Imagem de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
Cinema Novo – monumento comemorativo
O procedimento de Eryk Rocha ao realizar "Cinema Novo" leva o filme a cair na armadilha da comemoração fúnebre
Transcorridas quase cinco décadas desde o fim do Cinema Novo, graças ao filme Cinema Novo, de Eryk Rocha, estamos testemunhando mais um surto periódico de revalorização dos filmes e diretores cinemanovistas. Inaugurado em 1962, sem esquecer alguns precursores ilustres, o movimento fugaz foi encerrado em abril de 1964 e teve sobrevida até dezembro de 1968.
A redescoberta atual teve início no Festival de Cannes, em maio, quando Cinema Novo ganhou o L’Oeil D’Or (Olho de Ouro), prêmio dado por um júri presidido por Gianfranco Rosi, diretor de Fogo no Mar (2016), ao melhor documentário da mostra paralela Cannes Classics, dedicada a filmes sobre cinema. Não é pouca coisa e Rocha merece o reconhecimento obtido por seu feito.
Ao anunciar o prêmio, o júri referiu-se ao Cinema Novo como “um movimento cinematográfico quase esquecido dos anos 1960”. E a Cinema Novo como “um ensaio impressionista de um novo estilo, que nos lembra que o cinema pode ser, ao mesmo tempo, político e sensual, poético e comprometido, formal e narrativo, ficcional e documental” – termos que ecoam entrevista do próprio Rocha dada durante o Festival.
A inclusão de Cinema Novo na categoria de “ensaio”, adotada desde então, de forma geral sem questionamento, consta da sinopse publicada no site oficial do Festival de Cannes, que descreve o filme como um “filme-ensaio que investiga poeticamente o mais importante movimento do cinema latino americano”. Além dessa glorificação explícita do Cinema Novo, a sintonia fina entre a sinopse e a declaração do júri estabeleceram os parâmetros iniciais que nortearam a futura recepção ao filme.
Passados seis meses do Festival de Cannes, Cinema Novo finalmente estreou há uma semana no Brasil, onde a cinematografia nacional e o mercado exibidor encontram-se dominados por filmes sem parentesco com os do Cinema Novo; onde, além disso, o conhecimento sobre a produção cinemanovista é precário, tendo esvanecido quase totalmente a admiração por alguns dos títulos mais célebres da década de 1960 – filmes emblemáticos daquela época que hoje deixam plateias jovens perplexas e chegam a causar rejeição.
Cinema Novo surge nesse contexto com a pretensão de se contrapor à existência, segundo Rocha, de “pouco espaço para a reflexão, para pensar o sentido real da vida e o sentido real de se fazer arte”. Projeto ambicioso que não parece estar, porém, ao alcance do filme.
Nascido dez anos após o fim do Cinema Novo, foi só a partir da década de 1990 que Rocha pode ter começado a tomar conhecimento dos filmes do movimento, época em que as marcas que deixaram já estavam esmaecidas e as raízes do olvido haviam se fortalecido. Sem ter sido contemporâneo do Cinema Novo, seria inusitado que Rocha fizesse um filme nostálgico que exprimisse melancolia ou saudade de algo que ele nunca teve. A alternativa teria, forçosamente, que ser outra.
Durante o Festival de Cannes, Rocha declarou a uma agência de notícias que os filmes do movimento foram muito importantes na sua vida, e o Cinema Novo em si “sempre foi uma referência essencial” na sua formação e no seu desejo de fazer cinema” – vínculo cuja origem pode estar no fato de ele ser filho de Glauber Rocha, embora Glauber tenha falecido em agosto de 1981, quando Rocha tinha três anos. Fazer Cinema Novo hoje representaria, disse ele, se “perguntar onde está a paixão do cinema como pensamento, e seu lugar como ação política”. Com esse propósito, teria sentido “necessidade de retornar às raízes cinematográficas” do seu país, “de olhar um pouco para a história do seu cinema e sua história política”, para se perguntar por que faz cinema.
Trata-se, portanto, declaradamente, de um projeto de investigação do passado para iluminar o presente, gênero no qual sempre há o risco de idealizar uma experiência alheia, remota e mal conhecida. É o que ocorre quando celebra-se evento memorável com a construção de um monumento, parafraseando Jacques Le Goff.
O procedimento de Rocha ao realizar Cinema Novo leva o filme a cair nessa armadilha da comemoração fúnebre. A livre associação de sequências ou planos, pinçados em dezenas de filmes e entrevistas, resulta em uma antologia que por vezes atenta contra a integridade das obras de origem. Exemplo disso é a transposição para O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, da Bachianas nº 5, usada em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Coletânea ordenada de modo subjetivo, Cinema Novo é particularmente enganoso, uma vez que os trechos incluídos nem sempre são representativos dos filmes completos. A fragilidade de alguns desses títulos seria facilmente revelada se alguns segundos fossem acrescentados às cenas selecionadas. Exemplo disso é, por exemplo, O Canto da Saudade (1952), de Humberto Mauro.
Com pânico da pecha de didático, Rocha não verbaliza seu pensamento, recorrendo a uma forma narrativa supostamente poética; tampouco interroga o acervo de imagens e sons de que lança mão; sugere a existência de uma unidade transcendental no movimento e negligencia suas rupturas internas, na tentativa de dar uma visão global do Cinema Novo; não trata das experiências concretas reunidas no seu painel, como se os filmes tivessem origem e resultassem de processos homogêneos.
Louvado por vozes respeitáveis, cujos pontos de vista, porém, são divergentes, Cinema Novo revela sua faceta camaleônica. De um lado está Jean-Claude Bernardet, que identifica no tratamento dado ao “manancial do Cinema Novo como material de arquivo (found footage) […] uma afirmação de independência que quebra qualquer atitude reverencial ou fetichista com o CN” (3 de novembro às 14:00, no Facebook) – afirmação que não só contradiz as intenções declaradas de Rocha, como não tem correspondência com o filme em si mesmo. Bernardet parece estar se referindo a um filme hipotético que gostaria de assistir, e não a Cinema Novo propriamente dito. Ao contrário do que afirma, desde Rocha que voa (2002), primeiro filme de Rocha, ele parece tolhido pela sombra dos cineastas dos anos 60, Glauber em especial.
Walter Salles, por sua vez, em comentário sobre Cinema novo publicado no Globo (Segundo Caderno, 6.11.2016, p.3) três dias depois do texto de Bernardet, descreve o filme como “a imagem caleidoscópica de um país” de “tirar o fôlego” – caleidoscópio feito, no caso, de “cenas de filmes” do Cinema Novo, “cenas fulgurantes e em movimento”. À sua exaltação, Salles agrega a glorificação do movimento – “Existe um antes e um depois do Cinema Novo”, escreve. Ele considera os filmes tão bons “que resistiram ao tempo” e diz não acreditar “que haja um realizador brasileiro, de diferentes gerações, que não tenha sido marcado de forma objetiva ou subjetiva pelo Cinema Novo”.
De qualquer modo, não estará mais do que na hora de deixar de fazer do Cinema Novo um monumento e, em vez disso, refletir sobre seus fundamentos e realizações? É o que falta a esse Cinema Novo, de Eryk Rocha.
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