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    FOTO: DIVULGAÇÃO/CASA BRANCA

questões diplomáticas

Bananofobia

Por que os Estados Unidos têm tanto medo de virar uma república de bananas?

Andre Pagliarini | 26 jan 2021_10h05
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Logo após a invasão do Capitólio por amotinados contrários à derrota de Donald Trump, o ex-presidente George W. Bush emitiu uma nota dizendo que aquilo “foi uma cena doentia e trágica”. Na visão de Bush, a violência dos rebeldes lembrava o modo como “os resultados das eleições são contestados em uma república de bananas, não em nossa república democrática”. O principal responsável por levar os Estados Unidos às guerras no Afeganistão e no Iraque um conflito, aliás, baseado em premissas falsas, que se chocavam com o parecer das Nações Unidas lamentava o aventureirismo imprudente. No último dia 20, Bush assistiu à posse de Joe Biden e testemunhou a pacífica alternância de poder que, na visão dele, distingue seu país daqueles mais pobres, instáveis e antidemocráticos.

Não foi só o ex-presidente que fez referência à fruta tropical depois que a poeira baixou em Washington. Um congressista republicano chamou a insurreição de “porcaria típica das repúblicas de bananas”. Vários outros políticos, além de jornalistas e comentaristas,  usaram a mesma terminologia. No entanto, Mike Pompeo, o então secretário de Estado, rebateu essa caracterização. Pelo Twitter, sustentou que a comparação, caluniosa, revelava “uma compreensão equivocada das repúblicas de bananas e da democracia na América”. Explicou: “Em uma república de bananas, multidões violentas determinam o exercício do poder. Nos Estados Unidos, as autoridades reprimem a violência da multidão para que os representantes do povo possam exercer o poder de acordo com o estado de direito e o governo constitucional.”

Na verdade, não havia discordância real entre os que viam a invasão do Capitólio como algo bananeiro e os que rejeitavam essa pecha. Ambos aceitavam a noção de que certos lugares do mundo são naturalmente instáveis e, por razões civilizacionais (para não dizer raciais), incapazes de assegurar eventuais transições políticas de forma pacífica. A questão não é se os acontecimentos recentes nos Estados Unidos indicam ou não que o país está virando uma república de bananas, mas o que esse pânico de degeneração democrática bananofobia, por assim dizer revela sobre o caráter nacional.


Pelo menos desde 1898, quando os Estados Unidos apoiaram a luta pela independência cubana e entraram em guerra contra a Espanha, os americanos se colocam como uma força positiva no mundo. Por muito tempo, imaginou-se que sua política externa agia para ajudar povos menos afortunados, fazendo-os encarnar o que há de melhor na América, especialmente sua generosidade, seriedade e hombridade. Dizia-se que o país se superava continuamente ao longo do século XX porque fazia o bem no palco internacional. O excepcionalismo americano, uma mistura de prepotência e bom-mocismo com raízes históricas profundas, alimentava essa ingenuidade e se alimentava dela.

A autoimagem reconfortante de que os Estados Unidos não seriam um país qualquer se baseia também em sua suposta inocência no âmbito externo. É como se Washington tivesse acompanhando de longe os devaneios políticos da América Central no século passado, por exemplo. Mas, na verdade, o Tio Sam exerceu um papel decisivo em inúmeros conflitos sociais que impossibilitaram o enraizamento democrático em países como Guatemala, Nicarágua e Honduras. Foi Honduras, por sinal, que inspirou o escritor William Sydney Porter a cunhar o termo “república de bananas” em 1904. A banana como metonímia para esses países fazia certo sentido, conforme explicou o historiador Luis Ortega à BBC Mundo: entre o fim do século XIX e o começo do XX, empresas americanas que comercializavam frutas mantiveram uma série de plantações de bananas em repúblicas da América Central, criando enclaves modernos nesses lugares. A mais simbólica das empresas era a United Fruit [hoje Chiquita].

