Em meio à pandemia de coronavírus, as manifestações deste domingo tiveram um duplo efeito: fizeram o presidente Jair Bolsonaro deixar o isolamento de sete dias adotado como forma de prevenção contra a doença, ignorando recomendações sanitárias, e agravaram seu isolamento político. Os atos aconteceram em ao menos treze capitais do país desde o início da manhã. O temor de contaminação reduziu o público em comparação com manifestações anteriores, e o barulho dos bolsonaristas foi maior nas redes sociais do que nas ruas. Por volta de meio-dia, Bolsonaro – contrariando a recomendação que ele mesmo fizera em rede nacional, na última quinta-feira (12), e as orientações do Ministério da Saúde – saiu do isolamento para se juntar a seus apoiadores. Primeiro, passeou de carro em um comboio por Brasília. Depois, desceu a rampa do Palácio do Planalto para ter contato direto com os manifestantes. Colado na grade de contenção, cumprimentou dezenas de pessoas com apertos de mão e manuseou celulares alheios para tirar selfies. Tudo a uma distância de centímetros do aglomerado de bolsonaristas gritando palavras de ordem.
À semelhança de Bolsonaro, as manifestações desprezaram as principais orientações para o controle do vírus – reduzir aglomerações e evitar contato físico com outras pessoas. Levaram para a rua bolsonaristas de idade avançada, grupo mais frágil diante da Covid-19, doença causada pelo coronavírus. Entre as camisetas amarelas, proliferavam cabeças brancas. Ao deixar o isolamento recomendado por médicos, Bolsonaro pode ter posto em risco quem teve contato com ele. O presidente, que na sexta-feira (13) comemorou o resultado negativo de um teste de coronavírus, ainda fará novo exame para confirmar o resultado. Ele voltou há poucos dias de uma viagem oficial aos Estados Unidos, e da comitiva tomaram parte auxiliares agora diagnosticados com o vírus – entre elas, a sua advogada, Karina Kufa, e o secretário especial de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten. O Código Penal brasileiro, no artigo 268, caracteriza como infração de medida sanitária preventiva “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. A pena prevista é de detenção de um mês a um ano, além de multa.
O ato de hoje agregou núcleos mais radicais e engajados do bolsonarismo – sintoma do isolamento político do presidente. Os alvos do “protesto a favor” do governo, como de praxe, foram Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF). Não faltaram as faixas em defesa da ditadura, da intervenção militar e contra as instituições democráticas. Entre os criticados, a novidade era Regina Duarte, que mal foi nomeada para a Secretaria de Cultura e já vem sendo acusada por apoiadores de Olavo de Carvalho de nomear esquerdistas para funções na pasta.
Em Curitiba, muitos manifestantes usavam máscaras de proteção – embora não hesitassem em minimizar os riscos do novo coronavírus. “Não vejo problema em participar. É um ato de civismo. A corrupção é mais grave do que o coronavírus”, afirmou a aposentada Rosemary Vaz, de 67 anos, que foi de ônibus até o ato. O cartaz que ela carregava seguia a mesma linha de raciocínio: “Câmara, Senado, STF, OAB, PT… Corona é o de menos perigo!”. A manifestação ocupou dois quarteirões da Boca Maldita, tradicional ponto de manifestações no centro da capital paranaense. Perto dela, o servidor público Gustavo Fernandes, de 45 anos, a mulher e duas filhas também usavam máscaras com os dizeres “A corrupção mata mais”.
Enquanto as manifestações transcorriam, as notícias da pandemia não foram mais amenas do que têm sido nos últimos dias. Na Itália, só nas últimas 24 horas, 368 pessoas morreram vítimas da Covid-19. O Brasil tem pelo menos 176 casos confirmados, segundo o Ministério da Saúde, sendo cinco em Curitiba, onde os manifestantes se aglomeravam na tarde deste domingo. Aos poucos e num ritmo ainda desigual, medidas de contenção vão se espalhando pelas cidades brasileiras. Universidades e escolas públicas e privadas anunciaram a suspensão das aulas. Empresas recomendam trabalho em home office. A Confederação Brasileira de Futebol anunciou neste domingo que interromperá todas as competições no país.
Nas redes sociais, a manifestação ganhou muito mais corpo do que teve nas ruas. Até as quatro da tarde, a hashtag #BolsonaroDay já tinha sido usada em mais de 800 mil tuítes e ficou mais de 18 horas dentre os trending topics do Twitter, mostrou o monitoramento realizado pela consultoria Arquimedes a pedido da piauí. A repercussão estava morna até o começo da tarde, quando o presidente apareceu na rampa do Planalto. Seu perfil na rede intensificou a postagem de fotos e vídeos dos atos, o que pareceu servir como senha para que deputados e influenciadores bolsonaristas colocassem lenha na fogueira dos protestos.
