Numa operação recente, o Exército da Guatemala apreendeu uma tonelada de cocaína em Izabal, província que faz fronteira com Honduras Foto: Reprodução/Agencia Guatemalteca de Noticias
Como a América Central se tornou um novo polo mundial da cocaína
Cultivo de coca, antes restrito aos países andinos, se espalha por México, Honduras e Guatemala, reorganizando o tráfico internacional
Esta reportagem faz parte do #NarcoFiles: A Nova Ordem do Crime, uma investigação jornalística transfronteiriça sobre o crime organizado global, suas novas estratégias, suas ramificações e aqueles que o combatem. O projeto, liderado pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) em parceria com o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), começou com o vazamento de e-mails do Ministério Público da Colômbia que foram compartilhados com a piauí e outros veículos de mídia ao redor do mundo. Jornalistas examinaram e confirmaram as informações juntamente com centenas de outros documentos, bancos de dados e entrevistas.
Os autores desta reportagem são Jonny Wrate (OCCRP), David Espino (El Universal), Jody García (Plaza Pública), Angélica Medinilla (Agencia Ocote), Enrique García (Ojoconmipisto), Víctor Méndez (Narcodiario), Arthur Debruyne, Yelle Tieleman (Follow the Money), Brecht Castel (The Knack) e Juanita Vélez.
Espremido entre densas matas e lavouras de café de Costa Grande, no sudoeste do México, o vilarejo de El Porvenir parece, à primeira vista, abandonado. Tem poucas casas, ruas desertas e uma quadra de basquete vazia, tostando debaixo do Sol. É uma região pacata, historicamente habitada por cafeicultores, mas que se transformou nas últimas décadas. Nos anos 1990, quando a cotação do café despencou em todo o mundo, a renda de quem trabalhava nas lavouras despencou junto, afetando todo o ecossistema econômico da região. Para sobreviver, os moradores de El Porvenir passaram a plantar coco e manga. Em pouco tempo, no entanto, descobriram que os cultivos mais lucrativos eram os ilegais: mais especificamente, maconha e papoula. Com essa dupla, fizeram seu ganha-pão durante décadas. Até que uma nova oscilação nos mercados mudou tudo.
A popularização do fentanil, um opioide sintético, vem reduzindo a demanda por papoula nos Estados Unidos, principal mercado dos agricultores mexicanos. O preço do ópio caiu, consequentemente, forçando os moradores de El Porvenir a buscar uma nova fonte de renda. Coincidiu que, na mesma época, facções criminosas começaram a se instalar na região para tentar um novo investimento: a plantação de folha de coca. O cultivo, que pode ser usado para produzir cocaína, tem alta lucratividade. Os agricultores rapidamente aderiram ao plantio.
“É uma nova economia: a diversificação dos cultivos ilícitos”, diz Arturo García Jiménez, líder comunitário de El Porvenir. A maconha, que não deixou de ser cultivada, agora convive com um número crescente de hortas de coca. Das 171 plantações de folha de coca destruídas pelas autoridades mexicanas nos últimos quatro anos, 158 ficavam em Costa Grande, no estado de Guerrero. A maioria foi encontrada em ejidos, como são chamados os terrenos de propriedade comunitária como El Porvenir.
A violência também explica a rápida expansão dos negócios. Os grupos criminosos, que controlam todas as etapas do cultivo de coca, impõem ao vilarejo o lema plata o plomo (dinheiro ou chumbo). Em outras palavras: ou você coopera, ou você morre. Moradores são coagidos a entrar na linha de produção. Segundo García, os traficantes não se importam com a qualidade, e sim com a quantidade. “O que eles querem é produzir e produzir.”
A história de El Porvenir é exemplar de uma transformação que está em curso na rota internacional do tráfico. Países como México, Guatemala e Honduras, que antes serviam apenas de entreposto para traficantes, tornaram-se produtores de cocaína em larga escala, disputando mercado com grupos tradicionais da Colômbia e das regiões andinas de Peru e Bolívia. Essa nova realidade foi revelada por documentos vazados da Procuradoria-Geral da Colômbia, aos quais a OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project) teve acesso. A investigação, parte do projeto #NarcoFiles, mostra que autoridades colombianas já se depararam com traficantes de Bogotá movimentando lotes de cocaína guatemalteca.