Com o intuito de facilitar seus negócios, essas companhias viriam a exercer um poder enorme e muitas vezes nocivo sobre a vida política, econômica e social dos países em que operavam. Camponeses na América Central consideravam abusivas as práticas trabalhistas da United Fruit, para além de seu projeto latifundiário e extrativista. Mas empresários e políticos dos Estados Unidos enxergavam apenas o lado supostamente benéfico desse investimento. Um artigo de 1958 publicado na revista Barron’s National Business and Financial Weekly, da Dow Jones & Company, ilustrava perfeitamente a autoconcepção magnânima do empresariado americano em relação às repúblicas de bananas. Depois de sugerir uma nova abordagem diplomática para a América Latina, o texto afirmava, em tom de lamento: “Os Estados Unidos, ao que parece, apesar de todos os seus esforços para atrair popularidade, não são universalmente amados nas terras do Sul.” Isso talvez tenha tido algo a ver com o golpe de 1954 na Guatemala, em que um presidente nacionalista e reformista foi derrubado pela mão não tão invisível da CIA, cujo diretor já havia representado a United Fruit em ações legais no passado.

O artigo apontava a United Fruit como um exemplo para o futuro das relações entre os Estados Unidos e os latino-americanos. “Embora muitos dos generosos empréstimos e concessões de Washington [à empresa] se mostrem improdutivos (…), a United Fruit oferece fartas recompensas tanto para os Estados Unidos quanto para a América Latina.” Como “empregador esclarecido em terras subdesenvolvidas”, a companhia estaria fazendo um papel quase filantrópico nos países onde atuava, pagando salários acima da média local e exportando o chamado “American way of life” para populações mais pobres. “Se os Estados Unidos e seus amigos do Sul se unirem para encorajar mais empreendimentos privados, todos os interessados se beneficiarão”, sustentava o artigo.

 

Evidentemente, essa narrativa congratulatória não se resumia às relações hemisféricas. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos se colocavam como paladinos da virtude e queriam que outras nações os vissem assim. Mas a realidade era bem mais complexa. Em 1952, quando o presidente guatemalteco Juan Jacobo Árbenz Guzmán expropriou mais de 90 mil hectares e os disponibilizou para trabalhadores rurais, apenas 2% dos proprietários de terras possuíam 70% do solo agrário utilizável no país. Os lavradores eram mantidos em uma espécie de escravidão por dívida. O maior obstáculo à reforma agrária na Guatemala foi justamente a United Fruit. Enquanto a empresa exigia o ressarcimento do valor total dos terrenos expropriados que lhe pertenciam, o governo estaria disposto a pagar apenas o preço cotado nas avaliações fiscais feitas anteriormente pela própria companhia. Acontece que a United Fruit havia sistematicamente subestimado o valor das terras para reduzir sua carga tributária. Assim, o governo guatemalteco conseguiu confiscar 40% das propriedades da empresa a um custo baixo.

Reclamando de avanços comunistas na América Latina, a companhia tramou em Washington contra Árbenz Guzmán, como demonstram claramente documentos oficiais do governo americano. Em agosto de 1953, o presidente Dwight D. Eisenhower aprovou a Operação PBSUCCESS, cujo objetivo era a mudança de governo na Guatemala. Até o dia 27 de junho de 1954, quando Arbenz Guzmán renunciou, “a opção [de assassinar o presidente guatemalteco] ainda estava sendo considerada”, de acordo com a própria CIA, mas foi desnecessária. Arbenz Guzmán e seus principais aliados conseguiram fugir do país. No entanto, depois que Washington instalou o coronel ultradireitista Carlos Castillo Armas no poder, centenas de guatemaltecos acabaram presos e mortos. Grupos de direitos humanos estimam que, entre 1954 e 1990, os agentes repressivos de sucessivos regimes militares assassinaram mais de 100 mil civis na Guatemala.

Os governos dos Estados Unidos sempre se regozijaram da habilidade de fingir ignorar fatos longínquos e inconvenientes. Um termo como “república de bananas” tem exatamente a função de eximir os americanos de qualquer responsabilidade pelas desavenças bananeiras que se desdobraram, ou estão a se desdobrar, em algum lugar distante. A invasão do Capitólio mexeu com essa cosmologia, trazendo o caos para dentro de casa. A vasta distância entre a realidade e a percepção que o americano médio possui da política externa de seu país existe há muito tempo. Nos quatro anos de Casa Branca, Trump levou essa dinâmica para assuntos domésticos, de tal modo que seus seguidores mais ferrenhos obedeciam ao líder numa aventura fantasmagórica sem fundamento.

Trocando em miúdos, não existem repúblicas de bananas na natureza. Existem democracias frágeis, deliberadamente suscetíveis aos caprichos de poderosos que colocam seus próprios interesses acima das necessidades da maioria. O negócio é identificar os países nessa condição e encontrar uma expressão suficientemente abrangente para denominá-los.

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