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atlas do bolsonarismo

Bolsonaro seduz policiais militares com promessas, cargos e poder

Entre o capitão e os governadores, é preciso saber para onde irá a Polícia Militar

Renato Sérgio de Lima e Glauco Carvalho | 29 maio 2020_17h06
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O país atravessa séria crise. Aliás, crise não, crises! Crise política, decorrente da incapacidade autoritária do presidente da República em conviver com o contraditório e de assumir responsabilidades; crise econômico-fiscal, decorrente da longa paralisação das atividades produtivas e financeiras do Brasil; e crise de saúde pública, decorrente da disseminação da Covid-19. Difícil mensurar qual é a crise originária das demais; é certo, no entanto, que a debacle política tem lançado chamas tanto sobre as questões econômicas quanto no encaminhamento da superação da pandemia.

O presidente, em sua estratégia de manter seus apoiadores em permanente mobilização, conseguiu galvanizar em torno de si uma insana aura de “salvador da pátria”, retroalimentada pelo sentimento de ódio e ressentimento de parcelas significativas da população contra a política; contra o Legislativo, o Judiciário, os partidos políticos, a imprensa, entre outros atores e instituições democráticas.

Nesse contexto, há aqueles que a ele se aliam incondicionalmente; há aqueles que a ele se antagonizam indistintamente; e há os que, de certa forma, permanecem extasiados e desconexos com tudo que está ocorrendo. O Brasil se dividiu politicamente mas segue unido na banalização do medo e da violência como forças motrizes da nossa história; na não construção de uma ética pública fundada na cidadania e no respeito às diferenças.

E, ao optarmos por esse caminho, o debate político desconsidera que são as Polícias Militares e não as Forças Armadas que exercem o papel real de fiadoras da ordem pública no cotidiano da população. O que, em outras palavras, nos faz questionar qual posicionamento tomariam as Polícias Militares e/ou os seus integrantes diante de uma tentativa de ruptura do ordenamento institucional e/ou, mais imediatamente, da decretação de um lockdown por governadores para o combate da Covid-19.

Em termos formais, um elemento pouco lembrado na atual crise é que as Polícias Militares são constitucionalmente consideradas “forças auxiliares e reserva do Exército”. Ou seja, em caso de grave comoção intestina, guerra externa ou quebra intensa da ordem pública ou política, elas passam automaticamente à disposição e ao comando do Exército brasileiro. Para aqueles que ainda acham que as instituições estão funcionando bem no país, esse remédio constitucional poderia ser lido, por um lado, como fator de unidade de comando e fortalecimento da posição do Exército Brasileiro.

Porém, por outro lado, dado o ambiente interno quase hegemônico de politização e adesão ideológica dos policiais militares às bandeiras defendidas por Jair Bolsonaro e, ainda, o alto nível de autonomia institucional e de profissionalismo das PMs, construídos nas últimas décadas, existe a possibilidade real de que elas venham a conduzir os próximos passos da crise política. Se isso ocorrer, é provável que mesmo o EB possa ter dificuldade em controlá-las e/ou liderá-las.

É certo que múltiplas hipóteses poderiam ser levantadas quanto à eventual quebra da ordem democrática e sobre o papel das Polícias Militares. Em um cenário mais imediato, caso isso de fato aconteça, é provável que vejamos uma tentativa de autogolpe pelo presidente, com a condescendência de segmentos expressivos das Forças Armadas e de policiais militares, que optariam por não reestabelecer a ordem constitucional e/ou não reprimir atos de grupos “paramilitares” (a exemplo do grupo 300 do Brasil, de Sara Winter, que treina táticas de guerrilha nos arredores de Brasília sem maiores constrangimentos das autoridades policiais).

Mas, no curtíssimo prazo, fica a dúvida sobre o comportamento das Polícias Militares na aplicação de um eventual lockdown pelos governadores para combater a pandemia do novo coronavírus, que teve início na China. O Brasil já alcançou o segundo lugar em número de contaminados no mundo, só perdendo para os Estados Unidos.

