Na tarde de céu azul sem nuvens, o termômetro marca 26ºC enquanto Kátia Alves da Silva, de 41 anos, frita pastéis no Restaurante e Lanchonete Nelma, em São Joaquim, bairro da periferia de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No calor do dia, a balconista vira com a escumadeira a massa imersa no óleo quente para que todos os lados fiquem igualmente crocantes e dourados. O trabalho dela garante que a iguaria chegue quentinha às mãos dos clientes, como promete o letreiro atrás do balcão: “fritamos pastéis na hora.” Outro cartaz descreve os sabores: carne, queijo e pizza, a 3 reais cada. E um terceiro sugere o caldo de cana para acompanhar. O clássico das pastelarias mineiras aparece em uma cena de Marte Um, filme do diretor Gabriel Martins, indicado do Brasil para o Oscar de melhor filme internacional.
Vestida com a blusa do restaurante e os cabelos presos em um coque, a pasteleira conversou com a piauí num dia de primavera que mais parecia pleno verão de tão quente. A jovem trabalha no local que serviu de locação para o filme brasileiro que conta a história de Deivinho, menino que sonha em se tornar astrofísico e participar da missão Marte Um em 2030. A lanchonete fica na área comercial do Ressaca, que engloba os bairros São Joaquim, Laguna e Milanês. O Ressaca não tem salas de projeção, mas virou símbolo de uma linguagem cinematográfica que mostra a periferia na perspectiva de quem vive lá – e que pode levar o Brasil a disputar a tão esperada estatueta.
O espaço da pastelaria foi alugado pelo proprietário, Charles Rodrigues Elias, de 45 anos, para as filmagens. O próprio chegou a gravar uma cena fritando pastéis, que não entrou na edição final. Mesmo assim, ele se enche de orgulho de fazer parte de uma produção da Filmes de Plástico, produtora nascida em Contagem. “Como morador daqui, gostei muito do filme, da história. Adorei as partes filmadas aqui na região. Foi filmada aqui a história, que mostra bem o cotidiano da gente. Tem a ficção, mas tem a parte da realidade.”
A logística para as gravações da cena em que a personagem Tércia aparece comendo um pastel na lanchonete o impressionou. “Vieram duas vans cheias, muito figurino, muita gente, técnica, iluminação, Corpo de Bombeiros, para uma cena que durou pouco tempo, mas que levou quase um dia inteiro para ser gravada”, recorda-se.
Kátia Silva e a colega Izabel Dias Lima, de 19 anos, não trabalhavam na pastelaria na época das filmagens, em 2018. E nunca foram ao cinema. Na região, a sala mais próxima fica em um shopping no bairro vizinho, Cabral. “Nunca fui. Às vezes, a oportunidade aparece, mas dou prioridade para outras coisas e eu não vou”, conta Kátia. Agora, pretende assistir ao filme. Perdeu a pré-estreia em uma sala de cinema do circuito comercial em um shopping em Contagem no dia 23 de agosto, com cinquenta ingressos gratuitos para pessoas da região, muitas delas que participaram da produção. A estreia internacional foi no Festival de Sundance, o maior festival de cinema independente dos Estados Unidos, em janeiro. O lançamento nacional foi no Festival de Gramado, em 17 do mesmo mês.
Silva não ficou sabendo na época dos ingressos gratuitos. Também desconhecia que a lanchonete onde trabalha foi locação do filme rodado com um orçamento de 1,25 milhão de reais. Também a surpreendeu que a produção brasileira possa estar no Oscar 2023. O longa foi produzido graças ao edital de Baixo Orçamento para Longa Afirmativo de 2016, cujo objetivo é trazer mais diversidade para os produtores de audiovisual.
