoas que abriram caminhos. “Os Trailblazers são as descendências dos Pioneers”, explica Diego Cazul. “Como Pioneers do Brasil, decidimos usar esse nome, colocando Trailblazer também para mostrar que sabemos que tem uma história por trás, que Pioneers mesmo são os que fizeram a comunidade na época.”
A questão, como em muitos tópicos da cultura ballroom, não é unânime. “Quando, lá nos Estados Unidos, eles se recusam a reconhecer nossos pioneiros, estão também dizendo que o que a gente faz aqui é uma cópia malfeita do que eles estão fazendo. Então, de certa forma, a gente não deve aceitar tudo que chega de lá”, diz Cuxe Candace. “Quando a cena ballroom vem para países da América Latina ou mesmo da Europa e da África, não vem num movimento de cópia, mas de tradução crítica e criação, o tempo todo. O que a gente faz é criar nossa própria ballroom, com particularidades próprias, categorias que não existem em nenhum outro lugar do mundo, como Capoeira Vogue, Joga a Raba e Megão. Se isso não é pioneirismo, então o que é?”, defende.
As pessoas consideradas pioneiras no Brasil são Mother Ákira Avalanx e Father Félix Pimenta (São Paulo); Mother Kona Hands Up e Luana (Distrito Federal); Mothers Paula Zaidan, Raquel, Tetê e Father Gui Barracuda (Minas Gerais); Father Diego Cazul e Shau Kinisi (Rio de Janeiro); Mother Muva Keller e TofuQuing Ninja Keller (Chile); Mother Yagaga Kengaral (Ceará); Mother Karoline Raabe (Minas Gerais); Ednei (Santa Catarina); Edson Vogue (Pernambuco); Rodrigo (Pará); Juana (Rio Grande do Sul), Mother Rany Mandacaru (Pernambuco) e Fênix Negra (Alagoas).
Tem ainda o 007, que é como um agente livre. Conforme explica Rafael Buthmann, “o 007 circula, permeia lugares. Não tem uma casa que você defenda ou que possa defender você, de maneira oficial. O que não significa que não possa ter uma rede de apoio”. Segundo Cuxe Candace, “o LSS é um momento de memória, de reivindicação, de uma ancestralidade que a gente constrói no dia a dia”. É também o momento das balls em que o commentator (o chanter ou comenteiro), que é quem canta enquanto a batalha está acontecendo, convoca pessoas proeminentes da cena para performar.[1] Seus nomes e posições são anunciados no microfone, e elas são aplaudidas e reverenciadas.
“Tentamos sempre dialogar e construir juntas, não criar essa forma de hierarquizar as lideranças. É lógico que existe um respeito, mas buscamos entender que cada uma tem sua história. Corpos ballroom são em sua maioria trans, pretos e latinos, muitas vezes corpos machucados, traumatizados de alguma forma por essa imagem e pelo conceito tradicional de família”, explica Patfudyda. “A ballroom é um lugar de libertação, de possibilidade de existir”, conta a performer, bailarina e coreógrafa nascida em Vigário Geral, subúrbio do Rio de Janeiro. “Quando passo a caminhar nas balls, começo a entender o que é ser celebrada”, resume.
Para arrasar numa ball, é preciso saber improvisar, caprichar no acting e também saber avaliar o outro lado, exagerando falhas que possa ter e chochando, mas não é permitido tocar na outra pessoa. São três os principais critérios para receber boas notas do júri, os chamados tens (notas dez): 1) estilo: se a pessoa está bem-vestida e em que medida os looks ajudam a ter um bom desempenho; 2) precisão: movimentos puros e exatos, e em que medida a pessoa sente e interpreta a música; 3) graciosidade: é preciso parecer confortável e natural ao se apresentar. A pessoa vence (ou consegue marcar pontos) se conseguir combinar os três fatores.
Por fim, é preciso ser cunt, que não é só uma sigla. Se poderia ser uma expressão negativa para pussy (vagina), é também um processo da comunidade negra que transforma uma vulnerabilidade em força. A ballroom utiliza cunt como acrônimo para charisma/uniqueness/nerve/talent. “Para ser um bom voguer, ele precisa dessas quatro coisas e ser cunt”, diz Diego Cazul, que explica cada uma delas: 1) Carisma (charisma) implica que “o vogue faça as pessoas olharem pra você e te acharem bonita, especial, queiram estar perto de você, te venerar”; 2) Singularidade (uniqueness): “No meio da multidão você tem que ser aquele alguém especial, ser um ponto de brilho”; 3) Coragem (nerve): “Se você tiver tudo isso e ficar no seu canto, mocozando sua sexualidade, sua aparência, escondendo quem você é e o que quer, não vai conseguir nada”; 4) Talento (talent): “Você também precisa ter o seu talento, que é algo que se constrói. Talento é aquela pontinha da coisa em que você sabe que é bom, então vai treinar aquilo.”
