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    Ilustração: Carvall

questões literárias

Cartas ao Brasil

Correspondência entre escritores radicados na Europa aborda temas como democracia, morte, sonhos e liberdade

Juliana Monteiro e Jamil Chade | 06 set 2022_15h36
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Em dez meses de correspondência, a escritora Juliana Monteiro e o colunista Jamil Chade trocaram impressões, angústias e sonhos sobre a liberdade, o destino do Brasil, a desigualdade, a morte e a utopia da vida. Monteiro vive em Roma, e Chade é radicado em Genebra. As cartas, integrantes de um projeto na revista literária Pessoa, em Portugal, agora se transformaram no livro Ao Brasil, com amor, que será lançado no dia 12 de setembro, em São Paulo, pela editora Autêntica. A piauí publica a seguir duas dessas cartas, nas quais os autores mergulham no debate sobre a democracia e suas promessas.

 

A democracia é uma promessa

Roma, 24 de maio de 2022

 

Querido Jamil,

A ajuda que te peço hoje tem demanda de urgência. No próximo mês, vou com minha família ao Brasil e temo que a alegria dos encontros e o calor da nossa terra já não possam disfarçar o rancor que nos divide. Não sei como explicar para meus filhos que algumas das pessoas que eles mais amam e admiram – seus avós, tios, primos, assim como tantos amigos – são partidários do que mais nos revolta, ameaça e deprime. Como justificar que gente boa apoie um homem mau? O que falta entender para que eu possa explicar?

Uma vez escutei Saramago contar que estava sozinho em um restaurante de Lisboa quando pensou: “E se nós fôssemos todos cegos?” No minuto seguinte, ele mesmo respondeu: “Mas nós estamos todos cegos.” Sabemos o que o mestre fez com a tese, e hoje me encontro diante da mesma elucubração.

Por isso, com a confiança que tenho em tuas lentes, escrevo para pedir: me ajuda a olhar? É verdade que a história não nos autoriza o otimismo da inteligência, mas a realidade brasileira tem se mostrado tão desalentada que compromete também o otimismo da vontade. Não faz tanto tempo, acreditei que os princípios humanistas fossem irresistíveis por serem agradáveis à razão.

Que o respeito à alteridade fosse a mais sedutora, por democrática, das utopias. Que as violências, as barbaridades e os preconceitos não resistiriam à sofisticação da nossa inteligência. Mas parece que não. Penso em Hannah Arendt, que, depois de cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, provocou controvérsia ao considerar que o oficial nazista, responsável direto pela deportação e pela morte de centenas de milhares de judeus, não passava de um homem banal, “nem demoníaco nem monstruoso”, um burocrata, nada extraordinário, o tipo que hoje se autointitula “gente de bem”, como tantos que nos assombram no Brasil. Um funcionário que, durante o julgamento, negou qualquer culpa, argumentando que era um mero cumpridor de ordens.

Mas outro personagem da Segunda Guerra Mundial, Oskar Schindler, membro do partido Nazi, funcionário do serviço de informação alemão, também tinha ordens para cumprir. No entanto, desobedeceu e, correndo todos os riscos, salvou da morte 1.200 judeus. O que diferenciava os dois homens? Segundo a filósofa, o que impeliu o primeiro foi a mediocridade do não pensar, e não exatamente o desejo ou a premeditação da maldade.

A banalidade do mal, termo cunhado por ela, apareceria como postura política e histórica, e não ontológica, que se instala por encontrar o espaço institucional criado no vácuo produzido pela ausência do pensamento. Lembro que, por volta dos 15 anos, todo o conhecimento parecia guardado nos volumes da enciclopédia Barsa que meus pais compraram, como investimento, para garantir que não fôssemos ignorantes.

Mas acumular informação ainda não é pensar, os verbetes não davam conta de tudo, e, por isso, eu procurava em uma Brasília pouco mais que interiorana respostas para minhas inquietações. Foi assim que, em um fim de tarde, fui parar no anfiteatro 9 da UnB, debate com Jorge Mautner, Jards Macalé e Cassiano, sala lotada de estudantes, eu sentada no chão.

Nesse dia, escutei um punhado de coisas pela primeira vez, dessas que tomam o corpo pela comichão que só o pensamento, quando vivo, provoca. Não lembro a pergunta do jovem nem de que boca saiu a resposta, mas escutei que “Enquanto o Michael Jackson puder mudar de cor e a Madonna puder performar sexo no palco, a tua liberdade e a minha também estarão garantidas”. Para a garota que eu era, esse pensamento iluminou tudo o que veio depois.

Entendi que liberdade é sempre a liberdade do outro. E o moralismo e certa ideia acabada de ordem, que hoje parecem tão prestigiados, tornaram-se uma bobagem, quando não uma ameaça. “A mente não é um recipiente a ser preenchido, mas uma fogueira a ser acesa”, quem escreveu isso foi Plutarco, há 2 mil anos. Pensar não é apenas um imperativo humanista, mas também uma tarefa política.

Arendt questionou: “Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não exercício do pensar?” O que você acha, Jamil?

Essas perguntas parecem boas, mas serão suficientes para explicar a adesão de tanta gente ao bolsonarismo? Poderíamos adicionar a perversidade das redes e dos seus algoritmos, que, se não impedem, têm o poder de nos dirigir o pensamento. Mas, antes delas, muita gente que se pretendia boa tomou o partido do mal. A propaganda de Hitler não passou pelo WhatsApp. Mussolini não fez campanha pelo Twitter. Peço tua ajuda porque algo me escapa, não termino de entender. Todas as teorias e análises produzidas não são capazes de nos orientar para uma prática que sirva de vacina contra o mal.

Quando se esgotam os verbetes, recorro à arte. Volto a Saramago e à epidemia de cegueira que ele narrou em seu romance fabuloso. Uma cegueira particular, porque branca. Contagiosa, como a Covid. Passada de uma pessoa a outra, como as mensagens do WhatsApp. Gradativamente, os membros daquela comunidade param de enxergar, não como uma luz que se apaga, mas como uma luz que se acende, conforme explicou o primeiro cego ao médico. São assim os cooptados pelos fanatismos. Acreditam-se detentores da verdade e, em nome dela, são capazes de monstruosidades que os horrorizariam se pudessem enxergar.

No caso do bolsonarismo, a visão é eclipsada pelo que chamam, sem nenhum rigor, de comunismo, transmutado em ameaça às suas famílias e valores, depositário de suas frustrações e ressentimentos, perdoador de seus preconceitos e ódios. E seu líder e redentor seria o único capaz de protegê-los. Mesmo que este tenha como inspiração um torturador que levava crianças para assistir ao martírio das próprias mães. Não importa que nunca tenham presenciado orgias nas faculdades onde estudaram. Não importa que jamais tenha sido ensinado nas escolas qualquer conteúdo de incentivo ao sexo e que as denúncias mais comuns desse tipo de aliciamento venham justamente dos maiores moralistas e de tantos religiosos, quando não da própria família. Não importa que o Brasil não tenha tido um só governo socialista.

Não importa que as religiões (ditas) cristãs, em tempo algum, tenham sofrido perseguição no Brasil. Não importa o que denunciam a imprensa, os tribunais, os intelectuais, os artistas, os estudiosos; não importam sequer os fatos, a inflação, o desemprego, os mais de 600 mil mortos pela pandemia, o aparelhamento das instituições, o sucateamento dos serviços públicos e da cultura, a precarização acelerada do trabalho, o perverso aumento do custo de vida, a desvalorização da moeda, o preço impeditivo dos combustíveis, a perda de prestígio internacional, o alinhamento do Brasil com países violadores dos direitos humanos.

Não importam o sigilo imposto pelo governo às informações de interesse público, a ligação com as milícias, os ataques e as ameaças diários a jornalistas e à democracia. Não importam as declarações homofóbicas, eugenistas, misóginas, racistas, autoritárias, violentas. Não importam os slogans flagrantemente anticristãos, os crimes ambientais, o massacre dos povos indígenas. Não importa não sabermos até hoje quem mandou o vizinho do presidente matar Marielle Franco.