Depois de uma manhã silenciosa, parlamentares com grande engajamento nas redes, como Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) – que até então recomendavam que as manifestações fossem repensadas – passaram a postar vídeo atrás de vídeo nos seus perfis. “E não é que o povo foi mesmo?”, escreveu Zambelli, ao retuitar um vídeo que mostrava a aglomeração de bolsonaristas em Belo Horizonte. Outros deputados, como Marco Feliciano (Pode-SP) e Delegado Éder Mauro (PSD-PA), se juntaram à multidão e ganharam milhares de curtidas. Em Niterói, o deputado Carlos Jordy (PSL-RJ) desceu do carro de som para trocar abraços e beijos com apoiadores.
A atuação orquestrada no Twitter reforçou a narrativa, ao menos nas redes, de que o governo tem apoio espontâneo e expressivo da população em sua cruzada contra a “velha política”. É um movimento que está em curso há semanas, em meio à crise do governo com o Congresso. Em fevereiro, os ataques virtuais ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), fizeram com que ele explodisse em menções no Twitter: foi citado 1,5 milhão de vezes, mais do que quase todos os membros do governo.
O debate na internet em torno deste 15 de março foi protagonizado pela direita, por mais que a esquerda tenha alavancado hashtags irônicas como #MarchaPeloCorona e #CoronaFest. Nos grupos bolsonaristas, organizadores confirmavam a realização de atos em 181 cidades, sendo 25 capitais. Na prática, os protestos não agregaram apoiadores ao bolsonarismo; pelo contrário, devem dificultar ainda mais sua relação com o Congresso e a votação das reformas propostas pelo ministro Paulo Guedes.
Apesar do verniz de espontaneidade, os atos deste domingo foram, em grande medida, estimulados pelo próprio Bolsonaro. Até a última semana de de fevereiro, a convocação para a manifestação passava praticamente despercebida nas redes sociais. A situação mudou quando o próprio presidente compartilhou, via WhatsApp, um vídeo chamando as pessoas para o ato. As menções ao 15 de março foram ganhando corpo no Twitter, com predomínio de tuítes favoráveis ao presidente. O monitoramento da Arquimedes mostra que, no dia 3 março, houve 36 mil tuítes relacionados à manifestação, e 75% deles eram positivos para o governo. No dia seguinte, depois que Bolsonaro levou um humorista para depreciar os jornalistas na porta do Palácio do Alvorada, o debate ganhou maior fôlego entre os críticos de Bolsonaro – o youtuber Felipe Neto, em um dia só, ganhou 128 mil curtidas e 15 mil retuítes em postagens críticas a Bolsonaro e aos protestos. No dia 7, Bolsonaro, em viagem oficial aos Estados Unidos, endossou novamente a manifestação. Houve, naquele dia, quase 80 mil tuítes sobre o dia 15 de março, dos quais 65% apoiavam o presidente.
Os dados apontados pelo monitoramento refletem a atmosfera de grupos bolsonaristas do WhatsApp e do Telegram. A piauí acompanhou cinco desses grupos. Na primeira semana de março, se multiplicavam postagens e memes convocando para o ato e, principalmente, atacando o Supremo e o Congresso. Enquanto algumas mensagens faziam alusão à intervenção militar, outras davam indícios de uma articulação para concentrar as manifestações na porta de quartéis das Forças Armadas, nas principais capitais.
Houve um ponto de virada na segunda-feira (9), quando o coronavírus se espalhava pelo mundo e a guerra do petróleo causou pânico e estrago no mercado financeiro. A Bolsa de Valores brasileira acionou o circuit breaker – mecanismo que interrompe as negociações sempre que há queda de 10% no índice Ibovespa – e o dólar bateu na casa dos R$ 4,79. Bolsonaro passou a apanhar nas redes, mesmo quando o tema era a manifestação. Segundo o levantamento da Arquimedes, na crise da Bolsa, 60% dos tuítes sobre o ato de 15 de março eram contrários ao presidente. No dia seguinte, a manifestação atingiu um pico de 109 mil menções no Twitter, das quais 64% criticavam Bolsonaro. A discussão econômica passou ao largo dos grupos bolsonaristas.
Na última quinta-feira (12), quando o presidente fez um pronunciamento em rede nacional dizendo que os movimentos “espontâneos e legítimos” precisavam ser repensados, devido ao risco evidente de proliferação do coronavírus, as menções ao ato explodiram nas redes. Foram 249 mil tuítes, ao todo. O debate se concentrou principalmente na direita, que ficou dividida entre os influenciadores que endossavam o adiamento da manifestação – como a deputada federal Carla Zambelli – e os que “respeitosamente” desobedeciam ao presidente, alavancando hashtags como #DesculpeJairMasEuVou.
No assunto coronavírus, o governo tomou uma lavada nas redes. No dia 13, quando saiu o resultado do teste de Bolsonaro, houve 253 mil menções ao assunto no Twitter. Mais de 80% delas foram negativas para o governo. Enquanto isso, nas correntes de WhatsApp de bolsonaristas, as convocações para o ato deste domingo eram alternadas com informações falsas sobre o vírus. As mensagens eram, no mínimo, criativas: algumas diziam que o vírus teria sido desenvolvido intencionalmente pela China, enquanto outras afirmavam que ele não resistiria aos raios ultravioleta e, portanto, não poderia ser transmitido em ambientes ensolarados. A tese não tem qualquer respaldo científico.