“O tempo inteiro, o que fazemos é um movimento de criação, recriação e transformação dos códigos que chegam do exterior e que modificamos”, explica Cuxe Candace. “A ballroom veio de Nova York já muito bem estruturada, com seus acertos e seus defeitos. Tem coisas que não cabem no Brasil por questões estruturais e financeiras, por se tratar de um país continental e carente de muita coisa”, comenta Patfudyda. Segundo ela, “a ballroom em si é uma cultura negra, afrodiaspórica, então a gente foi encontrando semelhanças com a cultura no Brasil, com o que de certa forma desviava da norma e hackeava alguns sistemas. Adaptamos e inserimos na cultura ballroom coisas que são nossas”.
“O mood da gente é diferente”, garante Diego Cazul, que diz que a ballroom no Brasil foi feita a partir da dança: “Nossa influência de performance vem antes da costura, da moda e de todos os adereços, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos.” Dentre as contribuições brasileiras estão novas categorias como Samba no Pé, o Batekoo ou Joga a Raba, Megão, Brazilian Runway e a movimentação da Capoeira Vogue, capitaneada pela sensacional Puma Camillê.
Nascida em Campinas, Puma Camillê é uma artista multidisciplinar que viaja o Brasil todo e faz turnês internacionais. “Misturar o vogue e a capoeira não foi uma opção, algo pensado. Eu sou a capoeira”, diz Puma Camillê, que também toca berimbau em suas apresentações. Ela estabelece o que chama de paralelo histórico-filosófico das semelhanças entre comunidades ballroom e a capoeira, ambas forjadas na resistência. “Para além da dança e da luta, a capoeira é uma tecnologia de resistência”, explica. “Trata-se de um movimento de resistência afro que percebe nos saberes de comunidades tradicionais de terreiro ensinamentos de vida e os traduz nas mais diversas formas de expressão.”
“A capoeira e o vogue são a manifestação de corpos sem amarras físicas e sociais, experienciando no fluxo espiralar segredos que não podem ser traduzidos em palavras. Verdadeiras tecnologias de cura, organização comunitária e libertação em sociedade, desenvolvidas por e para que corpos desobedientes marginalizados, ‘colocados’ para morrer, pudessem experienciar suas potências máximas em coletividade!”, diz a performer.[2]
“Nossa estética tem muita influência da ball americana e, ao mesmo tempo, a referência de um baile de favela”, explica Diego Cazul. Novas categorias brasileiras, como a Joga a Raba (ou Batekoo) e o Megão, vêm diretamente do universo funk, inclusive usando as bases musicais. No caminhar da Joga a Raba, o movimento dos quadris provém do twerk, enquanto o Megão traz o passinho às passarelas. “A gente tem se inspirado em como a gata do baile caminha, em como uma passista numa escola de samba pisa numa passarela”, diz Patfudyda, expoente da Runway, juntamente a nomes como Cunanny Williams e Legendary Queen Mother Katita Mamba Negra.
