A Câmara dos Deputados tem sido protagonista do debate sobre o sistema político-eleitoral brasileiro, como mostram as atenções da mídia e da opinião pública para a rejeição à PEC do voto impresso na Casa e para um conjunto amplo de alterações propostas na legislação eleitoral. Somado a isso, repousa no colo do presidente da República a decisão sobre sancionar o aumento do fundo eleitoral para financiamento de campanha dos atuais 2 bilhões para 5,7 bilhões de reais. O que a maioria dos brasileiros não percebeu é que está em curso uma mudança na relação entre Executivo-Legislativo a partir da lógica orçamentária e da participação do Congresso na definição do destino de recursos da União – e como isso é usado para fortalecer suas campanhas e os laços com suas bases, com consequências para o controle da corrupção e para o desenvolvimento do país.
Embora o direito de intervir no processo de elaboração do orçamento da União seja algo legítimo e uma das maiores conquistas do Congresso Nacional introduzidas pela Constituição de 1988, por motivos históricos há desconfiança sobre esse papel. Basta lembrar o escândalo dos Anões do Orçamento, no início dos anos 1990, em que houve grandes desvios de recursos de emendas parlamentares num dos maiores esquemas de corrupção do país. Outro ponto importante para essa desconfiança é o fato de que a busca de recursos federais para os estados não é, constitucionalmente, uma atribuição dos deputados federais. E, por fim, a percepção de que a destinação de recursos federais para estados e municípios passa por uma lógica clientelista, orientada por um cálculo eleitoral do parlamentar interessado em sua reeleição.
Se a prerrogativa de propor o orçamento continua sendo do Executivo, uma série de mudanças ao longo dos últimos anos tem alterado a relação de forças entre os dois poderes em favor do Legislativo, de forma a aumentar seu poder de barganha.
Em 2015, sob a presidência de Eduardo Cunha (MDB), emendas individuais passaram a ser impositivas, significando um impacto de quase 10 bilhões de reais naquele ano. Em 2019, já sob o comando de Rodrigo Maia (DEM), emendas de bancada tiveram o mesmo destino, em valores próximos a 6,7 bilhões de reais. Em dezembro daquele ano a PEC 105/2019, aprovada no apagar das luzes, criou uma nova modalidade de transferência direta de recursos do orçamento para estados e municípios, as chamadas “transferências especiais”.
Diferentemente das transferências obrigatórias (legais e constitucionais) e voluntárias, as transferências especiais permitem que as emendas individuais impositivas possam agora ser enviadas diretamente aos estados e municípios, sob o pretexto de mais agilidade e menos burocracia. Com isso, dispensa-se a necessidade de apresentação de plano de trabalho ou qualquer outra documentação necessária para que o ente receba o recurso, está dispensada também a exigência prévia de convênio, bem como a abertura de conta bancária específica para a transação.
Não há, no envio do dinheiro, nem especificação da área destinada (saúde, educação etc.) e nem a sua finalidade (construção de hospital, escola etc.). Apelidado de “pix orçamentário”, a manobra enfraqueceu não somente o controle sobre esses recursos – ao não especificar na legislação a quem cabe sua fiscalização – como também atropelou a lógica federativa, transformando os recursos da União em recursos “de livre uso” dos entes subnacionais, em valor que até julho chegou a 1 bilhão de reais.
Não fosse o suficiente, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) 2022 ainda prevê que as emendas impositivas de bancada possam servir ao mesmo propósito. O tema aguarda manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF).
Como consequência temos não só o afrouxamento da capacidade fiscalizatória sobre para onde vão os recursos públicos nos estados e municípios, o que abre margem para todo tipo de corrupção, como também um canal livre de escoamento de dinheiro para irrigar os cofres das prefeituras e governos estaduais dos territórios nos quais se dará a disputa pelo voto do eleitor no ano que vem. Ainda, e o mais grave: estamos assistindo, sem nos dar conta, à inviabilização do orçamento da União como instrumento de planejamento do país, fatiado a partir de lógicas locais que pouco dialogam com o interesse no desenvolvimento nacional.
A década de 1990 viu os escândalos orçamentários ganharem as manchetes do país. Na década seguinte, o Brasil descobriu que a corrupção em relação aos recursos públicos se deslocou do orçamento para as estatais. No início dos anos 2010, a operação Lava Jato colocou luz sobre as relações entre capital e Estado e apertou o cerco em relação às empresas públicas. Enquanto a opinião pública se debate com aquilo que há de mais atrasado em matéria de reforma eleitoral, o parlamento faz a volta na porta giratória do orçamento, enfraquecendo seu controle e aumentando os caixas locais para as eleições do ano que vem. Há boiadas para todos os gostos. E elas passam todos os dias.