A mudança se deve a vários fatores. O principal deles é a fragmentação dos grandes grupos que, até pouco tempo atrás, controlavam a cadeia de produção da cocaína na América Latina. O desarmamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), depois do acordo de paz selado com o governo colombiano em 2016, abriu um grande mercado para grupos criminosos. Pequenas facções, muitas delas dissidentes das próprias Farc, passaram a atuar de maneira independente. Com o endurecimento da fiscalização na Colômbia, parte desses grupos transferiu suas operações para os países caribenhos.
Em março deste ano, o delegado de Corrales, ejido situado a 15 km de El Porvenir, relatou ao jornal mexicano Milenio que toda a população de uma de suas comunidades fugiu depois que traficantes passaram a sequestrar moradores para intimidá-los. Três pessoas já tinham desaparecido. O jornal atribuiu esse métodos bárbaros à expansão, naquela região do México, da facção A Família Michoacana, conhecida por executar e decapitar adversários.
Depois que os moradores fugiram, os militares mexicanos destruíram quase um hectare de coca no ejido, segundo dados obtidos pelo OCCRP. Em El Porvenir, o Exército fez uma operação contra as plantações de coca em setembro do ano passado. Um cafeicultor local, que pediu para não ser identificado na reportagem, contou que o vilarejo “estava cheio de soldados” e que drones sobrevoaram suas cabeças durante a operação. Quando os militares foram embora, diz ele, os camponeses simplesmente replantaram os pés de coca.
“A plantação vai ficar”, garantiu García, o líder comunitário. “A destruição que o Exército está fazendo é simbólica em comparação com o território cultivado.”
A
prosperidade da coca em El Porvenir é um exemplo do que os especialistas chamam de “efeito balão”. Quando as autoridades endurecem a fiscalização em um lugar, a produção de cocaína simplesmente se move para outro, assim como o ar num balão. A pacificação das Farc, grupo que chegou a controlar 40% do comércio global de cocaína, não fez encolher o tráfico – ele apenas mudou de mãos. A fragmentação do grupo rebelde criou o que a agência antidrogas da ONU descreve como um “mercado livre”, mais competitivo, diversificado e compartimentado. Nesse processo, a América Central entrou no circuito.
“Há um vácuo no mercado que afeta não só a Colômbia”, diz Leonardo Correa, coordenador do Sistema Integrado de Monitoramento de Cultivos Ilícitos (SIMCI), grupo vinculado à ONU. “Os territórios e rotas controladas pelas Farc foram interrompidos, mas isso propiciou a percepção de que é possível fazer o que eles faziam, só que em outros lugares.”
Atrativos econômicos também têm ajudado a empurrar a produção de cocaína ao Norte. Segundo Correa, 1 kg de cocaína é vendido na Colômbia por 1,7 mil dólares, enquanto na América Central pode custar 15 mil. Produzindo cocaína mais perto dos pontos de venda, os traficantes se beneficiam dos preços altos e ao mesmo tempo evitam despesas de transporte, além de reduzir o risco de que o produto seja apreendido no caminho.
Dados fornecidos à OCCRP pelo Ministério do Interior da Guatemala mostram que o cultivo de coca disparou desde 2018, quando a primeira plantação foi detectada no país. Um crescimento parecido foi registrado no México e em Honduras. Belize, por sua vez, detectou a primeira lavoura de coca em seu território em dezembro de 2022.
Nesses países, o cultivo de coca se concentra em áreas remotas, onde há pouca presença do Estado. Em Honduras, por exemplo, a produção de cocaína tem avançado sobre os departamentos de Colón e Olancho, dois territórios afastados dos centros urbanos e que serviam tradicionalmente de rota para o tráfico. A análise do OCCRP mostra que, na Guatemala, das 217 plantações de coca encontradas entre 2018 e o final do ano passado, 215 ficavam na porção nordeste do país, uma região com baixa densidade demográfica.