A Brazilian Runway é uma evolução do estilo europeu. “Só que a gente entendia que nossos corpos, as curvas de pessoas gordas, de pessoas pretas, de pessoas que têm uma bundona, um peitão, têm outro swing no quadril, o que fugia um pouco do que se entendia por European”, segundo Patfudyda. “Além de trazer essas outras categorias, pensando num recorte mais artístico, na variedade cultural daqui, a gente vem com esse recorte racial e de gênero”, diz Puri Yaguarete. “A ballroom tem um sistema de gênero próprio”, explica Cuxe Candace, citando como oito os gêneros definidos na cultura americana. Man/trade (homem cis identificado como heterossexual); Butch queen (homem cis que se identifica como gay ou bissexual e pode ser masculino ou afeminado); Butch queen up in drags (homem cis que se identifica como gay ou bissexual vestido como drag queen); Femme queen (mulher trans ou mulher em transição, esteja em processo de hormonização e/ou feitura de cirurgias ou não); Woman (mulher cis lésbica, bissexual ou heterossexual); Butch/stud (mulher cis lésbica masculinizada ou pessoa não binária); Transman/Tman (homem trans ou em transição, esteja em processo de hormonização e/ou feitura de cirurgias ou não); Gender fluid/Gender non conforming (gênero fluido ou gênero não conforme em nenhuma das categorias acima).Outras contribuições de novos recortes da cena brasileira são as categorias de performance para pessoas não binárias, transmasculinas e indígenas.[3]
Seria a ballroom no Brasil decolonial? Cuxe Candace acha que não. “Quando a gente pensa num recorte decolonial, está pensando um contexto de produção, de pensamento muito específico, de pessoas que fazem parte de uma realidade acadêmica, de uma elaboração que é mais intelectual. Na ballroom, a gente não está fazendo uma elaboração intelectual propriamente dita. Eu estudo ballroom, mas o que a gente vê na cena é uma elaboração que se dá pelo corpo, um pouco o que a Leda Maria Martins fala no livro dela, Performances do tempo espiralar: o modo como se produz conhecimento na ballroom se dá por meio das práticas do corpo, com a ritualização das performances, e pela oralidade, com as conversas em comunidade. Acredito que tenha uma pegada muito mais quilombista, de uma reunião mesmo, que é orgânica, corporal, urgente, e que não é tão elaborada por meio de um pensamento, seja escrito, seja teórico. É uma elaboração de outra ordem, de uma ordem corporal, da performance, da oralidade, da enunciação. É assim que a gente produz conhecimento e crítica. O pensamento decolonial, embora seja um paradigma superimportante, ainda é um pouco deslocado do corpo”, pondera.
Em 2023, quando a cena ballroom vai para a 35ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, acontece uma institucionalização desses processos e, portanto, de alguma maneira, a validação deles. “Essa presença de corpos em geral muito ausentes, ou melhor dizendo, ausentados, desses espaços de arte de grande prestígio, como a Bienal, me parecia ter relação e fazer sentido com a proposta de coreografias do impossível. São corpos impossíveis, artistas impossíveis que vivem em contextos impossíveis e transformam essas impossibilidades em coreografias, em dança, em música, em performance, em moda. Mais uma vez, numa arte total, que envolve referências múltiplas e que aconteceu também dentro do espaço da Bienal”, diz Hélio Menezes, curador daquela bienal, juntamente de Diane Lima, Grada Kilomba e Manuel Borja-Villel.
São três os momentos da ballroom na bienal: a participação do coletivo Afrobapho e as duas balls que aconteceram no prédio. A ball da Casa de Candaces se desenvolveu a partir do conceito de Black and gold, uma referência ao antigo Egito. “Tinha uma estética com uma proposta panafricanista e de uma reafricanização, tanto nas vestes quanto no jeito de dança e de coreografia, de performance e de apresentação, sobre uma ideia de fartura, de luxo, de abundância”, diz Hélio Menezes.
Organizada pelo Amem, coletivo multidisciplinar criado em 2016, a Ball do Tempo, diz o curador, se deu em relação ao espaço criado pela artista e filósofa Denise Ferreira da Silva: “A participação dela também foi um comissionamento, organizada a partir do conceito de tempo espiralar, das Performances do tempo espiralar, da Leda Maria Martins. Todas as categorias eram inspiradas e dialogavam conceitualmente com as propostas da autora, que foi uma das referências teóricas para a equipe curatorial.”
O Amem é formado por artistas, produtores e pesquisadores pretos LGBT+, tendo como principal plataforma a Festa Amem, que se define como “espaço de acolhimento e de transmissão de conhecimentos que utiliza o fervo para acender pautas que debatem raça, classe, gênero, sexualidade, saúde da população preta e a epidemia da Aids, por meio do viés artístico performático em diálogo com a comunidade ballroom, hip-hop e outras culturas urbanas”.
“Optei por trabalhar de forma coletiva, porque acredito que essa é uma boa maneira de trabalhar. Um bom ambiente e uma boa estrutura são a chave para que nosso ativismo seja dinâmico e alcance mais pessoas”, disse o diretor e idealizador do Amem, Flip Couto, dançarino, performer e produtor no encontro promovido pela plataforma ArtsEverywhere sobre a amizade como ativismo. Como homem gay, HIV positivo, ele cria interfaces entre pessoas da comunidade e atividades de prevenção, conscientização e acolhimento em relação ao vírus, outro pilar da cena ballroom.
