A partir do ano que vem, cientistas que publicarem na Nature e em outras revistas do mesmo grupo editorial terão a possibilidade de deixarem seus artigos abertos para todos os leitores, e não só aos assinantes, mediante o pagamento de uma taxa de até 9 500 euros, ou cerca de 58 mil reais. A decisão foi criticada por cientistas brasileiros, que enxergaram no valor cobrado o potencial de aumentar o fosso que separa os pesquisadores dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O anúncio foi feito no final de novembro pela Springer Nature, grupo editorial responsável por editar a Nature, uma das mais prestigiosas revistas científicas do mundo, e outras 32 publicações da mesma família. A Springer Nature se junta a outros periódicos que já ofereciam aos autores a possibilidade de pagarem para abrir o acesso aos artigos. Nenhum deles, porém, cobra um valor tão alto quanto a Nature.
“É uma aberração o que estão cobrando, isso é o preço de um carro”, comparou a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, numa entrevista à piauí. Zatz – que tem no currículo seis artigos publicados em publicações da família Nature – se disse revoltada com a medida, que deve prejudicar os pesquisadores que trabalham com recursos limitados. “Tenho que escolher entre comprar reagentes ou pagar esse absurdo, mas sem reagente não tenho o que publicar.”
A Springer Nature alega que a taxa de publicação é necessária para bancar os custos de produção, incluindo os salários de uma equipe com centenas de profissionais trabalhando em tempo integral. Cerca de 57 mil manuscritos são submetidos por ano às publicações do grupo Nature, mas apenas 4 500 são aceitos para publicação após uma avaliação feita por especialistas da área de cada artigo – esse processo, conhecido como revisão por pares, é considerado o controle de qualidade da ciência.
O rigor do processo de revisão é um dos motivos por trás da reputação da Nature, que tem um fator de impacto de 42.778 – o índice leva em conta quantas vezes os artigos são citados em outros trabalhos. Mas outras publicações de alto prestígio cobram taxas mais acessíveis pela opção de deixar os artigos com acesso aberto. Na revista médica The Lancet, cujo fator de impacto é de 60.392, a taxa é de 5 mil dólares (cerca de 25 mil reais).
A decisão da Springer Nature deu novo fôlego a críticas recorrentes ao modelo de publicação científica. Os pesquisadores que escrevem os artigos não são pagos pelo conteúdo que os periódicos publicam e pelo qual cobram caro pelo acesso – a assinatura anual individual da Nature, por exemplo, custa 199 dólares, cerca de 1 mil reais. Mayana Zatz lembrou que o trabalho de revisão por pares tampouco é remunerado. “Você paga essa fortuna [para publicar em acesso aberto], perde o copyright do artigo e, se os editores te pedem para rever artigos de outros cientistas, não te pagam nada”, afirmou Zatz. “Está tudo errado.”
Assim como a Springer Nature, cada vez mais editoras científicas estão se voltando para modelos de publicação em acesso aberto, em resposta a uma demanda de agências públicas de financiamento da ciência. A lógica por trás desse movimento é que a sociedade tem o direito de ter acesso aos resultados das pesquisas que financiou com seus impostos. Um exemplo disso é a cOAlition S, um consórcio de agências de fomento de doze países europeus que determinou que, a partir do ano que vem, os estudos financiados por elas sejam publicados em revistas de acesso aberto.
Os cientistas não serão obrigados, porém, a pagar para publicar nas revistas da família Nature. Eles terão a opção de continuar usando o modelo em vigor até agora, no qual os artigos ficam acessíveis apenas aos assinantes dos periódicos. “O problema é se – e quando – isso passar a ser uma obrigatoriedade”, afirmou o paleontólogo Alexander Kellner. “Se o preço é justo ou não, é uma opção de mercado.”
A medida pode criar ou aprofundar a assimetria na visibilidade dos artigos abertos e daqueles de acesso restrito, com prejuízo para os autores destes últimos. Na avaliação do físico Luiz Davidovich, pesquisador da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Ciências, isso pode prejudicar a visibilidade da ciência feita em países como o Brasil. “À medida que o acesso aberto fique cada vez mais comum para os países que podem pagar por isso, os artigos dos países que não podem pagar vão ser menos lidos, porque estão fechados.”
