A dança das cadeiras promovida pelo presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto parece ter surpreendido apenas os generais estrelados. Para quem acompanha a dinâmica política brasileira, estava claro que a sobrevivência política do presidente – excluída uma tentativa de ruptura institucional – dependia de fortalecer suas relações com o Legislativo. Depois de mais de dois anos de mandato, sem uma base legislativa estável e em meio a uma gestão desastrosa da pandemia, Bolsonaro tem precisado formar coalizões mínimas no varejo do Congresso para evitar a abertura de um processo de impeachment. Nesse episódio de fraqueza presidencial, o grande vencedor foi o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Ao indicar aliados próximos para posições chave como a chefia da Casa Civil e da Secretaria de Governo, Lira se confirma como fiador do futuro de Bolsonaro.
O presidente da Câmara tornou-se o gestor da coalizão parlamentar que sustenta o governo. Uma das faturas cobradas por Bolsonaro foi tentar dar sobrevida à sua obsessão: adotar o voto impresso. Mesmo depois de a proposta ser derrotada na comissão especial, Lira levou-a para votação no plenário da Câmara. Ainda que o regimento interno lhe permitisse fazer isso, é pouco usual que presidentes da Câmara tentem reverter decisões de comissões da Casa. Nessa posição ambígua e tensionada, Lira “lavou as mãos”. Apesar dos 229 votos favoráveis à proposta, o número ficou distante dos 308 necessários para sua aprovação.
Na prática, a atuação da dupla Bolsonaro-Lira é a consolidação de gradativas mudanças institucionais em nosso regime de presidencialismo de coalizão – é fácil para qualquer um entender que, na ausência de uma maioria partidária clara no legislativo, o presidente se vê obrigado a compor uma coalizão com diferentes partidos para governar. Não por acaso, presidentes que valorizaram o trabalho de gestão da coalizão legislativa foram aqueles que tiveram governos relativamente tranquilos em termos de relações entre os dois poderes. No caso brasileiro, ser um bom gestor (de coalizão), de fato, é uma condição necessária para um governo estável.
O semipresidencialismo é um sistema híbrido, em que o presidente eleito diretamente divide o governo com o primeiro-ministro, escolhido por ele em acordo com uma maioria no Congresso. No Brasil, o semipresidencialismo tem sido apresentado como forma de amenizar crises políticas ao retirar do presidente sua função de chefe de governo. Enquanto os dois poderes continuariam sendo eleitos por pleitos distintos, o responsável pela gestão da coalizão passaria a ser o primeiro-ministro, indicado pelo presidente e aprovado pela maioria do Congresso. Como não se trata de um modelo parlamentarista tradicional, o presidente continuaria com prerrogativas importantes na definição do governo. Porém, quais seriam essas prerrogativas e sua extensão são incertas. Segundo a proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Samuel Moreira, o presidente seria responsável, por exemplo, pela indicação e demissão do primeiro-ministro, manteria sua capacidade de vetar leis e seguiria no comando da condução da política externa.
Uma inovação surpreendente prevista na PEC, porém, é a possibilidade do presidente da República dissolver a Câmara em caso de impasses sucessivos na aprovação de seu primeiro-ministro, dando ao presidente uma poderosa arma para a formação de coalizões parlamentares. Paradoxalmente, a adoção dessa proposta teria um potencial involuntário de fortalecer ainda mais o presidente em sua barganha com o Legislativo e não enfraquecê-lo. Podemos imaginar o quão feliz Bolsonaro estaria se tivesse essa possibilidade à sua disposição.
Essa discussão, porém, não leva em conta que o nosso presidencialismo não é mais o mesmo das décadas de 1990 e 2000. Nos últimos anos, com presidentes que não geriram bem suas coalizões, o que se viu foi o paulatino enfraquecimento do Poder Executivo em prol do Poder Legislativo – em particular da figura do presidente da Câmara dos Deputados. Pequenas alterações que colocaram o presidente da Câmara em posição-chave para gerir a coalizão que sustenta o Executivo. O Brasil saiu do presidencialismo de coalizão para uma espécie de semipresidencialismo de facto – um regime cuja marca principal é a preponderância do Legislativo sobre o Executivo para a resolução de crises e que tem o presidente da Câmara como artífice da governabilidade.
Em qualquer democracia do mundo, chefes do Executivo têm na nomeação de seu gabinete ministerial uma importante ferramenta para angariar apoio no Legislativo. Afinal, não há modo mais direto de conseguir o apoio de um partido do que torná-lo parceiro de governo. Ironicamente, o modo mais tradicional (e legítimo) de formação de uma base legislativa –a distribuição de cargos ministeriais – é também a mais malvista pelos brasileiros. Não à toa, sendo fiel a seu estilo de governo, Bolsonaro pouco utilizou esse recurso. Sem, é claro, que isso tenha resultado em um time ministerial de alta qualidade e competência.