Esses novos polos de produção, embora cresçam rapidamente, ainda não são páreo para os países andinos. A ONU calcula que, só no ano passado, foram plantados 230 mil hectares de coca na Colômbia. De 2018 até o final de 2022, as autoridades guatemaltecas haviam destruído somente 110 hectares de plantações. As mexicanas, em torno de 39.
Mas a produção está em constante expansão. Os produtores vêm testando novos territórios para a lavoura de coca. Plantações surgiram recentemente em lugares como as selvas do Panamá e o montanhoso estado mexicano de Chiapas, mas logo desapareceram – possivelmente porque a operação não compensou o investimento. Neste ano, foi encontrada coca pela primeira vez em áreas remotas do estado mexicano de Michoacán.
“Eles estão à procura de locais onde essa cultura possa se desenvolver melhor”, afirma Ludwig Reynoso, secretário-geral do governo do estado de Guerrero, explicando que a produção local “ainda não tem a mesma qualidade que a coca cultivada na Colômbia”.
E não é só o cultivo que está mudando, como mostram acontecimentos recentes do outro lado do Oceano Atlântico.
D
esde que os europeus começaram a extrair o alcaloide das folhas de coca no século XIX, a cocaína se tornou um produto comum, comercializado em farmácias, tão popular quanto a Coca-Cola. Na época, os Países Baixos eram os maiores produtores mundiais de cocaína, mas o mercado foi se transformando. No começo do século XX, os Estados Unidos proibiram a droga, criando com isso um lucrativo mercado clandestino: a cocaína, produzida em laboratórios legais na Europa, passou a ser transportada para países latino-americanos, sobretudo Colômbia e Honduras, de onde era traficada até chegar às mãos do usuário americano. Esse fluxo cresceu nos anos seguintes, quando o resto do mundo seguiu a política dos Estados Unidos e também proibiu a comercialização de cocaína.
A produção, desde então, se concentrou em três países andinos – Colômbia, Peru e Bolívia –, onde a coca é considerada sagrada por comunidades indígenas. O Peru foi, por muitos anos, o epicentro da produção ilegal, sediando plantações de traficantes não só peruanos, mas também colombianos. O fortalecimento da guerra às drogas, porém, dificultou essa logística transnacional. Para minimizar os riscos, traficantes da Colômbia concentraram a produção em seu próprio país. Hoje, assistimos a uma mudança similar: com o endurecimento das fiscalizações na Colômbia, a produção está migrando para o Norte.
Mas essa é só uma das mudanças em curso. A Europa, que antigamente era um grande polo produtor de cocaína, hoje está voltando ao circuito da droga. Na Holanda, a polícia se deparou em agosto de 2020 com o maior laboratório de cocaína já encontrado no país. Estava escondido numa escola de equitação no vilarejo de Nijeveen e tinha capacidade de produzir até 200 kg da droga por dia, segundo a denúncia apresentada pela Procuradoria.
Os promotores afirmaram que ao menos treze colombianos – onze dos quais viajaram de avião para executar esse trabalho – tinham sido contratados para passar dez dias no laboratório, extraindo, processando e embalando o equivalente a 1 tonelada de cocaína. Eles respondiam a um traficante colombiano, Alejandro Cleves Ossa, que, por sua vez, obedecia às ordens de uma organização criminosa sediada nos Países Baixos.
Cleves, que aos 23 anos já era conhecido como o “Rei da heroína de Nova Jersey”, foi extraditado da Colômbia para os Estados Unidos e preso por tráfico de drogas em 2010. Deixou a cadeia depois de oito anos. Em 2020, mudou-se para os Países Baixos com o objetivo de coordenar a produção de cocaína de um dos chefões do narcotráfico na Colômbia, segundo consta em um documento da polícia holandesa obtido pela OCCRP. Em agosto de 2020, as autoridades holandesas fizeram uma busca na escola de equitação de Nijeveen e devassaram o laboratório. Cleves foi condenado em março de 2022 a quatro anos de prisão. Procurado pela reportagem, ele não respondeu se irá recorrer da sentença.
