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Bico calado, assunto encerrado!

Alheio à peste, Ele colhe os dividendos políticos da tragédia

Eduardo Escorel | 19 ago 2020_09h13
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Ele preside o governo que instituiu, primeiro, o chamado auxílio emergencial de 600 reais, pago a partir de abril, durante três meses, a mais de 65 milhões de trabalhadores informais, microempreendedores, autônomos, desempregados e pessoas de baixa renda. No final de junho, o benefício foi estendido por mais dois meses, e, agora, nova prorrogação está em estudo.

No plano pessoal, Ele se manteve de bico calado, alheio à peste que assola o país, e vestiu uma fantasia menos beligerante do que sua persona costumeira.

Resultado: a aprovação de Ele subiu de 32% para 37%; 47% dos brasileiros não o consideram culpado pelas mais de 100 mil mortes causadas entre nós pela Covid-19; e 49% não o julgam responsável pelo avanço da pandemia no país. Apenas 11% acreditam que Ele é o principal culpado, e 41% dizem que Ele é um dos culpados, sem ser o principal, conforme pesquisa do Datafolha divulgada em 14/8.

Parece evidente haver relação direta entre o auxílio financeiro, a falta de envolvimento pessoal no enfrentamento da peste e o uso do disfarce menos agressivo, de um lado, e, de outro, o aumento do índice de aprovação de Ele, assim como o elevado percentual dos que não o culpam pelo alto número de mortes, nem pela disseminação da pandemia. Ressalvada a indiscutível necessidade do benefício financeiro aos milhões mais pobres do Brasil, o espetáculo à nossa frente inclui dividendos políticos sendo auferidos pelo capitão reformado e o poder de um populista vulgar e autoritário sendo consolidado.

A fábula política engendrada em Brasília teve novo lance quando, na undécima hora, depois de o ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter revogado a prisão domiciliar de Fabrício Queiroz e de sua mulher, Márcia Aguiar, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu habeas corpus ao casal que lhes permitiu continuar onde estavam. Assim, Queiroz e Aguiar poderão continuar tranquilamente a tomar sol na varanda do apartamento de 83 m2, com três quartos e uma suíte, na Taquara, Zona Oeste do Rio de Janeiro. 

Mesmo sem pôr em dúvida a lisura da decisão do ministro Gilmar Mendes, é preciso assinalar que a concessão do habeas corpus vem ao encontro do interesse de Ele e do seu clã de três zeros com mandato. Pai e filhos querem assegurar tratamento privilegiado a Queiroz e Aguiar, evitando testar até onde vai a fidelidade do casal e sua capacidade de se manter em silêncio ou de se limitar a dizer o que é conveniente sobre seus amigos e antigos patrões.

Na área cultural e, especificamente, no que diz respeito ao cinema brasileiro, persistem sinais da “guerra cultural” em curso, cujos propósitos destruidores o professor João Cezar de Castro Rocha chamou na semana passada (11/8) de “a retórica do ódio” que tem por objetivo identificar “o inimigo interno a ser eliminado”, considerando legítimos quaisquer meios necessários para alcançar esse fim. A gravação completa da entrevista de Rocha ao jornalista Pedro Doria está disponível no YouTube, em https://www.youtube.com/watch?v=mKkbsFNUDXY .

Diversas entidades culturais são exemplos eloquentes da tática destrutiva mencionada por Rocha. A Cinemateca Brasileira, por exemplo, continua em situação periclitante, agravada desde que a organização social (OS) Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) demitiu, em 12/8, todos os funcionários que tinham vínculo com a Acerp, gestora da instituição desde 2018.

Alinhada com a vocação mais autoritária da ala ideológica do governo federal, a Secretaria Especial da Cultura manifestou a pretensão de participar da escolha do filme brasileiro a ser submetido à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Ampas), para concorrer ao Oscar 2021 de Melhor Filme Internacional. A escolha dos integrantes dessa comissão, porém, foi anunciada (12/08) pela Academia Brasileira de Cinema (ABC), entidade privada, reconhecida pela Ampas como responsável por essa seleção. Segundo Guilherme Amado (Época, 17/08), o secretário da Cultura pretendia que o Conselho Superior de Cinema, subordinado à Casa Civil da Presidência da República, tivesse metade dos votos da comissão, além do direito de escolher o presidente que teria o voto de desempate. Integram a comissão escolhida pela ABC profissionais de notório saber: Affonso Beato, diretor de fotografia, membro da Ampas; Clélia Bessa, produtora; Laís Bodanzky, produtora, diretora, membro da Ampas; Leonardo Monteiro de Barros, produtor; Lula Carvalho, diretor de fotografia, membro da Ampas; Renata Magalhães, produtora; Rodrigo Teixeira, produtor, membro da Ampas; Roberto Berliner, produtor e diretor e Viviane Ferreira, diretora e roteirista.

