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    As investigações trazem mensagens de assessores diretos de Jair Bolsonaro revelando que ele discutiu a redação da tentativa de golpe: “enxugou o decreto” (Joe Raedle/Getty Images)

questões republicanas

Bolsonaro nas entranhas do golpe

Nem mesmo algum apoio popular parece ser suficiente para salvar a pele do ex-presidente 

Rafael Mafei | 09 fev 2024_09h29
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Na abertura do ano judiciário, na semana passada, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, comemorou que a Justiça voltava das férias em meio a um aprazível clima de paz institucional. Só quem tomou sua fala de um jeito errado surpreendeu-se com o dia de ontem. A chegada da Justiça à pessoa de Jair Bolsonaro, aos seus familiares e ao seu círculo político e militar mais próximo vinha sendo escrita nas estrelas com letras garrafais. A colaboração premiada de Mauro Cid; as medidas duras tomadas contra Anderson Torres, seu ex-ministro da Justiça, e Alexandre Ramagem, ex-chefe da Abin durante seu governo; e a chegada da polícia aos endereços de seu filho Carlos, entre outros tantos alertas, eram sinais recentes mais do que óbvios. A operação policial batizada com pompa bíblica, Tempus Veritatis, mostrou que a normalidade que Barroso celebra não será construída com leniência nas apurações criminais que podem atingir o ex-presidente.

Bolsonaro, certamente, não foi pego de surpresa. Tinha discurso pronto, o único que lhe sobrou, e acusou o tribunal de “perseguição implacável”. Pediu: “Me esqueçam.” A súplica é impossível de ser atendida, pois a Justiça criminal só esquece quando há prescrição ou inoperância, e nenhuma das duas coisas está no horizonte quando se trata do planejamento e da tentativa do golpe de Estado de 8 janeiro de 2023. Bem ao contrário, especialmente após a troca de Augusto Aras por Paulo Gonet Branco no comando da Procuradoria-Geral da República. A PGR manifestou-se pela prisão dos quatro detidos na Tempus Veritatis, sendo um deles Filipe Martins, ex-assessor especial da Presidência da República, e os outros três, militares. Há poucos dias, o órgão havia se manifestado também favoravelmente à investida da Polícia Federal sobre Carlos Bolsonaro, nas apurações sobre a chamada Abin paralela. 

Com a Procuradoria-Geral da República novamente desperta e operante, muitas das discussões que havia sobre dribles à cúpula do Ministério Público devem ficar para o passado, ou guardadas ao capítulo das discussões sobre um novo desenho institucional para o órgão. O discurso jurídico de Bolsonaro, que insistia em apontar violação ao devido processo legal sempre que Aras era escanteado, perderá um dos argumentos razoáveis que ainda estavam a seu alcance.

A mais importante revelação da operação deflagrada ontem foi mostrar que o planejamento e a execução da intentona frustrada não foram coisa de um punhado de apoiadores delirantes, sem participação do governo, que teria morrido na lata do lixo de Anderson Torres não fosse a operação anterior da PF tê-la encontrado em sua casa. Ao contrário, a investigação policial mostrou não apenas que pessoas próximas a Jair, algumas com cargos elevados no governo, envolveram-se direta e pessoalmente tanto no detalhamento do plano, quanto em seus aspectos jurídicos. Envolveram-se também na campanha de relações públicas do golpe, buscando angariar apoios importantes, no governo e na cúpula militar, à empreitada golpista. 

Inclusive Jair Bolsonaro. Segundo revelam as investigações, há mensagens de assessores diretos seus revelando que ele discutiu a redação do decreto: “enxugou o decreto”, eliminou suas longas justificativas (os “considerandos”) e tornou-o mais “direto, objetivo e curto”, segundo Mauro Cid. Mensagens de assessores também dão conta de que Bolsonaro envolveu-se diretamente na busca de militares graúdos para executar as medidas golpistas. Indicam que conseguiu ao menos o apoio do General Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, com a promessa de comandar tropas para o golpe se Jair de fato assinasse o decreto. 