O texto original da Constituição de 1988 garantia outros importantes instrumentos para viabilizar a implementação da agenda legislativa presidencial. Entre eles, a conhecida medida provisória. Ao permitir a edição de medidas provisórias com força de lei sem necessidade de aprovação prévia do congresso, a Constituição dava enorme autonomia para os presidentes implementarem sua agenda legislativa. O Plano Real, por exemplo, que reformulou completamente o sistema monetário brasileiro, iniciou-se via medida provisória em março de 1994 e só foi convertido em lei mais de um ano após sua edição original. Nas regras de hoje, isso não seria mais possível. Após vários embates entre Executivo e Legislativo, o Congresso aprovou mudanças constitucionais que regularam a edição (e reedição) de medidas provisórias, além de impor prazos claros para sua votação, restringindo a liberalidade do Executivo no seu uso.
Outro instrumento importante para ajudar no controle da base era o caráter autorizativo do orçamento federal. No Brasil, o orçamento tradicionalmente autoriza gastos a serem feitos pelo governo federal, mas não o obriga a executá-los. Isso permite ao governo fazer os conhecidos contingenciamentos quando precisa conter gastos. Essa autonomia na decisão de se e quando executar o orçamento permitia ao governo federal controlar a execução de emendas orçamentárias feitas pelo Congresso. Apesar de o presidente ter a prerrogativa de enviar a proposta orçamentária para o Congresso, parlamentares, bancadas e líderes têm o direito de apresentar emendas para direcionar uma parte do orçamento a ações que considerem prioritárias. Normalmente são ações que beneficiam seus redutos eleitorais ou grupos de apoio, e que dão visibilidade ao parlamentar. A possibilidade de controlar o desembolso dessas emendas foi algo estrategicamente utilizado por presidentes, principalmente em momentos de votações importantes.
Obviamente, parlamentares nunca se sentiram confortáveis com esse controle do Executivo sobre suas alocações de recursos orçamentários. Como ocorreu com as medidas provisórias, o Congresso atuou incessantemente para enfraquecer essa prerrogativa presidencial. Não coincidentemente, a transformação de emendas orçamentárias de autorizativas para impositivas começou a tomar forma em 2015. Em meio à crise política do governo Dilma que culminou com seu impeachment, foi constitucionalizada a obrigação do governo executar todas as emendas individuais de parlamentares até o valor máximo de 1,2% da receita líquida. Em 2019, durante um tour de force entre o presidente Bolsonaro e o Congresso, parlamentares constitucionalizaram a execução de emendas feitas por bancadas estaduais em um valor máximo de até 0,8% das receitas. Em valores monetários, essas duas categorias de emendas totalizaram cerca de 18 bilhões de reais em 2020. Em termos práticos, o Executivo via enfraquecido um instrumento, a despeito de questionável, importante para controlar sua base legislativa.
Essa mudança claramente favorece o Congresso, mas não necessariamente o presidente da Câmara. Afinal, parlamentares e bancadas têm autonomia para decidir o destino de suas emendas. A consolidação da liderança da Casa como artífice da base governista tornou-se clara após a revelação feita em maio desse ano pelo jornal Estadão do “orçamento secreto” engendrado por Arthur Lira com anuência do governo. Por meio de artimanhas procedimentais, o orçamento do ano passado teve uma inflação das chamadas emendas do relator no orçamento de 2020, executando 18 bilhões de reais – o mesmo valor das emendas individuais e estaduais combinadas. Antes restrito a emendas marginais, o relator do orçamento passou a ter surpreendentes poderes alocativos. Emendas essas que, apesar de não serem formalmente impositivas, têm prioridade na execução orçamentária.
O que se consolida é um sistema no qual o presidente da Câmara, via relator, passa a controlar o acesso de parlamentares a vultosos recursos orçamentários para alocarem segundo seus interesses particulares. Em contrapartida, espera-se dos parlamentares beneficiados lealdade nas votações. O que vemos, portanto, não é somente uma redução das prerrogativas presidenciais para a formação de uma base legislativa, mas o fortalecimento do presidente da Câmara como formador e gerenciador de uma coalizão parlamentar. A capacidade de pautar a agenda de votações e questionáveis recursos orçamentários discricionários somados à capacidade de iniciar processos de impeachment presidenciais dão novos contornos à figura do presidente da Câmara em nosso sistema político.
No modelo atual, “demitir” Lira de sua função de primeiro-ministro informal não o retiraria de seu cargo de presidente da Câmara. Lira continuaria com seu orçamento secreto. Qualquer iniciativa legislativa de Bolsonaro necessitaria do seu crivo. E, não menos importante, Lira continuaria com a prerrogativa de abrir um processo de impeachment. No presidencialismo de coalizão brasileiro atual, um chefe do Executivo fraco e sem rumo pouco tem a fazer contra o presidente da Câmara. Caso o semipresidencialismo em discussão seja aprovado, porém, o presidente ganharia uma nova e perigosa arma: o poder de dissolver a Câmara. Ou seja, Bolsonaro poderia de fato “demitir” Lira. No fim, talvez a arrumação entre os poderes feita nas idas e vindas de nossa democracia seja melhor do que a adoção de radicais mudanças institucionais.