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Chuva de verão

Na semana passada, as mortes provocadas pelos deslizamentos de terra voltaram a acontecer em Petrópolis. Ao receber pelo telefone, de um repórter da Folha de S.Paulo, a notícia de que Jamil Luminato perdera a filha e dois netos soterrados pela lama, além da tristeza afloraram três sensações – fatalidade, inutilidade e omissão.

| 25 mar 2013_16h59
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Na semana passada, as mortes provocadas pelos deslizamentos de terra voltaram a acontecer em Petrópolis. Ao receber, pelo telefone, de um repórter da Folha de S. Paulo, a notícia de que Jamil Luminato perdera a filha e dois netos soterrados pela lama, além da tristeza, afloraram três sensações – fatalidade, inutilidade e omissão.

Há 31 anos, em depoimento incluído no documentário Primeira página, Jamil declarou que não poderia continuar morando no bairro onde 67 pessoas haviam morrido. Mas do final de 1981 para cá, não teve condições de sair e declarou agora à Folha de S. Paulo: “ […] foi o que conseguimos construir com o nosso dinheiro. Já temos amigos, vínculos ali. Vamos deixar isso tudo para trás?”

Jamil sempre soube que mora em área de risco. Mas nunca teve para onde ir. Virou pedreiro e ajudou a construir casas que vieram abaixo. A consciência do perigo não o livrou da tragédia. Daí a sensação de fatalidade – desvalidos parecem não ter escapatória, estando condenados a sofrerem perdas irreparáveis.

Ao fazer o documentário Primeira página, em 1981, havia evidente intenção de reiterar o que os fatos, e a foto de Carlos Mesquita, publicada na primeira página do Jornal do Brasil, deixavam claro – o chamado milagre brasileiro estava longe de ter implantado o paraíso nestas terras. Típico filme de denúncia, demonstrou sua inutilidade ao cair no vazio. Não contribuiu em nada para alterar a situação dos moradores do bairro Independência, nem do herói do momento, Jamil Luminato, na época com 22 anos.

Crédito: acervo da TV Brasil

A omissão foi não ter sequer mostrado o documentário para Jamil, na época. Ele só pode assistí-lo na semana passada, diante da câmera do Fantástico, numa televisão de tela plana no alto da parede da sua casa, no bairro Independência.

Meios para comprar uma televisão dessas, ele teve, provavelmente em prestações que ainda não acabou de pagar. Mas lhe faltaram condições para garantir a segurança da filha e dos netos. Além da inoperância criminosa do poder municipal e estadual, aí está a expressão concreta da perversidade social que a cada ano faz novas vítimas.

*

A primeira página do Jornal do Brasil, de 4 de dezembro de 1981, mereceria comentário mais detido. Além da foto em si, a diagramação, ocupando a página quase de lado a lado, contribuiu para o impacto da imagem pouco habitual na grande imprensa da época. Mas, além disso, a longa legenda, à esquerda, deu margem a uma série de equívocos ao dramatizar a foto além do necessário.

Segundo o texto, Jamil teria 14 anos na ocasião e estaria chorando na foto, com seu próprio irmão, já morto, nos braços. Depois de deixar o corpo no barranco teria dito que ia buscar o resto da família.

No documentário Primeira página, Jamil desmente de forma inequívoca que a criança fosse seu irmão e não menciona ter ajudado a salvar alguém da sua própria família. Os repórteres Paulo Motta e Carlos Mesquita, por sua vez, explicam que cruzaram com Jamil rapidamente, a ponto de Mesquita só ter tido tempo de fazer uma única foto. Ambos dizem ter ouvido Jamil dizer algo que entenderam como sendo “meu irmão, meu irmão”. Concluiram, de boa fé, que o bebê era irmão dele quando, na verdade, estava pedindo ajuda a alguém.

A legenda serve de exemplo para a relutância em deixar a imagem falar por si. E para a prática de construir enredos dramáticos ficcionais para fatos que em si mesmos já são suficientemente trágicos.

* O documentário Primeira Página foi dirigido por Eduardo Escorel

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