A taxa de 9 500 euros que será cobrada para a publicação no modelo de acesso aberto equivale a 26 meses das bolsas de doutorado da Capes ou do CNPq, as principais agências de fomento à ciência do governo federal. Em alguns países em desenvolvimento, o valor corresponde ao salário anual de muitos cientistas, conforme notou um artigo publicado na revista Forbes.
Em nota enviada à piauí, o grupo Springer Nature reiterou que a taxa de acesso aberto não vai impedir nenhum pesquisador de publicar nas revistas da família Nature. “Dado o número incrivelmente alto de instituições que assinam essas publicações em todo o mundo, não vislumbramos nenhum impacto na capacidade de os pesquisadores descobrirem, acessarem e usarem a pesquisa de alta qualidade ali publicada.”
O grupo afirmou ainda que está em meio a uma transição rumo a um modelo de acesso aberto total para o conteúdo derivado de pesquisa, e que tem estudado alternativas de publicação que minimizem os custos para os pesquisadores que não tiverem condições de pagar as taxas de acesso aberto. “Reconhecemos que esse processo de transição não será fácil e continuamos a discutir se há mais passos que podemos dar para apoiar pesquisadores baseados nos países de menor renda.”
A taxa mais alta cobrada pela Nature para publicação em acesso aberto equivale a pouco menos de um terço do valor máximo do auxílio regular à pesquisa oferecido pela Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, que é de 200 mil reais. “[9 500 euros] é muito dinheiro apenas para publicar”, afirmou numa entrevista o neurocientista Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp. Para Mello, o valor deve acabar empurrando os cientistas brasileiros para publicarem em periódicos que não cobram tão caro, mas não têm o mesmo impacto. “Mas será que a carreira desses pesquisadores terá o mesmo sucesso?”, questionou.
Desde 2019, a Fapesp determina que os resultados das pesquisas financiadas pela agência sejam publicados em revistas que disponibilizem seus artigos para todos, embora ainda não esteja fiscalizando o cumprimento da nova política. Mello disse que, no ano passado, foram publicados mais de 10 mil artigos científicos que contaram com algum tipo de apoio da Fapesp. Se todos tivessem que pagar a taxa da Nature para terem acesso aberto, continuou, o custo total seria da ordem de 600 milhões de reais, ou praticamente metade do que a Fapesp investiu no financiamento a suas várias atividades no ano passado. “Isso é inaceitável”, disse o diretor. “Temos que encontrar um termo adequado para todas as partes, em que continuemos a ter sistemas de qualidade, mas em que o custo caiba no bolso de quem paga, que em última análise é a sociedade.”
Embora a assinatura das revistas científicas que cobram pelo acesso seja custosa, o acesso a elas para cientistas brasileiros é subsidiado pelo Estado. O conteúdo de 45 mil revistas científicas, incluindo os principais títulos da Springer Nature, está disponível no Portal Capes de Periódicos, que pode ser acessado gratuitamente por pesquisadores, professores e alunos de centenas de universidades e centros de pesquisa.
Por isso, na avaliação de alguns pesquisadores, a taxa da Springer Nature configuraria um pagamento duplo para as instituições brasileiras. “Fica esquisito que o Brasil pague as assinaturas desse grupo e, ao mesmo tempo, tenha que pagar pelos artigos para que fiquem abertos”, afirmou Luiz Davidovich. Para o presidente da ABC, o Ministério da Educação – ao qual a Capes é vinculada – deveria negociar com a Springer Nature algum acordo que alivie a taxa de publicação para cientistas brasileiros (um acordo desse tipo foi fechado com a Alemanha).
Na nota que enviou à piauí, o grupo Springer Nature afirmou que vem tentando pôr em prática políticas que evitem a superposição dos recursos obtidos com assinaturas e com publicação em acesso aberto. Lembrou ainda que seus periódicos publicam não só artigos com o resultado de pesquisas, mas também comentários e artigos de opinião, e que apenas o primeiro tipo de conteúdo passará a ser publicado em acesso aberto. Procurada pela reportagem, a Capes não quis comentar o caso.