Laboratórios como esse têm aparecido com mais frequência em países fora da América do Sul, o que é uma novidade no mercado da cocaína. Há registros no Senegal e na Austrália. Só na Holanda, foram desmantelados mais de sessenta laboratórios desse tipo desde 2018.
A Europa oferece algumas vantagens para os grupos criminosos. Enquanto na América do Sul os produtores de drogas costumam ter dificuldade para conseguir insumos químicos de qualidade, entre eles o permanganato de potássio, nos países da União Europeia é possível obtê-los de produtores legais, sem grandes entraves. Sentenças de tribunais holandeses mostram que essas compras costumam ser manipuladas – geralmente, alega-se que os produtos químicos serão usados para atividades legais, como o restauro de obras de arte.
“Os holandeses têm tudo: portos, redes de distribuição, produtos químicos. Mas carecem de experiência. Os colombianos têm o produto e a experiência”, explicou ao OCCRP Martin van Nes, principal promotor dedicado à investigação do tráfico de cocaína nos Países Baixos. Segundo ele, essa nova dinâmica funciona como um casamento de conveniência.
A
s transformações na produção e no processamento da cocaína vêm sendo impulsionadas por métodos de transporte e camuflagem cada vez mais sofisticados. Boa parte da pasta base de cocaína chega à Europa escondida em produtos legais. Às vezes, é misturada em plástico fundido e remoldado; outras vezes, é dissolvida em líquidos que são despejados em roupas e outros materiais, impregnando-os. O uso dessas técnicas, criadas no começo dos anos 2000, aumentou nos últimos quatro anos, explica Jorrit van den Berg, cientista forense holandês. “O tamanho dessas operações também aumentou”, diz ele.
Em uma investigação conjunta com autoridades britânicas e holandesas, promotores colombianos seguiram a pista de um grupo criminoso transnacional que planejava exportar cocaína misturada em produtos como óleo de dendê, carvão vegetal, café e fertilizantes. O OCCRP não conseguiu confirmar se os planos se concretizaram. Segundo um relatório produzido pelos investigadores, uma dupla de químicos formada por pai e filho ajudava a processar a cocaína para depois incorporar a droga aos produtos legais. A operação era toda feita em laboratórios colombianos clandestinos. Antes de exportar a droga pela primeira vez, os criminosos despacharam para os portos europeus carregamentos de carvão não adulterado. A ideia, com isso, era testar os controles alfandegários de cada país. Pai e filho acabaram sendo presos, numa operação que mirou, ao todo, 27 pessoas.
Depois de atravessar o oceano, a cocaína é separada dos produtos legais de diferentes formas. No laboratório de Nijeveen, na Holanda, o grupo criminoso primeiro extraía a base de cocaína do carvão à qual ela havia sido misturada, para em seguida cristalizar e embalar a droga. Feito isso, a cocaína está pronta para ser comercializada. Segundo Jorrit van den Berg, essas técnicas tornaram obsoletos alguns procedimentos de detecção das polícias.
A polícia espanhola desmantelou recentemente um laboratório na Galícia, no noroeste do país. É a primeira estrutura de grande porte encontrada na Europa onde a cocaína era produzida diretamente a partir da pasta base, o produto rudimentar elaborado pelos próprios cultivadores. Assim como em Nijeveen, a capacidade de produção era de 200 kg por dia.
“O fenômeno vai se espalhar exponencialmente devido, sobretudo, à lucratividade do negócio”, diz Emilio Rodríguez Ramos, chefe do grupo de policiais espanhóis que descobriu o laboratório. Van Nes, o promotor holandês, conta que as autoridades de Antuérpia e Roterdã têm feito maiores apreensões de cocaína nos últimos anos, e que, por isso, é de se esperar que os traficantes reajam. Segundo Van Nes, eles tentam “diluir os riscos, como qualquer investidor sensato do mercado de ações”, diversificando métodos, rotas e portos. “É um interminável jogo de gato e rato entre os criminosos e as forças de segurança.”
* Ignacia Velasco colaborou com análise de dados para a reportagem.
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