 

Outra questão em pauta, relativa ao comércio cinematográfico, é a reabertura das salas de cinema. Seguindo os passos da flexibilização já autorizada para alguns setores, os exibidores pretendiam aderir à onda e retomar seu negócio a partir do próximo dia 27. À parte a necessidade de voltar a ter receita, documento do sindicato da categoria tenta “convencer as autoridades de que o cinema é uma das áreas mais seguras a serem frequentadas, já que oferece rigorosos protocolos de segurança para garantir a integridade do público e dos funcionários”. Apesar das medidas preventivas adotadas – higienização entre sessões, espaçamento entre assentos, venda de ingressos online e profissionais treinados – os argumentos em defesa da reabertura das salas são frágeis do ponto de vista da saúde pública. Por acaso, alguém considera prudente ficar em uma sala fechada com ar condicionado, junto com pessoas desconhecidas, durante duas horas? Quantos estarão dispostos a ir ao cinema nessas condições? Bares e restaurantes autorizados a reabrir vêm demonstrando serem pontos de aglomeração nos quais muitas pessoas não usam máscara, comportamento irresponsável que se estende aos frequentadores do calçadão e da areia das praias do Rio de Janeiro, contribuindo para disseminar a peste. 

Fator decisivo na escolha da data de 27 de agosto para reabrir os cinemas eram as estreias, marcadas para 10 de setembro, de Tenet, de Christopher Nolan, distribuído pela Warner Bros., e Os novos mutantes, de Josh Boone, distribuído pela Walt Disney Studios – ambos considerados candidatos a se tornarem blockbusters capazes de minorar o prejuízo havido nos últimos cinco meses. Ou seja, a par do interesse financeiro próprio, tudo indica ter pesado na intenção de reabrir cinemas o propósito de atender aos distribuidores americanos, menosprezando o estágio em que a pandemia se encontra no Brasil, definido ainda por uma média móvel elevada de mortes, em que pese as tendências divergentes entre diferentes regiões do país.

A estreia de Tenet, no Brasil, acabou sendo adiada para 24 de setembro e, coincidência ou não, o prefeito do Rio de Janeiro adiou domingo (16/8) a reabertura de cinemas, teatros e casas de eventos por quinze dias.

 

Na França, o circuito exibidor enfrenta dificuldades “em face de um público pouco propenso a se fechar em época de pandemia”, segundo artigo de Sandra Onana publicado no Libération, em 5 de agosto, que identifica a temporada atual como “O verão sombrio das salas escuras” – anúncios de cinemas fechados, adiamento de estreias dos filmes das majors, redução de 40% do número de sessões, queda entre 60 e 80% dos ingressos habituais vendidos. Alguns afirmam “não saber como incitar o público a ir assistir a outra coisa que não sejam as produções americanas e as comédias televisivas francesas quando esse filão está em falta, após anos espremendo-o como a um limão… É mais fácil conseguir 2 milhões de espectadores com um grande filme do que tentar a mesma coisa com dez. Também é óbvio que quando você passa a vida dizendo que Clint Eastwood é cinema de arte e ensaio, você habitua as pessoas a só se moverem para ir ver valores seguros, e a acreditarem que a diversidade se limita a Clint Eastwood e a Almodóvar.”

Segundo o artigo, “nenhuma cidade realmente paira acima do colapso geral”. E conclui nos termos seguintes:

 

Todas as vozes concordam em dizer que crises são reveladoras de falhas de um sistema. A ponto de as práticas serem reformadas por si mesmas para se curar de sua dependência do mercado americano? Provavelmente não, insinuam vários participantes desiludidos. Obrigados a constatar que o espaço deixado livre pela ausência de grandes produções não beneficia as pequenas, vítimas da crescente aversão ao risco decuplicado, e ao fato de os profissionais paralisados ​​pela crise terem a tendência de se agarrarem aos mesmos hábitos de sempre […].

E entre nós? Estaremos condenados a retomar os mesmos hábitos de antes no que se refere às práticas usuais do mercado exibidor? A ver.

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João Cabral de Melo Neto em cena do filme Recife/Sevilha

 

Na Sessão Centenário de João Cabral de Melo Neto estarão disponíveis online, na página Recine no Facebook e no site Vertentes do Cinema (https://vertentesdocinema.com/), dois filmes de Bebeto Abrantes: Recife/Sevilha, João Cabral de Melo Neto, às 19h, do dia 21 agosto; e 3 x João Cabral de Melo Neto, dia 22, durante 24 horas.

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Na próxima terça-feira, 25/8, às 11 horas, Paulo Betti conversa com Piero Sbragia, Juca Badaró e comigo sobre a experiência de manter o teatro vivo em tempo de isolamento social, depois de ele ter enfrentado as dificuldades para exibir A Fera na Selva (2017), adaptação de Henry James que co-dirigiu com Eliane Giardini e Lauro Escorel. Acesso aqui.

Não deixem de ler o artigo O sequestro de nossa memória audiovisual, de Eduardo Morettin, recém-publicado no Jornal da USP e que pode ser acessado através do link https://jornal.usp.br/artigos/o-sequestro-de-nossa-memoria-audiovisual/

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A Trilogia do Futebol, de Lucho Pérez Fernández que se apresenta como “assistente de mágico e fabulador de verdades inventadas”, está em https://vimeo.com/440045735.

A Copa dos Refugiados, Os Boias-Frias do Futebol e Boca de Fogo, três documentários de curta-metragem, estão acessíveis em programa único de 37 min, e permanecerão online até 20/9. O diretor é ex-aluno do curso Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas.

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A Cinemateca do MAM Rio oferece programação online gratuita no site, acessível por meio do link www.vimeo.com/mamrio. Até 27 de agosto pode ser assistido, entre outros, Cacaso na corda bamba (2016), de José Joaquim Salles e Ph Souza. A programação completa da Cinemateca para este mês pode ser consultada através do link  http://www.mam.rio/cinemateca/agenda/este-mes/.

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