Diante do negacionismo do governo federal em relação à doença, tomemos como hipótese que o estado de São Paulo seja obrigado a adotar lockdown. Por uma questão meramente política, Bolsonaro, a fim de enfraquecer o governador João Doria (PSDB), um de seus maiores desafetos, passa a confrontá-lo para criar antagonismo e delimitar o debate ideológico. O presidente assume, então, uma postura radicalmente contrária à medida e torna seu posicionamento não apenas explícito, mas orienta a população a não cumprir a diretriz.

Nessas circunstâncias, não esquecendo que amplo espectro dos integrantes da PM paulista adota Bolsonaro como “ídolo”, “mártir”, um “modelo” a ser seguido (cegamente), que veio para resgatar a moral e os bons valores da sociedade, bem como restabelecer a ordem e a imposição da lei a todo o povo, é possível supor dificuldades consideráveis de enforcement para a aplicação do lockdown, mas é pouco provável que isso ocorra de forma coordenada, assumida e de afronta às autoridades legais.

Isso porque, ao longo dos anos, a instituição Polícia Militar em São Paulo investiu pesado na “institucionalização das normas” e em sua estrutura organizacional. O fato de haver regras, normas e leis muito claras, alto controle, liderança qualificada, atuação rígida da Justiça Militar em nome da hierarquia, faz-nos crer que, apesar das posturas individuais amplamente antagônicas ao governo estadual e simpáticas ao federal, a decisão oficial não faria pressupor uma insurreição, greve ou insubordinação.

Dito de outra forma, a hegemonia do bolsonarismo no campo policial-militar é de ordem individual, dos seus integrantes, e não das corporações Polícias Militares em si. E, se olharmos nos detalhes, ao se agregar os dois grandes segmentos das instituições militares (oficiais e praças), algumas diferenças se impõem.

O segmento dos oficiais (tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis), de forma sutil e não acentuada, se desconectou de Bolsonaro em função de duas decisões do presidente. Ainda há adesão, mas a demissão do ministro Moro impingiu forte ruptura em seus laços com esse agrupamento. A segunda decisão de Bolsonaro, e que lhe trouxe grande desgaste, foi exatamente o início do loteamento de cargos junto ao chamado Centrão. Visto por esses oficiais como um conjunto de deputados fisiológicos e por vezes corrupto, a entrega de posições públicas a tais deputados ou a pessoas por eles indicadas foi tida como uma traição. Não se pode, entretanto, desconsiderar que ainda há uma parcela de oficiais, tanto da ativa quanto da reserva, que permanece fiel aos postulados do bolsonarismo.

O outro agrupamento, o dos praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes), permanece quase que monoliticamente atado ao bolsonarismo. Nenhum desses “deslizes” é visto como capaz de ferir a imagem do presidente. Boa parcela entende que são medidas necessárias para que ele alcance suas metas e seu desiderato de impor a ordem, afastar os corruptos e exterminar os “comunistas” que “reinaram no Brasil desde o governo Sarney”.

Com um discurso que aparenta apoio às causas dos policiais militares, o governo Bolsonaro instrumentaliza anos de descaso com as estruturas policiais, que até hoje carecem de modernização e regulamentação do seu arcabouço constitucional. Ao mesmo tempo, aos mais fiéis, como o major da PM do Distrito Federal Jorge Oliveira –  agora ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência – e o coronel da PM de Minas Gerais Giovanne Gomes da Silva – até poucos dias comandante geral da PM mineira e agora nomeado presidente da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) –, entre outros, são oferecidos cargos e posições na administração federal. 

Jair Bolsonaro emula a esperança dos policiais por novas condições de vida e trabalho, por valores de ordem e patriotismo e amplia a participação dos mesmos no governo. Isso permite que ele seduza parcela majoritária dos policiais militares para o seu projeto de poder, muitas vezes com ofertas de apoio político e de  espaços e cargos na administração federal.

O presidente, no entanto, não é diferente de outros gestores anteriores; na prática, em 17 meses no governo, pouco fez para efetivamente valorizar a categoria. Seu discurso soa como o canto da sereia que hipnotiza e leva para o desastre todos que lhe dão ouvidos. O drama é que tal desastre pode fazer com que o país naufrague em desordem e violência.

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