minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

questões de polícia

Bolsonaro e o sumiço de um relógio de 257 mil reais

Na trama das joias desviadas pelo ex-presidente e seus auxiliares, ainda não se sabe onde foi parar um luxuoso presente dado pelo rei do Bahrein

André Borges | 15 ago 2023_17h02
A+ A- A

Na tarde do dia 16 de novembro de 2021, quando Jair Bolsonaro sentou-se frente a frente com o rei do Bahrein, Hamad Bin Isa Al Khalifa, o então presidente usava no pulso esquerdo seu velho relógio Aqua, modelo encontrado em qualquer barraquinha de camelô no Brasil. Costuma ser vendido por cerca de 30 reais.

A simplicidade do relógio, quase escondido sob o paletó, contrastava com a imponência dourada do salão real em Manama, capital do Bahrein, país árabe que tem metade do tamanho da cidade de São Paulo e um PIB igual ao da Bolívia. Bolsonaro trocava afagos e risos com o rei, que, por sua vez, ostentava no pulso esquerdo um relógio da fabricante suíça Patek Philippe. O rei é fã do modelo que foi produzido em ouro rosado e talhado exclusivamente para homenagear os 50 anos de presença da marca no Bahrein. Há apenas 25 relógios como aquele no mundo, personalizados com a bandeira bahrenita, vermelha e branca. A peça custa 99 mil dólares, o equivalente a meio milhão de reais.

Bolsonaro, Michelle e Hamad Bin Isa Al Khalifa, rei do Bahrein, na visita do então presidente brasileiro ao país. No pulso do rei está um relógio Patek Philippe igual ao que foi presenteado a Bolsonaro – Foto: Alan Santos/Palácio do Planalto

 

No encontro que marcou a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro ao Bahrein, Bolsonaro convidou o rei para visitar o Brasil e presenteou a majestade com o Grande Colar da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, comenda brasileira destinada exclusivamente a chefes de Estado, em ocasiões que justifiquem o agraciamento. O monarca não deixou por menos: concedeu a Bolsonaro a Ordem do Bahrein – Classe Premium da Ordem do Xeique Isa bin Salman Al Khalifa, um nome extenso que sinaliza uma comenda para lá de importante. Mas não ficou só nisso. Bolsonaro deixou o Bahrein com outro presente oficial: um luxuoso relógio Patek Philippe, mesma marca usada pelo rei. O preço: 51,7 mil dólares, ou 257 mil reais. Faltou só registrar o modesto souvenir oficial junto à União, depois de voltar ao Brasil.

A existência do Patek Philippe presenteado a Bolsonaro só se tornou conhecida na última sexta-feira (11), depois que o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes tornou pública sua decisão a respeito do inquérito da Polícia Federal que investiga o caso. Até então, só se sabia de joias que haviam sido recebidas por Bolsonaro e registradas devidamente na burocracia de Brasília, como manda o rito legal. Esses itens, conforme revelou a investigação, foram vendidos nos Estados Unidos e depois recomprados por pessoas próximas a Bolsonaro – o que alimenta suspeitas de corrupção de lavagem de dinheiro. Enquanto apuravam esse rolo, os agentes da PF acabaram descobrindo a existência do relógio do Bahrein, que, diferentemente dos demais, não estava registrado em lugar nenhum. E seu paradeiro, até agora, continua sendo um mistério.

Fotos do relógio, de sua embalagem e certificado de garantia foram encontradas no computador do ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, que acompanhou a comitiva de Bolsonaro no Bahrein. O militar, que passou a ser pressionado quando o caso foi revelado, em 3 de março, está preso desde maio, por suspeita de ter fraudado cartões de vacinação. Os registros da PF mostram que Cid fotografou e enviou informações sobre o Patek Philippe para seu próprio e-mail no mesmo dia 16 de novembro de 2021, pouco depois do encontro com o rei. No e-mail, já constava o valor do presente, que ele próprio tratou de inserir. Os dados também foram compartilhados com um número de celular registrado por Cid com o nome “Pr Bolsonaro Ago/21”.

Relógio recebido por Bolsonaro em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Relógio recebido por Bolsonaro em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Certificado do relógio em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Certificado do relógio em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Relógio recebido por Bolsonaro em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Relógio recebido por Bolsonaro em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Certificado do relógio em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid
Certificado do relógio em foto encontrada pela Polícia Federal no computador de Mauro Cid

Sem ter sido registrado no Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República, o relógio presenteado a Bolsonaro ficou escondido por meses, sabe-se lá onde, até ter seu destino selado em 13 de junho de 2022, quando foi vendido por Mauro Cid para uma relojoaria americana, durante uma viagem oficial àquele país. O militar fez uma venda casada: além da peça do Bahrein, vendeu um Rolex cravejado de diamantes que Bolsonaro havia ganhado do rei da Arábia Saudita. As demais joias que compunham o kit do Rolex foram repassadas a outra loja americana. Com o negócio dos relógios, ele faturou 68 mil dólares, o equivalente a 347 mil reais, em valores da época. A compradora foi a empresa Precision Watches, segundo um registro de pagamento coletado pela PF.

“Em consulta aos documentos referentes ao acervo privado do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO, disponíveis na presente investigação, não foi identificado nenhum registro do relógio Patek Philippe, fato que indica a possibilidade de o referido bem sequer ter passado pelo então Gabinete Adjunto de Documentação Histórica – GADH (hoje DDH) para realização do tratamento e classificação do bem para definição quando a destinação ao acervo público ou o acervo privado do Presidente da República, sendo desviado diretamente para a posse do ex-Presidente JAIR BOLSONARO”, afirma o relatório da PF.

A piauí confirmou que, de fato, não há nenhum registro oficial do presente do rei do Bahrein ou em nome de qualquer outro membro da realeza. Em março, quando veio à tona o escândalo das joias presenteadas a Michelle Bolsonaro pelo monarca saudita, o núcleo próximo a Bolsonaro iniciou uma “operação de busca” para reaver todos os presentes luxuosos que tinham sido vendidos. Temiam que o Tribunal de Contas da União pedisse a devolução dos itens, o que acabou ocorrendo. O Patek Philippe, no entanto, como não tinha sido registrado e, portanto, era desconhecido do Estado brasileiro, ficou de fora da operação.

Foi o que concluiu a PF: “Tal fato explicaria não ter existido, ao contrário dos demais itens desviados, uma ‘operação’ para recuperar o referido bem, pois, até o presente momento, o Estado brasileiro não tinha ciência de sua existência”, diz o mesmo relatório.

A reportagem perguntou à defesa de Bolsonaro o motivo para o presidente não ter declarado o luxuoso relógio recebido no Bahrein. Três advogados do ex-presidente foram acionados. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta. A Embaixada do Bahrein no Brasil foi procurada para se manifestar sobre o caso, mas também não o fez.

O paradeiro do relógio Patek Philippe é  um mistério. Se ninguém ainda o comprou, é possível que ele ainda esteja à venda em alguma prateleira da Precision Watches nos Estados Unidos.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí