Nesta quinta-feira, 16 de março, o advogado americano Steven Wise será novamente ouvido por um colegiado da Suprema Corte do Estado de Nova York. É a sétima vez que ele apresenta um pedido de habeas corpus na tentativa de liberar chimpanzés enjaulados – o que ele argumenta ser o equivalente a um cárcere privado, crime que prevê prisão perpétua nos Estados Unidos. Em todas as outras investidas, Wise teve o pedido negado. Dessa vez, seus clientes são Tommy e Kiko, dois chimpanzés residentes no estado de Nova York. Tommy tem cerca de 30 anos, e vive enjaulado nos fundos de um estacionamento de trailers na cidade de Gloversville. Kiko tem a mesma idade, e mora num suposto santuário na cidade de Niagara Falls.
Conheci Steven Wise dois anos atrás, em sua casa localizada em Coral Springs – uma cidadezinha próxima a Miami –, por conta de uma reportagem para a piauí. À época, eu escrevia um livro com perfis de animais – entre eles, o Macaco Tião, que ficara famoso, em 1988, ao ser lançado a prefeito do Rio pelos comediantes que anos mais tarde formariam o grupo Casseta & Planeta. Pesquisando a respeito da espécie, me deparei com o trabalho de Wise à frente da ONG Nonhuman Rights Project. Ele já havia processado pessoas e empresas por maus tratos a cachorros, gatos, golfinhos e outros bichos.
Desde 2012, Wise lutava para que os últimos quatro chimpanzés aprisionados no estado de Nova York tivessem o direito de ser promovidos da categoria jurídica “coisa” – como ainda são vistos – para a de “pessoa legal” – que abarca apenas a espécie humana. Para justificar o upgrade, ele se valia de estudos dos mais importantes primatólogos – como a britânica Jane Goodall –, que mostravam como chimpanzés são dotados de complexidade emocional, cultural e intelectual. Vale lembrar que humanos e chimpanzés dividem 98,7% do código genético.
Quando estive com Wise, ele me disse que não estava interessado em discutir se os chimpanzés encarcerados eram bem ou mal cuidados. “Se você fosse sequestrado e pudesse comparecer a um tribunal para ter seu caso julgado, a sentença não decorreria da maneira como você está sendo tratado. O que estaria em jogo é o fato de você ter sido sequestrado.” Lembrei dessa frase quando vi o prontuário do Macaco Tião no Zoológico do Rio de Janeiro. Sua ficha técnica se assemelhava à de um homem injustamente encarcerado. Nos 34 anos em que viveu no parque, o chimpanzé teve cinco tentativas de fuga registradas.
Voltei a pensar em Steven Wise quando comecei a escrever uma longa reportagem sobre Maia e Guida, duas elefantas asiáticas que estavam prestes a inaugurar um santuário na Chapada dos Guimarães. A história das duas – como a de quase todo elefante de circo ou zoológico – era dramática. Ambas haviam sido retiradas de suas famílias, forçadas a cruzar o Atlântico de navio e obrigadas a aprender truques de circo até terem o direito, 41 anos depois, de escolher para onde, como e quando caminhar. E isso só pode ocorrer em função do esforço hercúleo – e, eu diria, poético – da brasileira Junia Machado e do americano Scott Blais, que estão à frente do santuário.
Tanto o trabalho de Wise quanto o de Blais e Machado são inúteis do ponto de vista conservacionista. Dar condições de dignidade a alguns poucos animais custa muito dinheiro – e não vai mudar em absolutamente nada o risco real e iminente de desaparecimento das diferentes espécies de chimpanzé e elefante. Por isso, nem Steven Wise, Scott Blais, ou Junia Machado costumam ser bem vistos na comunidade científica.
O trabalho dos três ativistas, no entanto, está mais na ordem da filosofia do que da biologia. Na natureza, chimpanzés e elefantes vivem em sociedade de complexas estruturas sociais e familiares (e não há por que desprezar os desejos de um ser vivo com relações sociais pelo simples fato de ele não pertencer à nossa espécie). Não por acaso, o próximo habeas corpus redigido por Steven Wise será em nome de um elefante de circo. Ele deve dar entrada no processo em maio ou junho deste ano, nos Estados Unidos.
Se fosse traçada uma linha evolutiva, Wise, Blais e Machado teriam um ancestral comum no filósofo australiano Peter Singer. Em 1975, Singer publicou o livro Libertação Animal, no qual argumenta que ignorar o sofrimento de um bicho é tão injustificável quanto discriminar uma pessoa por cor ou sexo. Numa escala macroeconômica, o livro teve pouco efeito na indústria da exploração animal, que continuou a crescer, seja para fins de alimentação, diversão ou conhecimento científico. Numa perspectiva menor, no entanto, pavimentou o caminho para o surgimento dos vários movimentos em defesa dos animais. Nos trabalhos de Wise, Blais e Machado, o que parece estar em jogo é “apenas” a qualidade de vida de alguns bichos específicos (o que já seria suficientemente nobre). Mas o que também está em jogo é uma mudança de mentalidade.
A se levar em conta o retrospecto dos julgamentos anteriores de habeas corpus, Steven Wise deve perder uma vez mais. Perguntei-lhe por telefone, esta semana, o que pretende fazer se a apelação for rejeitada. “Não me importa que continuemos a perder”, disse-me. “Toda vez que isso acontece, adequamos o que foi negado e damos entrada num processo novo, como é permitido na justiça de Nova York.” Para se explicar melhor, ele evocou a luta pelo direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo: “O primeiro pedido na Justiça americana foi feito em 1992, e a primeira vitória só ocorreu treze anos depois.” O advogado acredita que as garantias jurídicas dos chimpanzés e elefantes também serão conquistadas a longo prazo: “Antes, os juízes precisam ser educados. E eles serão.”