"Apesar da diferença de escala, o microcosmo de Camocim permite observar aspectos do processo político, baseado no clientelismo, esvaziado de conotações ideológicas nítidas, polarizado entre vermelhos e azuis, que persistem na campanha presidencial", escreve o crítico
Camocim – oportuno e interessante, mas pouco satisfatório
Documentário de Quentin Delaroche apresenta de forma pouco precisa como se dá a disputa política em âmbito municipal
Ainda que trate da eleição municipal de 2016 em Camocim de São Félix, pequena cidade do agreste pernambucano, a cerca de 120 quilômetros de Recife, com população estimada em 18 mil e poucas pessoas, o documentário de Quentin Delaroche poderia dar impressão de ter sido lançado em momento oportuno.
Apesar da diferença de escala, o microcosmo de Camocim permite observar aspectos do processo político, baseado no clientelismo, esvaziado de conotações ideológicas nítidas, polarizado entre vermelhos e azuis, que persistem na campanha presidencial. Favorecimentos, negociações para financiar campanhas e a luta pela conquista de votos são vividos tanto na eleição municipal, quanto nas estaduais e nacional, embora com intensidade exponencialmente diversa.
Levando em conta a atualidade do tema, seria razoável esperar que Camocim atraísse número significativo de espectadores. Na sessão em que assisti ao filme na semana passada, porém, havia dois espectadores na sala. Lançado em 13 de setembro, foi visto por 557 espectadores, em 25 cinemas, nos primeiros quatro dias de exibição, segundo dados do portal Filme B. Depois de onze dias em cartaz, após o circuito ter sido reduzido a dezessete cinemas, Camocim tinha alcançado 1 106 espectadores. A baixa média de 22 espectadores por sala, no primeiro fim de semana, e cerca de 32 no segundo, contradiz a expectativa de que o período da campanha favorecesse um lançamento bem-sucedido.
Por mais que o mau resultado comercial possa ser atribuído, ao menos em parte, à saturação provocada pela chamada propaganda eleitoral gratuita, iniciada em 31 de agosto, além da intensa cobertura do jornalismo impresso e televisivo, a retração do público deve resultar mesmo de aspectos insatisfatórios do próprio filme, como tem acontecido com boa parte da produção brasileira recente.
Ao adotar o ponto de vista do observador não participante, próprio do cinema direto ortodoxo, que não admite interação entre quem observa e quem é observado, Delaroche deixa escapar entre os dedos uma personagem com potencial para ser memorável, por cujo carisma e firmeza ele mesmo admite em entrevista ter se apaixonado – Mayara Gomes, cabo eleitoral de 23 anos na época da filmagem (a entrevista completa de Delaroche está disponível aqui).
“O grande risco hoje”, declara o diretor de Camocim na mesma entrevista publicada em outubro de 2017, “é a descrença dos políticos, o nojo da política, o povo tem isso, e isso favorece a extrema direita que tem um discurso de ódio, simplista, e é isso que a gente vai ver em 2018, infelizmente.”
Dito e feito, sendo a lamentar apenas que essa reflexão não seja feita no filme e que depois de estrear no Festival de Brasília, em setembro do ano passado, e ser exibido na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, entre outubro e início de novembro, Camocim não tenha sido lançado e debatido logo em seguida.
Graças à força de sua personalidade, Mayara se sobrepõem ao candidato a vereador por cuja eleição trabalha e ele acaba, em Camocim, reduzido à condição de figurante em quem ela chega a passar um sermão e a dizer que “não é ninguém sem a gente”, entendendo-se esse “a gente” como referência a si mesma.
Mantendo-se a meia distância e demorando a se concentrar em quem se impõem como protagonista, Delaroche não consegue traçar um retrato preciso e à altura da idealista e empenhada Mayara.
Faz falta também a Camocim informar a dimensão do fracasso de Cesar Lucena 15 123, do PMDB, o candidato de Mayara. Ele não foi eleito vereador, enquanto o menos votado dos onze que se elegeram obteve 359 votos, 2,96% do total. Lucena ficou em 21º lugar, tendo recebido 194 votos, 1,60% do total (clique aqui para acessar os dados), “sem comprá-los”, segundo Delaroche declarou.
Para o diretor de Camocim, “o sistema é muito perverso, porque os eleitores ficam muito dependentes dos políticos, com uma relação muito forte de clientelismo, o que leva eles a se venderem para conseguir um emprego na prefeitura ou aceitando qualquer coisa”. No caso do município de Camocim, 45% da população “vive de contrato”.
Ao menos para Delaroche, a gravação da campanha permitiu adquirir compreensão precisa de como se dá a disputa política em âmbito municipal. É pena que não tenha integrado seu entendimento ao filme.
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