“O que fazer com o futuro é fácil. Nosso grande desafio é o que fazer com o passado.” O advogado Marco Aurélio de Carvalho resume assim a situação que o governo Lula terá pela frente para reverter o descontrole armamentista dos quatro anos de governo Bolsonaro. Coordenador do Prerrogativas, coletivo de juristas de inclinação progressista, Carvalho foi nomeado para o grupo da equipe de transição que cuida das áreas de Justiça e Segurança Pública. Dentro desse grupo, ele comanda um subgrupo que deverá dar respostas, até 1º de janeiro, para uma questão fundamental: como desarmar o Brasil?
Quando diz que tratar do futuro é fácil, Carvalho se refere a um consenso do governo de transição: Lula terá de revogar uma série de decretos assinados por Bolsonaro desde 2019 que facilitaram o acesso de civis a armas e munições em grandes quantidades. Segundo levantamento do Instituto Igarapé, ONG que monitora políticas de segurança pública no país, há ao menos 41 portarias, decretos e resoluções para serem analisadas pelo futuro governo, além de dois projetos de lei – um emaranhado jurídico que, na prática, serviu para driblar o Estatuto do Desarmamento sem que fosse necessário atacá-lo via Congresso.
Ao promover um “revogaço” dessas normas, o novo governo pretende dificultar a compra de novas armas por civis. “Passa a régua e para ali”, diz Carvalho. O desafio é reverter o estrago que já foi feito, tirando de circulação as centenas de milhares de pistolas e fuzis adquiridas por civis quando as regras aprovadas por Bolsonaro ainda estavam em vigor.
O número de pessoas registradas como CACs (sigla que designa caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) mais que quintuplicou nos últimos quatro anos anos. Eram 117 mil em 2018, passaram a ser 674 mil em 2022, segundo dados do Exército analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As armas em posse desses civis eram 351 mil em dezembro de 2018. Em julho deste ano, já tinham ultrapassado a marca de 1 milhão.
A solução pensada pela equipe de transição até aqui é criar um programa de recompra dessas armas. Uma campanha que estimule as pessoas a entregar de forma voluntária seus arsenais ao governo mediante uma quantia determinada de dinheiro – que pode ser uma indenização ou um valor próximo ao preço de mercado. O senador eleito Flavio Dino (PSB-MA), responsável pelo grupo de Justiça e Segurança Pública da transição, já afirmou que a prioridade é a devolução de armas de grosso calibre, como fuzis e carabinas. Mas é provável que o programa também abarque armas que antes eram de uso restrito das polícias. “Tem muita Glock na mão de colecionadores, por exemplo, e a Glock é a arma oficial da Polícia Federal. Essas armas, quando forem devolvidas, podem eventualmente ser usadas para reequipar as polícias, se estiverem em boa condição”, explica Carvalho.
O formato e a eficácia desse programa dependem de uma variável fundamental: se parte dos decretos de Bolsonaro será considerada inconstitucional ou não. Há ações que pedem isso no Supremo Tribunal Federal, a quem cabe tomar essa decisão. Caso o STF entenda que as medidas contrariam a Constituição, o governo poderá obrigar os CACs a devolver as armas liberadas por esses decretos. Ou seja, a entrega não seria voluntária, e sim obrigatória. Além disso, os donos das armas, nesse cenário, não teriam base jurídica para se defender alegando “direito adquirido” – princípio jurídico segundo o qual um direito garantido por lei não pode ser revertido depois que a lei deixa de vigorar.
Um programa de entrega voluntária de armas não necessariamente resolve o problema do armamento civil, já que parte dos 500 mil CACs que adquiriram armas no governo Bolsonaro podem escolher continuar armados. Um programa de entrega obrigatória, em tese, é muito mais eficaz. A posse da arma passa a ser ilegal. Caso o dono de uma delas se recuse a entregá-la, a Justiça pode determinar uma operação de busca e apreensão.
Mas mesmo nessa hipótese otimista, ainda há problemas pelo caminho.
“Hoje a gente não tem a dimensão exata do problema. A gente sabe que houve aumento dos arsenais, mas a gente não sabe quantas armas estão na posse de cada CAC. Não sabemos o perfil de gênero dessas pessoas, não sabemos a distribuição geográfica”, diz Michele dos Ramos, gerente de Advocacy e Relações Institucionais do Instituto Igarapé. “A recompra das armas é um caminho possível para desarmar o país. Mas a gente precisa primeiro entender quantas armas foram compradas e onde estão. Isso é um dos passos iniciais.”