Em seu Ensaio sobre a Cegueira, apenas uma mulher não perde a visão. É a única que pode ver o horror de que os outros são capazes. Testemunha assassinatos, estupros, roubos, todo tipo de maldade, vê a imundice e a deterioração em volta, seus semelhantes convertidos em animais egoístas e cruéis. Ao que ela assiste é tão terrível que, durante a leitura difícil, diante da narrativa crua e escatológica do gênio português, desejei que ela também ficasse cega para sofrer menos.

Tantas vezes me sinto como ela, testemunhando o comportamento de pessoas que me são (ou foram) caras, nosso país se arruinando enquanto a propaganda que corre pelas redes sociais serve como tapume inacreditavelmente eficiente para esses escombros.

Mas são desses escombros que o novo deve nascer, e é nessa construção que devemos concentrar nossa energia. Esperançar, em vez de esperar, outubro chegar. No romance, Saramago, que também tinha compromisso com o porvir, nos consola com um desfecho que foge do padrão clássico das distopias. “A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” Tal como veio, o mal branco vai embora. A mulher que testemunha a barbárie é a memória sem a qual nenhuma reconstrução ou aprendizado é possível. E talvez seja essa nossa tentativa com esta correspondência. Em tempos de desespero, é preciso deixar registro, criar memória, convidar ao pensamento, despertar afeto, construir linguagem: é assim que as civilizações se recuperam.

Termino esta carta esperançada por tua resposta, com o pensamento sempre vivo de Galeano: “há um único lugar/onde ontem e hoje/se encontram/e se reconhecem/e se abraçam./Esse lugar é amanhã.”

É lá que nos encontraremos para festar.

Um abraço apertado, 

Juliana

 

Genebra, 25 de maio de 2022

 

Querida Juliana,

Tua convocação ao pensamento reabriu uma velha ferida que levo comigo há anos. Ela vem na forma de uma pergunta que, de maneira teimosa, reaparece em momentos inesperados. Afinal, o amanhã é futuro ou é presente?

No nascimento de meu primeiro filho, esse questionamento me golpeou com força quando, com Pol nos braços, eu entendi com todas as partes do meu corpo que existia naquele momento um risco iminente de que ele jamais abraçaria sua mãe. O destino, um sistema pleno de direitos garantidos a uma minúscula parcela de privilegiados e um helicóptero a salvaram. Nos salvaram. O amanhã era presente.

Uns anos depois, o cenário era completamente diferente. Mas a pergunta uma vez mais me tomou desprevenido. Eu estava numa rua que dava acesso à Praça Tahrir, ainda na parte da cidade que era controlada pela ala que lutava pelo fim do regime de Hosni Mubarak. O Cairo, naqueles dias, tinha se transformado em palco de um confronto sangrento, com homens montados em camelos abrindo a multidão com chicotes nas mãos, caças que sobrevoavam nossas cabeças e o cheiro da morte.

A resistência a um dos governos militares mais poderosos da região e amplamente financiado pelos Estados Unidos não mantinha sequer um arsenal rudimentar. A sociedade egípcia tinha passado décadas sob o rígido controle de um Exército que, de fato, garantia o monopólio do uso e da posse de armas. Mas, num beco, entendi que ali estavam em busca do significado da palavra “amanhã”.

Um grupo de homens e garotos havia construído uma catapulta e, orgulhosamente, a usava para defender aquela nova fronteira entre a liberdade e a ditadura contra tanques blindados e soldados do ditador. Era uma guerra desigual. Um lado pensava que estava no século XXI.

O outro, com armas medievais e delírios de liberdade, lutava para que o século XXI chegasse. Mas, quando minha surpresa diante daquela cena foi substituída pela compreensão, me dei conta de que a arma era feita com um poste de luz que havia sido tombado e uma cesta de frutas de supermercado numa de suas pontas. A engenhoca lançava pedaços de paralelepípedos que tinham sido arrancados das ruas com as unhas daquelas pessoas.

Vitrúvio jamais teria desenhado aquele pedaço de utopia com tanta esperança. Ali, lutavam pela democracia. Naquele beco, o amanhã não era o futuro. Era presente. Eu, certo de que vinha de uma democracia consolidada e de que essa era uma luta de nosso passado, observava e escrevia sobre aqueles atos com uma arrogância indesculpável. Como eu imaginaria que, dez anos depois, estaríamos buscando nossas armas para defender o que pensávamos que estava em nossas certidões de nascimento? Naqueles dias no Cairo, a ideia de que nossa democracia seria colocada em risco poderia parecer tão absurda como a de que um defensor da ditadura militar e de torturadores seria um dia eleito presidente.

Agora, sei que a nossa Praça Tahrir está em cada árvore que tomba em silêncio numa floresta, em cada casal que em silêncio solta a mão na rua para evitar a violência, em cada escritora que em silêncio busca outras palavras menos polêmicas em seu texto para manter a renda de sua família. Juliana, você me escreveu para me repassar uma tarefa das mais urgentes. 

Recebi tua carta dias depois de ser alvo de ameaças de morte por parte justamente daqueles grupos que muitos de nossos parentes que nos amam ajudaram a colocar no poder. Quando eu confrontei alguns deles com essa informação, o que eu fiz foi justamente tentar convidá-los a despertar o afeto, não constrangê-los. Tentei trazer para nossa casa, nossa mesa de jantar, o que significam nossas decisões. Enquanto você começa a colocar suas roupas, presentes, sonhos e medos nas malas de sua família para voltar ao Brasil, eu volto a me fazer a mesma pergunta. O amanhã é futuro ou presente?

Se algo nesses anos ficou claro é que nada é inevitável. Como você disse, princípios humanistas não são irreversíveis. O progresso social está sendo desfeito, e a caminhada democrática, asfixiada num porão escondido em alguma portaria no Diário Oficial. Não sou eu quem diz isso. Um dos principais institutos europeus, o V-Dem, na Suécia, nos conta que, entre 2020 e 2022, regredimos trinta anos no avanço democrático no mundo. Hoje, apenas 13% da população mundial vive o privilégio de se beneficiar de forma integral do sonho da democracia. Uma minoria.

A democracia não é um título que penduramos na parede uma vez conquistada. É uma construção diária e dolorida. Hoje, ela está ameaçada. E, junto com ela, o nosso futuro. No Cairo, aquele sonho também foi sepultado. Sempre me pergunto onde estarão hoje aqueles jovens orgulhosos de sua ousadia. Mas prefiro responder a essa tua carta com um otimismo de quem acredita que incendiar as mentes é um imperativo. Se nada é inevitável, minha conclusão é de que o nosso próximo passo também está por ser definido. E o nosso destino nem sequer foi desenhado no mapa. Temos, portanto, a oportunidade de sermos cartógrafos. Todos os dias.

Essa aventura nos exige a humildade de reconhecer que nossa geração tem o dever moral de reconstruir algo novo. De desmontar o ódio, de se recusar a usar as mesmas táticas. Precisamos construir nossas próprias catapultas. Nossas armas para esperançar, e não esperar, não são as de que dispõem aqueles que precisamos enfrentar. A luta é desigual. E, justamente por isso, devemos ser otimistas. Blindar nossa democracia contra a cegueira exige a expansão de direitos para milhões que, uma vez reconhecidos como cidadãos, lutarão de olhos abertos por ela como se lutassem por seus filhos. Pelo seu futuro.

Como sequer vamos saber quando uma democracia deixa de existir, se milhões de pessoas ainda não sabem o que ela é? Como sabemos se ela ainda sobrevive, se para muitos ela nunca chegou? Recrutar, nesse caso, é dar dignidade. Não anularemos o ódio com mais ódio. No fundo, a democracia é uma promessa. A de que o destino está, em parte, em nossas mãos. Que temos uma voz sobre o nosso futuro.

O amanhã não é futuro se ele não for, antes, um presente fincado em uma base sólida de justiça e respeito.

Bora me ajudar a montar nossa catapulta?

Jamil

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