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Bob Marley, eu e Paulo Suprimento

Evandro Mesquita | 07 nov 2011_12h20
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Os anos setenta foram anos de entradas e bandeiras. Época de riscar o mapa e arriscar os primeiros voos e mergulhos profundos no planeta. Tentar a sorte. Apostar na arte sem medo da morte. Dar forma aos sonhos na intuição. Fazer o caminho direito, mesmo na contramão. Começar de baixo. . O teatro foi o primeiro canal.

No curso do Sérgio Britto, conheci Regina Casé, Hamilton Vaz Pereira e Nina de Pádua que, mais tarde, encontraria de novo no grupo de teatro Asdrúbal Trouxe O Trombone. Do curso do Sérgio fui pinçado por Klaus, o Vianna, que me apresentou ao Rubens Corrêa e ao Ivan de Albuquerque. Fiz Hoje É Dia De Rock, do Zé Vicente, e A China é Azul, do Zé Wilker. Depois encarei um musical louco chamado Tropix, com uma diretora americana, Mossa Ossa. No elenco hilário: Angela Ro Ro, Paulo César Peréio, Nelson Xavier, Zaira Zambelli, José Paulo Pessoa, Pedro Saad e mais outros atores, doze músicos e dois capoeiristas. Uma puta produção no Teatro Carlos Gomes. Era engraçado e bem legal… Pena que às vezes tinha mais gente no palco que na platéia. Depois a vida seguiu e fui morar em Saquarema. Foi lá que eu ouvi, pela primeira fez, em volta da fogueira, o Luie cantando e tocando No Woman No Cry, do Bob Marley. Fiquei fascinado. Que levada maneira! Que poesia crua na veia! Aliás, os dois Bobs, o Dylan e o Marley, estavam no cardápio de toda fogueira em Saqua.

E essa era a trilha sonora de todo dia! Parecia um xote, alguma coisa do nordeste, um suingue familiar. Como o som de vento nos coqueiros, pontos de candomblé, afoxé, sol, praia… Essa era a onda que rolava e atropelava um momento dark, sem cor, vida e esperança.

Depois de Saquarema entrei para faculdade, que tranquei no terceiro período pra ensaiar pesado com o Asdrúbal Trouxe O Trombone, a nossa criação coletiva, Trate-Me Leão. Nove meses de ensaio. O tempo de fazer uma criança. Eram seis, oito, dez e doze horas diárias. Duras. Depois do terceiro mês de ensaio, já estávamos em ritmo de estréia! E era imprescindível a presença de todos. Éramos disciplinados quanto a horários e presença. O sacrifício e a transpiração fazem parte da arte. Todos de corpo e alma pelo prazer de descobrir uma maneira nova, com personalidade própria, de fazer teatro. Desconstruindo e adaptando teorias importadas. Atuando e escrevendo com nervos da nossa geração. O teatro e a vida embaralhavam as pernas. Mais saltos, voos e alguns tombos.

Durante esses meses, teve uma semana em que cada um de nós era responsável pelo ensaio e, no meu dia, apresentei para o Asdrúbal o som do Reggae e Bob Marley. No final de um exercício que batizei de “A Casa Do Karma”, coloquei o som e mostrei as letras, fatos e fotos da fera de dreadlocks e de religião Rasta.

Uma época boa também de ótimas e refinadas peladas. Enquanto tive joelho, jogava muito e jogava bem. Nessa época as peladas eram bem servidas de feras como Ney Conceição, Afonsinho, Geraldo Assobiador, Pintinho, Paulo César Lima, Humberto do Botafogo, Júnior, Serginho da Portuguesa, Maurício Camelo, também da Portuguesa, os irmãos, Fernandinho, Marcelo, Dadica e Joninha, Magal, Batata, entre outros craques peladeiros.

E foi pra contar o que vou teclar agora, que teclei tudo isso antes… O dia em que o teatro, a música e o futebol me jogaram na parede.

Acho que já rolava o ano de 78 ou 79… Neblina nas datas. Já estávamos viajando com a outra peça, Aquela Coisa Toda. Lembro que estava na praia com a Regina Casé e a Patrícia Travassos, fazendo hora pra mandar um suco pra dentro, morder alguma coisa e voar pro ensaio. E era um ensaio importante porque faríamos uma apresentação especial da peça no Morro da Urca. Teatro pra umas duas mil pessoas e sem microfone. Era A noite do Chacal. Nosso querido poeta Chacal, que se recuperava de um sério acidente em São Paulo. E tínhamos que adaptar a peça para o novo espaço.

Aquele dia foi covardia… Porque eu e as meninas estávamos saindo da praia quando cruzamos com o Paulo César Lima, o PC, craque do futebol brasileiro, meu amigo e parceiro de pelada. Foi ele que me deu o toque:

– O Bob Marley tá lá na casa do Chico Buarque e quer jogar uma pelada com a gente. Bora lá? Eu tô de carro aí…

Meus olhos faiscaram nos óculos do PC. Meu coração deu uma parada e pulou pro céu da minha boca. Regina e Patrícia ficaram amarelas, na delas… Elas sabiam da minha paixão pelo Bob, por peladas e do prazer de jogar com feras como PC.

Meu Deus! Agora eu ali em pé, na Vieira Souto, como um pinguim perdido…

De um lado, PC entrando no carro e me chamando pra ir jogar com nada mais nada menos que Bob Marley And The Wailers! Do outro lado da rua, na sombra, Regina e Patrícia me olhavam com certa pena e balbuciavam alguns conselhos:

– Vai… Ué… Vai foder tudo… Mas tudo bem… Fazer o quê?

PC gritava coisas do tipo:

– Brincadeira, hein?! Chega dessa porra de ensaio! Vamos jogar só uma peladinha e você ensaia amanhã! Porra, é o Bob Marley, caralho!

Avacalhou com nosso ensaio e com a responsabilidade.

– Pôôôra, sacanagem! Não, Paulo, não vai dar.  Eu tenho… Que ensaiar!

Olhei pras meninas procurando salvação, mas elas já tinham atravessado a rua até o lindo Fusca conversível da Patrícia. Eu fiquei sozinho no asfalto quente, desesperado, vendo o carro do PC acelerar em direção ao sol que descia em cima do campo do Chico Buarque no Recreio.

PC passou buzinando e ainda ouvi:

– É brincadeira, hein?! Perdeu a pelada, ô Mané!

– Fodeu! Eu falei pra mim mesmo. Patrícia ligou o Fusca. Não vou conseguir ensaiar com a cabeça lá em Jah! – Ela ligou o pisca-pisca da direita e reforçou colocando o braço, como quem diz: “Estamos indo mesmo, hein?!” Regina ajeitava um chapéu de palha no espelho do carona para não me olhar e nem influenciar minha decisão. Patrícia arrancou e gritou:

– Vai jogar!

Vou jogar! Hoje vou jogar, e com Bob e PC. Vou me dar folga. À noite farei um “teatro jazz”. Conhecia cada um dos colegas pelo avesso e a peça que estávamos fazendo também. No problem!

Eu vou! Porra, claro que eu vou! Vai me inspirar… Eu vou. Já imaginava depois da pelada, Bob Marley e Chico Buarque levando um sonzinho. Mas, de repente, caí na real. Como que eu vou?! O PC já foi… Dancei! Eu não tenho carro e o campo do Chico é no Recreio! E agora? Perdi o ensaio e a pelada! Porra, e que pelada! Ser chamado pelo PC pra jogar com Bob Marley, no campo do Chico Buarque. Era como ser convocado para a Seleção! Emoção pra Roberto Carlos nenhum botar defeito.

Agora a questão era: como ir?!

Mas o universo resolveu me dar mais uma chance e me botou de novo na cara do gol… Jah me mandou uma luz em forma de Kombi! Eis que chega, pra estacionar na vaga do Fusca da Patríca, o Paulo Suprimento. Sozinho naquela Kombi enorme, quase creme, malhada de ferrugem. Chegou explodindo e anunciando a salvação. Achei que Jah podia ter caprichado mais na condução… Mas, era o que tínhamos! E o enviado salvador era o Paulo Suprimento, um negão magro, elegante e bonito. Conheci a figura no sítio dos Novos Baianos, com o também baiano Beto Sem Destino. No sítio dos baianos, Paulo Suprimento supria e salvava a galera com sua presença bem servida em eventos especiais como os ensaios no galinheiro, as peixadas e as peladas.

Mas, foi aí que eu segurei o Suprimento, não deixei nem ele descer da Kombi. Contei toda a história do Marley, do Chico, do PC e não deu outra, pulei na Kombi e fomos metendo bronca até o Recreio.

A Kombi ia na pressão alta, aos trancos, e às vezes dava umas desmaiadinhas querendo morrer. Sei que, depois de queimar duas velas, chegamos dando aqueles estouros de silencioso esporrento. A pelada já rolava solta. Era inauguração da Ariola, uma gravadora, e sua diretoria bebia cerveja comportada em volta do campo. O time do Chico cheio de Toquinho e uns pregos. Do outro lado com camisas azuis, parecidas com as do Cruzeiro, Bob Marley, PC and friends jamaicanos.

Eu já tava feliz de ver o Bob correndo, tentando tabelas com o PC e chamando-o de Paôlo.

– Que maneiro ver o cara na nossa frente! – Falou Suprimento, com um sorriso igual ao meu.

Cheguei até aqui… Agora tenho que conseguir uma vaguinha, nem que seja no time do Chico, contra Bob Marley e PC! Os jamaicanos eram meio duros, mas jogavam com a alegria de estar no time do PC, fera da Seleção Brasileira, na terra do futebol que eles tanto curtiam. E eu, fissurado, do lado de fora! Naquela época, ali, eu só conhecia o PC… E não dava pra pedir a vaga dele. Até o Bob ia ficar puto comigo. Bola pra lá, bola pra cá e numa disputa Alceu chutou o Toquinho e a bola escapuliu pela lateral, perto de nós. Fui ao Valença e falei sem cerimônia:

– Aí, Alceu… Agora deixa eu?

– Iiih!

– Me deixa jogar esse finalzinho, por favor?

– Eu sabia que ia ouvir isso! Esse era meu medo.

Disse Alceu, sem me olhar, e saiu correndo balançando o cabelo e cagando pro meu pedido. Fiquei fodido. E foi aí que o juiz apitou o final, acabando de vez com a minha esperança…

Bob abraçou o Paulo, que me apontou pra me apresentar. Bob tava com a bola… Pedi… Ele rolou pra mim, eu levantei fiz uma firula e devolvi pra ele, que gritou:

– Yeah, man! – E me abraçou sorrindo com todos os dentes de Marley pra fora!

Arrisquei, meio tarzan:

Nice to meet you, man! I love your music!

Paulo Suprimento chegou junto e cumprimentou o Bob Marley com um aperto de mão e, pra surpresa minha e do Bob, quando soltou, deixou um baseado na mão do Marley e falou:

– É da Mangueira!

– Uau, man! Thanks! Jah love!

Paulo surpreendeu mais ainda quando riscou um isqueiro:

– Taca fogo!

– Jah Rastafire!

Eu, Bob Marley e Paulo Suprimento, naquele canto do córner. Inacreditável! Pensei nos meus amigos. Queria chamar o Bob pra ver a minha peça, pra ir à praia, pra viajar, levar um som, apresentar à rapaziada. Positive Vibration. Yeah! Yeah! Mas Rastaman não passa bola, cada um com a sua bola! Até que Suprimento salvou de novo e fizemos uma paulista. O mais engraçado é que o Paulo Suprimento desandou a falar em português cheio de gírias com o Bob Marley. Como se ele estivesse entendendo tudo! Eu até tentava traduzir alguma coisa, mas desisti, porque no fim achei que o Bob… Estava entendendo tudo! Entre uma bola e outra ele sorria e dizia:

– Yeah, man!

O tempo parou naquele pôr-do-sol, no sorriso, nos cabelos e na voz de Bob Marley. Eu fiquei assim meio besteirão até ser acordado pelos estrondos da Kombi do Suprimento que foi, também sorrindo, pra Jacarepaguá…

Voltei do Recreio com o PC!

BOB NÉ BOBO NÃO

MARLEY E DYLAN

DESFILAM NO MEU CORAÇÃO

Dicas musicais:

Time Will Tell 

One Love – Essa muisca tem várias leituras, é política… É sexual e fala também fala do amor sublime

Turn Your Lights Down Low – Um remix bacana de Bob Marley com a Lauryn Hill

In Love With You – cantada pela Erika badu e o filho mais esperto de Bob (que eu mais curto) Stephen Marley

Got Music – Stephen Marley

PIMPA’S PARADISE – Damian Marley FT. Stephen Marley – (acústico)

Dragon Fly  | True to myself –  Ziggy Marley (do seu melhor album)

Love is my religion – Ziggy Marley

Dicas rápidas e imperdíveis do outro Bob, O Dylan!

Most of the Time

You aint going nowhere (do soundtrack do filme I´m Not There)

E fechando com chave de ouro!

Richie Havens cantando Just Like a Woman, do Dylan

Para ser escutada de joelhos, pra mim uma das 3 melhores interpretações de todos os tempos!

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