O Sigma, sistema que agrega as informações sobre os CACs, é de responsabilidade do Exército. Pesquisadores que lidam com segurança pública há anos alertam para as fragilidades dessa base de dados. “Junto com o instituto Sou da Paz, nós pedimos ao Exército dados sobre armas registradas no Sigma e percebemos que 20% da tabela que eles enviaram era inutilizável. Constava, por exemplo, que o país de fabricação de uma das armas era Terra Adélia [distrito da Antártida]”, conta Ramos. “Pedimos a eles um detalhamento maior, e responderam que não tinham como enviar porque as informações não eram acuradas. Ou seja, é o Exército assumindo que não tem dados confiáveis.”
Reabilitar essa base de dados é importante, entre muitos motivos, para reduzir o risco de que as armas, em vez de serem devolvidas ao governo, caiam na ilegalidade, abastecendo o crime organizado. “É um risco que precisa ser considerado. São armas caras. Não podemos deixar que elas sejam incorretamente registradas como furto e o Estado perca controle sobre elas”, explica Ramos. Segundo Marco Aurélio de Carvalho, a recompra feita pelo governo deve levar isso em conta. “O programa acaba sendo vantajoso, porque todo produto tem deságio. No mercado negro, o valor fica ainda menor. Então se a recompra for por um valor próximo ao valor de mercado, o cara vai pensar ‘bom, tá valendo a pena’.”
Com dados tão frágeis, como monitorar a eficácia de um programa de recompra? Seria possível saber ao certo quem não devolveu as armas, por exemplo? “Vai precisar ter rastreabilidade – e isso, com toda a franqueza do mundo, a gente só vai saber sabendo”, responde Carvalho. A equipe que ele coordena ainda está analisando os dados do Exército. O grupo concluiu um relatório que será apresentado numa reunião conjunta, nesta terça-feira (29), com toda a equipe de Justiça e Segurança Pública.
O processo de desarmamento, no caso brasileiro, deve se estender por anos. A primeira etapa é demolir o edifício de decretos e portarias que inviabilizaram o Estatuto do Desarmamento. Depois, começar a reconstruir esse sistema jurídico de forma a afunilar, por vários lados, o acesso a armas. “O entulho dessa demolição não vai desaparecer”, resume Michele dos Ramos, do Instituto Igarapé. “A gente precisa regulamentar tudo o que ficou.”
Dentre as medidas imediatas, além do “revogaço” e da recompra, está a restrição ao porte de armas. A flexibilização dessa regra é um problema que antecede o bolsonarismo. Numa portaria publicada em 2017, o Exército autorizou o porte de arma municiada para os CACs no trajeto de casa até o clube de tiro, e do clube de tiro até em casa. Até então, arma e munição precisavam ser transportadas separadamente. Como a restrição de trajeto é quase impossível de se fiscalizar, o porte foi basicamente liberado para os CACs. “E tudo baseado na prática de uma atividade esportiva. Isso é da ordem do surrealismo”, diz Ramos.
Segundo especialistas em segurança pública, há ainda uma série de políticas de médio e longo prazo que devem ser adotadas para reduzir o descontrole armado. Uma delas, segundo o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, é um recadastramento geral dos CACs. “Essa é uma categoria muito específica, que deveria abarcar só colecionadores, atiradores desportivos e caçadores. A maioria das pessoas que tem o registro hoje não é nada disso. No governo Bolsonaro, o CAC virou só um subterfúgio pra ter arma”, afirma.
Esse problema pode ser atacado por duas frentes. Uma delas é integrar a base de dados do Exército ao Sinarm, sistema de informações da Polícia Federal, que além de ser mais confiável, impõe um processo muito mais rígido para liberar a posse de armas. A equipe de transição discute, quanto a isso, a possibilidade de se criar uma agência especificamente para o controle da posse de armas. Ela ficaria submetida à PF e ao Ministério da Justiça.
A outra frente é reduzir o prazo para renovação do registro de armas – que, no primeiro mês de governo, Bolsonaro fez subir de cinco para dez anos. Adotando-se um prazo menor, o momento da renovação poderia ser usado justamente para conferir os dados e eventualmente cancelar registros indevidos de CAC. O que se cogita nesse momento, segundo integrantes da equipe de transição, é a possibilidade de baixar para três anos o prazo para renovação do registro de CAC. Nos demais casos, o prazo seria de cinco anos.
“Basicamente, o que a gente precisa é fazer com que o Estatuto do Desarmamento volte a funcionar”, diz Lima. A pesquisadora Michele dos Ramos concorda, mas acrescenta que é preciso ainda aprimorar o Estatuto, tornando obrigatória a marcação de todas as munições comercializadas no país, e não apenas aquelas adquiridas pelas forças de segurança.
“Não é como se o controle de armas e munições funcionasse a mil maravilhas antes de 2018. Precisamos avançar”, argumenta Ramos. Em seguida, faz uma ressalva. “O Estatuto foi resultado de uma ampla mobilização social, foi aprovado pela população brasileira e, apesar de toda a desconfiguração feita pelo governo Bolsonaro, a gente conseguiu chegar até aqui sem que ele fosse revogado. Isso é algo a ser destacado.”