As investigações mostram também que Bolsonaro estava ciente de que havia uma janela de tempo ótima para executar seu plano, e agiu direta e pessoalmente para viabilizá-la. Em uma reunião em 5 de julho de 2022, portanto logo antes do início do período eleitoral, Bolsonaro afinou com seus principais ministros o discurso de fraude às eleições e favorecimento de Lula pelo TSE: “os cara tão preparando tudo, pô! Pro Lula ganhar no primeiro turno, na fraude.” Na mesma ocasião, alertou os presentes – gente do calibre de Anderson Torres, então ministro da Justiça; Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, então ministro da Defesa; Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e candidato à vice-Presidência na chapa de Bolsonaro; e Mário Fernandes, general chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência – que era preciso agir imediatamente, e não depois. “Nós vamos esperar chegar 23, 24, pra se foder? Depois perguntar: por que que não tomei providência lá trás (sic)?” Todos os presentes entenderam o recado: General Heleno fez coro a Bolsonaro, dizendo que “o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições”; e o General Mário Fernandes concordou que um confronto executivo-militar com o TSE, se necessário “te[ria] que acontecer antes” das eleições, mesmo que isso implicasse “um pequeno risco de conturbar o país”. Braga Netto assinou embaixo, chamando atenção para o fato de que o ministro Fachin, então presidente do TSE, já alertara que auditoria não muda resultado de eleições, o que exigia ação antecipada.

As investigações mostraram, ainda, que o plano teve grandes dificuldades para ir adiante porque a maior parte do alto comando do Exército, talvez já trabalhando com a perspectiva de um Lula vitorioso, não aderiu ao tempo que Bolsonaro desejava. Nessa linha, a decisão de Alexandre de Moraes fez clara divisão entre militares que agiram “defendendo a Constituição e a legalidade”, de um lado, e militares golpistas que se bandearam para os lados de Jair, do outro. Já em dezembro de 2022, poucos dias após ter pedido aos manifestantes de porta de quartel que “não perdessem a fé”, Braga Netto lamentava, em troca de mensagens com Mauro Cid, a dificuldade para cooptar o então comandante do Exército, o General Freire Gomes, para a barca golpista: “omissão e indecisão não cabem a um combatente.” […] “Cagão.” O Exército ainda sofrerá duros cortes na carne pelo envolvimento de seus membros no golpismo bolsonarista, e Moraes teve o cuidado de mostrar que sabe separar boas e más maçãs, em um provável gesto para minimizar o desgaste da instituição.

Para quem tem fetiche por prisão de bolsonaristas, a decisão entregou quatro aperitivos, entre eles o badalado Filipe Martins. Para os demais, limitou-se a apreender passaportes e proibir contatos com outros investigados. As ordens de prisão são os pontos mais críticos da decisão de Moraes, pois prisões cautelares justificam-se apenas quando há contemporaneidade com os motivos que a fundamentam. A decisão teria que demonstrar por que razão as prisões, ontem, tanto tempo após os fatos, são necessárias e proporcionais para, por exemplo, assegurar os resultados da investigação, ou proteger testemunhas de ameaças, ou impedir a destruição de provas pelos detidos. Mas os fundamentos de Moraes fazem meras conjecturas sobre essas possibilidades. Dito isso, temos Alexandre de Moraes sendo duro como sempre foi. Se este ponto da decisão gera discórdia, certamente não gerará surpresa.