Félix Pimenta é cofundador do coletivo e da Festa Amem e articulador do programa de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), da Coordenadoria IST-Aids da cidade de São Paulo, e pai da Casa de Pimentas e da casa mainstream House of Zion. O coletivo deu início a uma parceria com a Secretaria de Saúde de São Paulo, organizando testagem e ações de acolhimento nas festas. “Depois começamos a participar de alguns encontros da comissão e do programa de agentes de prevenção, que é um trabalho em lugares onde as pessoas têm práticas sexuais, de chegar e realmente falar sobre prevenção de uma outra forma, com pessoas que se identificam com esses grupos”, diz Félix Pimenta.[4]
“Aqui na América Latina, a gente saiu de um lugar de imitação mais passiva e foi se transformando num lugar de acolhimento e de manutenção desses corpos, e aí hoje já é um lugar de conscientização também”, confirma o performer Noah Pulva. Mesmo com uma cena considerada recente entre nós, existe interesse no exterior pelo que acontece aqui. “Não é mais aquele olhar de tipo ‘aprendam’. Agora é: ‘Nossa, vamos olhar o que o Brasil está fazendo.’ Porque, de alguma forma, estamos virando o jogo”, comemora Patfudyda. “Recebemos orientação do pessoal das houses mainstream de fora que vieram aqui na época. A gente foi criando a partir das nossas necessidades”, diz a Mother Lua Cazul, da House of Cazul.
Dentre as casas mais antigas estão a House of Hands Up, de Brasília (2012); a Mandacaru, de Pernambuco (2016); a House of Avalanx, que nasceu em Campinas (2017); a Casa de Mutatis (2018), e a House of Raabe,33 fundada na cidade de Três Rios (RJ), em 2016. Há houses espalhadas por Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Ceará, Bahia, Alagoas, Maranhão, Pernambuco, Goiás, Amazonas, Pará, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Distrito Federal. E contando!
“Hoje em dia, a galera tem acesso ao conteúdo, a muita informação. Mesmo essas cenas que talvez tenham vinte, trinta membros, vão estar num outro lugar de evolução, da caminhada deles e do ritmo, em relação à gente, que estava lá aprendendo, sozinho, fazendo da nossa maneira em 2015, no Rio, ou em Belo Horizonte, no Distrito Federal, Fortaleza…”, diz Rafael Buthmann. “Pessoas de todo o Brasil, do Chile e de outros países se reuniam em Belo Horizonte, na BH Vogue Fever”, diz Noah Pulva, que venceu seu primeiro prêmio lá. “Um ponto muito importante foram as produtoras culturais pioneiras que trouxeram pessoas da cena de fora do país”, diz o performer.
É esse o caso do Trio Lipstick, formado por Maria Teresa Moreira, Paula Zaidan e Raquel Parreira, de Belo Horizonte, que desde 2011 estuda o vogue e a cultura ballroom. “Em 2009, Paula Zaidan fez uma viagem para Nova York e lá teve contato com a dança vogue através dos professores Benny Ninja e Archie Burnett. Voltando para BH, nos reunimos em um grupo de estudos com treinos práticos e teóricos. Nesses encontros assistimos a Paris Is Burning e How Do I Look (documentário de Wolfgang Busch, de 2006, que cobre os anos de atividade da cena de Nova York e da Filadélfia) e entendemos um pouco da cultura que o vogue estava inserido. Mas a nossa imersão na cultura ballroom de fato se deu em janeiro de 2015, em uma viagem que fizemos juntas a Nova York e durante a qual tivemos a oportunidade de ir a diversas balls, conhecer de perto agentes da cultura, DJs, MCs, dançarinos e entender um pouco mais sobre esse universo”, dizem, em entrevista, em 2010, ao portal da House of Raabe.
O movimento chegou a Brasília por iniciativa da Mother Pioneer Eduarda Kona Zion, que em 2012 fundou a House of Hands Up. “Foi uma das primeiras a romper com a apropriação exclusivamente branca e de academias de danças na região”, escreve a pesquisadora Manoella Bittencourt Mendes Silva.[5] Brasília se torna referência para a estrutura de houses. Vieram depois a House of Caliandra, com o nome que remete à flor do cerrado, criada em 2016 a partir de um núcleo da UnB, e a House of Padam (2017 a 2020), com o nome inspirado pela música Padam padam, de Édith Piaf.
“Em Fortaleza, o movimento começou oficialmente em junho de 2018, quando aconteceu a primeira ball, mas a gente já tentava desde 2016”, conta a Pioneer Yagaga Kengaral. “Sair dos lugares majoritariamente ocupados por algumas pessoas, protagonizados só por essas (cis, brancas) e criar um lugar próprio foram os fatores que impulsionaram o início da ballroom”, relata. “Éramos um grupo e fui uma daquelas pessoas que produziu os primeiros movimentos.” Segundo ela, já foram mais de cinquenta balls realizadas de 2018 para cá. Todas gratuitas, e a maioria com premiação em dinheiro e investimento para as pessoas trabalharem.