O desconhecimento em relação a Marte Um não é por desinteresse de Kátia, que diz que gosta de filmes. Sinaliza a dificuldade de, na periferia, conseguir acesso a bens culturais. A balconista começou a trabalhar na lanchonete em junho de 2022, e as cenas foram gravadas no lugar há quatro anos. Natural de Pau Brasil, na Bahia, Kátia trocou a cidade baiana pelo bairro da periferia de Contagem há quase uma década a convite do ex-marido, também baiano. Perguntada sobre o filme, responde: “Veja com Izabel”, acreditando que a colega pudesse falar sobre Marte Um. Izabel mora no Ressaca, comunidade vizinha ao Bairro Laguna, e trabalha na lanchonete desde agosto. “Esse filme conta qual história?”, pergunta. A história da família de Deivinho, um menino que sonha em se tornar astrofísico e integrar a primeira missão para o planeta vermelho.
As jovens torcem para que a produção traga a estatueta de Melhor Filme Internacional para Contagem. “Pode ganhar, sim. Se ganhar, meu sentimento será de felicidade e também de tristeza. Ficaria feliz, porque a favela teria um lugarzinho ali. Não vemos muito isso. Vemos pessoas mais bem de vida, pessoas que podem mais. Mas o sentimento de tristeza é por não ter participado das filmagens”, diz Izabel.
Izabel se empolga ao saber que o filme empregou pessoas do bairro, moradores que atuaram como figurantes e em funções técnicas. Por um instante, esboça o desejo de se ver na película como atriz, mas rapidamente se exclui. “Sou muito feia. Para estar no filme tem que ter um padrão: branco, de olho verde. A não ser que o filme venha da favela. Aí sim vai ter espaço para todo mundo. Mas caso contrário só para quem tem dinheiro.” Como a colega Kátia, ela também nunca foi ao cinema.
Se for de fato finalista na categoria de filme internacional, Marte Um recoloca o Brasil numa disputa da qual o país não participa há 23 anos. O primeiro filme brasileiro a concorrer à categoria de Filme Internacional foi O Pagador de Promessas (1963), dirigido por Anselmo Duarte, mas não venceu. Nos anos 1990, o país teve três indicados nessa categoria: O Quatrilho, de Fábio Barreto (1996), O Que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto (1998), e Central do Brasil, de Walter Salles (1999). No entanto, a estatueta não veio.
O fato de Marte Um ter sido indicado como representante brasileiro torna o trabalho mais conhecido entre os moradores da região do Ressaca. “As pessoas, mesmo muito próximas da gente, morando aqui no bairro, não tinham a dimensão, não tinham um conhecimento do filme… essa palavrinha Oscar tem um poder absurdo”, diz um dos cofundadores da Filmes de Plástico, Maurílio Martins. A produtora mineira foi fundada em Contagem em 2009. Atualmente funciona em Belo Horizonte e tem à frente o produtor Thiago Macêdo Correia e os diretores André Novais Oliveira, Maurílio Martins e Gabriel Martins — que não têm nenhum parentesco, apesar do sobrenome.
Fiel ao estilo mineiro, Gabriel prefere trabalhar de forma discreta as estratégias da campanha para a divulgação internacional. No Brasil, o filme esteve em cartaz em oitenta salas e foi visto por mais de 80 mil espectadores até novembro. Na corrida para ampliar a visibilidade do filme, Gabriel deu um passo importante ainda em terras brasileiras. A convite do casal de atores Lázaro Ramos e Taís Araújo, o diretor mineiro se encontrou em um jantar com a atriz Viola Davis, quando ela esteve no Rio de Janeiro, em setembro, para divulgar A Mulher Rei.
A imagem da lanchonete mineira viajou Brasil afora e chegou a Hollywood, em Los Angeles. A missão de apresentar o representante brasileiro aos votantes da Academia foi assumida pela produção da Filmes de Plástico. Gabriel sabe da importância de mostrar o filme para ampliar o público, e viajou para cidades brasileiras para lançar a película em festivais. Como o personagem de seu filme, Gabriel também é negro, nascido na periferia, e desde a infância sonhava ser cineasta.