No caso de Bolsonaro, e a julgar por outros entendimentos já demonstrados anteriormente por Moraes, uma prisão processual não seria surpreendente. Silvinei Vasques foi preso porque, mesmo após deixar o comando da PRF, era visto como alguém com prestígio e influência suficiente para interferir sobre testemunhos de seus antigos subordinados. Ora, se isso é verdade para Silvinei, que dirá para Bolsonaro, cuja liderança é incomparavelmente maior. A opção por medida menos gravosa contra ele (apreensão de passaporte e proibição de contatar outros investigados), além de mais correta à luz da lei, mostra acertada prudência do Supremo. O único discurso que sobrou para Jair, o da perseguição, seria reforçado por uma ordem de prisão questionável. E o próprio ato de prendê-lo traria risco a terceiros, mormente se a polícia tivesse de ir buscá-lo à força, digamos, em sua casa em Angra dos Reis cercada por apoiadores. Não haveria bom desfecho possível para tal situação.

Quais caminhos há para Bolsonaro, agora que as investigações começam a trazer elementos que o colocam no centro da ciranda golpista da reta final de seu governo? O caminho da defesa técnico-jurídica parece pouquíssimo promissor, e só mudará se for para pior. Com Augusto Heleno e Braga Netto colocados sob holofotes das investigações, é de se esperar que surjam ainda mais elementos que mostrem o direto envolvimento de Jair em uns tantos crimes investigados pelo Supremo. A investigação revelada ontem, cheia de conversas que provavelmente foram entregues à Polícia Federal pelo colaborador Mauro Cid, só deve aumentar a paúra de Bolsonaro quanto a seu futuro perante a Justiça. Mas talvez isso nem seja necessário, a depender do que revelem os celulares, computadores e documentos apreendidos nas residências de Heleno e Braga Netto.

Sobraria a Jair apenas a saída política: tentar fazer surgir, ou ser beneficiário de, um grande movimento de massas que denuncie a injustiça que está sofrendo, e que gere, ao final, efeitos jurídicos que salvem a sua pele. Ironicamente, o maior exemplo dessa estratégia é seu maior adversário: Lula. O atual presidente estava nas cordas, cambaleante e surrado pela Lava Jato, mas conseguiu mudar um combate que parecia perdido porque, entre outras coisas, um movimento de convencimento jurídico da opinião pública, com inestimável apoio da Vaza Jato, foi bem sucedido em devolver plausibilidade a teses jurídicas que poderiam beneficiá-lo: argumentos sobre a parcialidade de Sérgio Moro, a conduta imprópria de Deltan Dallagnol e sua trupe e a incompetência da vara de Curitiba para tantos dos casos que julgou.

Mas as semelhanças param por aí.

Lula tinha um apoio político e jurídico melhor, mais profissional e mais leal do que o de Bolsonaro. Além de uma base social fiel, que Bolsonaro também tem, ele tinha um partido grande, nacionalmente capilarizado, incondicionalmente devotado e trabalhando por ele a todo momento. Valdemar Costa Neto, ainda mais depois de ser preso ontem com armas e pepitas de ouro, não está para Bolsonaro como Gleisi Hoffmann está para Lula. Com isso, é mais difícil que Bolsonaro consiga converter seu apoio social difuso em ação estratégica juridicamente exitosa. 

Tampouco há algo minimamente parecido com uma intelligentsia jurídica a serviço de Bolsonaro. Lula contou com um grupo estrelado de juristas, advogadas e advogados que foram muito bem-sucedidos em disputar a opinião pública a seu favor. E os juristas de Bolsonaro, quem são? Basta dizer que o chamado “Núcleo Jurídico” do golpe identificado pela Polícia Federal continha um militar (Mauro Cid), um bacharel em Relações Internacionais (Filipe Martins) e um padre, que nem era o padre Kelmon. Gente assim não vai virar o jogo nem no debate público nem nos tribunais. 

Se as eleições municipais de 2024 não mostrarem uma imensa onda bolsonarista país afora; se mostrarem que hoje Jair não apenas está juridicamente vulnerável, como também politicamente decadente, o custo para impor a ele reveses jurídicos muito grandes ficará cada vez menor. Mostrar enorme força pessoal nas urnas este ano pode ser a sua única chance de reação. O futuro não lhe parece promissor.

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