Balls abertas e gratuitas ocorrem em equipamentos do estado, como Dragão do Mar, Porto Dragão e Porto Iracema das Artes. “Quando a ballroom toca as instituições públicas é tipo boom mesmo. A galera não está acostumada a lidar com a cultura da periferia, a cultura que é vulnerável, que está fora do padrão do que é arte”, afirma. Kengaral estima que, atualmente, cerca de 150 pessoas façam parte da comunidade na cidade, que conta com mais de dez casas e quatro coletivos. “O objetivo principal da ballroom é o espaço, a localidade, a expressão, a arte, o ensinamento, a formação, a profissionalização e o acesso. Sua própria existência já é um lance de protesto”, diz. Além de Fortaleza, o estopim da cena none (Norte/Nordeste), a cena cearense inclui Sobral, Iguatu e Caucaia.
Em Salvador, em 2016, a pioneira atuação do Afrobapho abriu caminhos para outros núcleos como a House of Montenegro, cuja mother é a extraordinária Lunna Montty (também do Afrobapho) e para capítulos (filiais), como a Casixtranha, que reverbera no Rio Grande do Norte.
O isolamento provocado pela Covid fortaleceu, por meio da internet, os elos entre as pessoas e as famílias do vogue, reforçando as relações de acolhimento e pertencimento, o que foi determinante para a disseminação da cultura país afora. “A pandemia teve essa potência de mostrar no seu celular em casa que você não estava sozinha, que você não era única nesse mundo. Que o que você estava passando, milhares de gatas estavam passando igual”, diz Patfudyda.
“A ballroom está com tudo no Brasil, e Belém agora tem as suas houses”, explica Rafa Bqueer, integrante do Themônias, clã de performers e pessoas trans. Shayra Brotero está à frente da House of Maguari, ou Maguarildri, no pajubá do clã. Outra haus (como são chamadas as houses de Belém) é a Ver-a-Queen, a partir do Mercado Ver-o-Peso, um dos cartões-postais da cidade.
Em São Luís, a cena LGBT+ dos anos 2000 tem suas raízes na boate Pedrita, uma das mais conhecidas e antigas da cidade, aberta em 1974, no Jardim São Cristóvão, na periferia. Entre 1980 e 1990, o Bar da Marlene ou Marlene’s Bar, na Avenida Litorânea, passou a ser bastante frequentado, com música ao vivo e festas pequenas. O Refúgio, na Avenida Litorânea, era para onde o povo ia quando o Marlene estava lotado. Alguns anos mais tarde, com vibe mais alternativa, boates no Centro histórico passaram a receber o público LGBT+.
No que diz respeito à cena ballroom especificamente, a primeira edição da batalha de vogue Marabaque aconteceu em 2020, como parte do festival Conexão Dança. Já a Afroball, promovida pela designer Jozy Negroni, começou em 2022. Jozy, também performer, ingressou na cena em 2020 com o projeto Maranhão Kunty. Durante a pandemia, adaptou suas atividades, buscando orientação de Muryllo Hills Blyndex, fundador da House of Blyndex, de São Paulo, para fortalecer a cena local. Sua dedicação resultou em três edições bem-sucedidas da Afroball, em parceria com a DJ Gabi Leão e o apoio do Centro Cultural Vale Maranhão, que também oferece editais de suporte financeiro para diversas expressões culturais. O êxito do Maranhão Kunty e da Afroball estabeleceu conexões entre as houses e apresentações de performers de outros estados. Para Jozy, tudo se resume a aquilombamento e resistência. A House of Vyper foi fundada em 2021, iniciativa de Xen, Kash e Baby Viper. No dia a dia da comunidade em São Luís, Nebraska Diamond e Wand promovem encontros no Tebas Bar e Café e na Queer bar e Tabacaria, no Centro histórico. O ingresso é no modelo transfree, para movimentar esses locais com presenças trans e travesti. O Maranhão oferece acesso fácil à hormonoterapia e cirurgia para colocação de próteses de silicone, pelo SUS, numa política de visibilidade, valorização da identidade e humanização implantada em 2013.
A primeira ball indígena da Amazônia aconteceu em Manaus, em 17 de novembro de 2023. Batizada de Espíritos Ancestrais, foi organizada pelo coletivo Miriã Mahsã, de indígenas LGBT+ do Amazonas, e pela Casa Jabutt. “Faço parte da coordenação desse coletivo de indígenas LGBT+ do Amazonas que desde 2021 vem realizando debates e construção, conceituação sobre a questão de gênero e sexualidade a partir da vivência indígena, principalmente de indígenas aqui do Amazonas e que vivem principalmente em contexto urbano em Manaus. Participamos de agendas, de atividades em níveis nacional e local”, conta Pedro Tukano.
“Dentro da comunidade LGBT+ de Manaus, os eventos culturais são comandados muitas vezes por pessoas brancas e cis, que não pensam em indígenas e pessoas trans e travestis. A gente teve a vontade de ter o nosso próprio espaço, um lugar que envolve cultura, coletividade, acolhimento e segurança”, disse Pedro Tukano.[6] As categorias também foram territorializadas. Cunt de Curumim (para iniciantes); Rosto ancestral: face do Sol (Face); Rainha tecelã: categoria de artesanato; Caminhos da Floresta (Runway); Moda ancestral; Mãos de pororoca (Hands performance) e Boca de jambu (Lipsync). “Pegamos nomes e categorias que até então, na maioria das ballrooms, são apresentadas em inglês. Chegamos a um consenso de remodelar o nome das categorias para uma coisa bem regional e que fizesse sentido para nós, que somos indígenas”, diz Pedro. Para o júri, foram convidados nomes como Sioduhi, estilista indígena do povo Pira-tapuya, da região de São Gabriel da Cachoeira, Adolfo Tapaiúna, designer e artista visual de Parintins, e Uyra.
A ideia inicial para esse ball surgiu em 2023, no 19º Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, onde aconteceu a primeira ball indígena do Brasil, organizada pela Casa de Onijá (house do Distrito Federal com representantes no Amazonas, Minas Gerais e São Paulo, que tem como pai Fetxawewe Tapuya Guajajara Veríssimo) e pelo Coletivo Tybyra. “Foi um momento muito bonito, porque não tinha só jovens. Tinha crianças, anciões, pessoas muito mais velhas que estavam presenciando aquele evento. Eram pessoas de povos diferentes que estavam ali vivenciando e conhecendo o que significa uma ballroom indígena. Fiquei fascinado em ver parentes sendo celebrados, sem vergonha e com segurança”, disse Pedro Tukano, em entrevista ao Amazônia Real.
“Pensamos na integração dos parentes indígenas com essa cena e também para aproximar a gente que está aqui em contexto urbano para dizer que estamos construindo alguma coisa cultural para a gente, que é feito por pessoas indígenas para pessoas indígenas”, conta o coordenador do projeto.
Em 2024, indígenas LGBT+ lançaram no ATL um manifesto. “Como LGBT+ indígenas, temos orgulho de nossas identidades sexuais e de gênero, pois elas se tornaram ferramentas de luta política que se articula e soma ao nosso orgulho de sermos centenas de pessoas em diversas terras indígenas do Brasil”, diz o texto. A identidade LGBT+ indígena “não é contemporânea, não é moda”, diz o manifesto. “O colonialismo, herdeiro presente da colonização de territórios e povos, segue tentando impor um único modelo de vida, baseado em culturas que condenam e criminalizam tudo que lhes é diferente, diverso.” O documento termina dizendo que as pessoas LGBT+ indígenas são parte do projeto de uma sociedade verdadeiramente feliz. “A felicidade e a liberdade só serão possíveis se nossas existências também forem respeitadas.”
Trecho do livro Babado forte, a ser lançado neste mês pela Ubu Editora.
[1]Andiara Ramos Pereira, Entre memórias de infância e crianças legendárias: gênero, raça e sexualidade dos primeiros anos à cena de ballroom & vogue estadunidense. Rebeh, v. 3, nº 9, 2020.
[2] Depoimentos extraídos do material de divulgação do espetáculo Mandinga espiralar (2023), de Puma Camillê.
[3] Ver Andiara Ramos Pereira, op. cit.
[4] Gaía Passarelli, Felix Pimenta: a dança como acolhimento. Paulicéia, 8/6/2022.
[5] Em Abra as portas para a ballroom. Trabalho de conclusão de curso de jornalismo, na PUC-Goiás, em 2022.
[6] Nicoly Ambrosio, Manaus é palco da primeira ball indígena da Amazônia. Amazônia Real, 4/12/2023.
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