Agora está nos Estados Unidos com uma missão: capitanear a campanha para que os votantes da Academia possam assistir ao filme e se sentirem motivados a votar. Com ele está uma parte do elenco – Carlos Francisco (Wellington), Camila Damião (Nina) e Cícero Lucas (Deivinho). Já houve sessões na Agência CAA (Creative Artists Agency), apresentada pelo ator e diretor Wagner Moura, e no Hollywood Brazilian Film Festival no Museu da Academia do Oscar, seguida de um debate mediado pelo ator brasileiro Rodrigo Santoro. Também houve exibições em Nova York e no Convent Garden, em Londres. “Ficamos bem felizes. Foi uma boa recepção do filme, que foi bem elogiado pelas pessoas”, avalia Gabriel. “Tem sido uma campanha ótima até agora, eu interpreto como uma campanha de muito sucesso, em que a gente tem conseguido alcançar as pessoas.”
A produção de Marte Um está em campanha para que o filme esteja nessa lista de cinco finalistas. O primeiro passo é figurar na lista com quinze filmes que será anunciada em 21 de dezembro pela Academia. A lista final, com cinco filmes, será conhecida em 24 de janeiro.
Mas para conquistar a indicação na lista final é fundamental que o filme chegue aos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. A estratégia traçada prevê participar de streamings das trades, revistas especializadas em premiações – Variety, Hollywood Reporter, Deadline –, que realizam sessões online e presenciais para votantes; e busca conquistar o apoio de nomes importantes do cinema, brasileiros e estadunidenses.
A Academia tem quase 10 mil votantes, mas como se trata de uma votação não compulsória, o votante precisa se sentir motivado a votar. É preciso que eles se inscrevam e depois vejam um número mínimo de filmes de determinada categoria para que possam expressar as preferências. Não há um número mínimo de votos que um filme precisa conseguir para se eleger.
O Laguna e as redondezas se tornaram bem conhecidos para quem acompanha a cinematografia da Filmes de Plástico. O bairro foi locação para os filmes Contagem (2010), Dona Sônia Pediu Uma Arma Para Seu Vizinho Alcides (2011), Quinze (2014), No Coração do Mundo (2019) e O Último Episódio, filmado em 2021 que está na pós-produção. “O ato de filmar nos nossos bairros, como quase tudo que nasce na periferia, vem com a necessidade e depois se transforma numa ideia”, avalia Maurílio. O primeiro marco na produção do grupo foi No Coração do Mundo, que trouxe alguma projeção para a produtora, ainda que dentro da “bolha cinéfila”. Marte Um consegue chegar a outros públicos e concede uma chancela à produtora.
As produções também geram renda para moradores da região. “Já não é mais chegar numa locação e falar ‘me emprestar sua casa?’ Temos responsabilidade, então pagamos. O dinheiro começa a circular efetivamente dentro do bairro. As pessoas começam a entender que é um trabalho e que precisa ser remunerado. Precisamos encher o balde de todo mundo. É maravilhoso, porque as relações ficam mais profissionais”, afirma Maurílio.
A dona de casa Edna Damacena Martins, de 65 anos, sempre apoiou a produtora do cunhado Maurílio. Para Marte Um, alugou por dois meses sua casa de três quartos, sala, copa, cozinha e dois banheiros – e com todos os móveis. “Olhei locações e estava muito difícil de encontrar. O Gabriel queria uma casa muito específica. Olhei várias. Um dia, estive aqui e vi que seria perfeita”, conta Maurílio. Ter usado uma casa do próprio bairro reduziu custos e facilitou a produção.
A também dona de casa Alice Ferreira, de 55 anos, vizinha de Edna, foi outra que alugou a casa para ser ponto de apoio da equipe de filmagem. “Quando soube que o filme foi indicado como representante do Brasil ao Oscar senti uma alegria tão grande! Fiquei muito feliz. Convivi com o pessoal maravilhosamente bem. Não imaginava aonde o filme chegaria. Estou torcendo para dar certo. É muito bom para a gente.”