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Coringa – violência e corrupção globalizada

Filme lida com sentimento de revolta da população contra opressão sofrida nas grandes cidades

Eduardo Escorel | 27 nov 2019_07h41
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A notícia de que a renda de Coringa havia ultrapassado 1 bilhão de dólares, 44 dias depois do lançamento, chamou minha atenção. Até esse momento, eu havia ficado alheio à saga do comediante Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), dirigida por Todd Phillips, apesar da acolhida calorosa dada ao filme, inclusive por pessoas próximas, segundo as quais eu “tinha” que assistir a ele.

Não é corriqueiro um produto da indústria audiovisual obter tamanho sucesso de bilheteria, sendo 31,6% no circuito doméstico e os 68,4% restantes em âmbito internacional, depois de ter recebido o Leão de Ouro, principal prêmio do Festival de Veneza. Com isso, acabei interessado em conhecer os predicados de Coringa responsáveis por tamanho sucesso.

Ainda reticente, fui assistir a Coringa no feriado de 20 de novembro. Soube depois que Michael Moore fizera uma advertência no início de outubro na página dele no Facebook: “O maior perigo para a sociedade pode ser você NÃO ir ver esse filme. Porque a história que ele conta e as questões que levanta são tão profundas, tão necessárias, que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte, perderá a oferta do espelho que ela nos está fazendo. Sim, há um palhaço perturbado naquele espelho, mas ele não está sozinho – estamos de pé ao lado dele.”

Uauu! Moore não faz por menos com seu habitual esquerdismo infantil. Mas de qualquer maneira foi um grande alívio saber que tendo assistido ao filme eu deixara de ameaçar a sociedade.

Na manhã seguinte ao Dia da Consciência Negra, soube do assassinato de Zilda Henrique dos Santos Leandro, cometido dias antes por Aderbal Ramos de Castro com dois tiros, no Centro de Niterói. Ela, aos 31 anos, foi identificada como moradora de rua que teria pedido 1 real para comprar pão; ele seria um comerciante que alegou ter reagido a uma tentativa de assalto. A cena do crime, gravada por câmeras de vigilância e divulgada pela internet, inverte a proposição de Moore – é a imagem crua da realidade, refletida no espelho, de situações similares encenadas em Coringa, nas quais quem se sente acuado reage à bala.

O assassinato de Zilda é um entre inúmeros casos de violência ocorridos em grandes centros urbanos da atualidade, semelhantes a Gotham City – a recriação da Nova York do início da década de 1980 onde o Coringa vive. O enredo do filme lida com o sentimento latente de revolta contra os agravos que os desvalidos e remediados da sociedade em particular, mas a população em geral também, sofrem nessas grandes cidades. Por vezes, injustiças concretas são responsáveis por reações agressivas que levam a irrupções imprevistas de protesto; outras vezes, preconceitos e temores infundados resultam em brutalidades como a do ato aparentemente gratuito de Castro ao matar Zilda.

Coringa talvez tenha tido efeito catártico poderoso para seus milhares de espectadores mundo afora – assistindo ao filme, podem ter sentido que estavam se vingado no plano da fantasia das agressões, falta de respeito e afrontas, umas maiores, outras menores, de que são vítimas no dia a dia.

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Além disso, pode ter influído de modo decisivo para o impacto do filme a dosagem precisa de apreensão causada pelo Coringa – personagem cujo estado mental oscila entre perturbado e insano, revelando-se capaz de cometer crimes gratuitos e brutais – e o conformismo que o filme professa para reconfortar o público (a ressalva a fazer é que nem sempre se sabe com certeza se o que parece acontecer no filme é real ou fruto da imaginação do personagem).

Moore põe em dúvida a alegada violência de Coringa. Pare ele, “a maior parte da violência no filme é cometida contra o próprio Coringa, uma pessoa que precisa de ajuda, alguém tentando sobreviver à margem de uma sociedade gananciosa. O crime dele é que não pode obter ajuda. Seu crime é que ele é o alvo de uma trapaça feita com ELE por ricos e famosos. Quando o Coringa decide que não aguenta mais, sim, você se sentirá péssimo. Não por causa do sangue (mínimo) na tela, mas porque, no fundo, você estava torcendo por ele – e se for honesto quando isso acontecer, você agradecerá a este filme por conectá-lo a um novo desejo – não de correr para a saída mais próxima para salvar seu próprio rabo, mas em vez disso para ficar em pé e lutar e concentrar sua atenção no poder não-violento que você tem em suas mãos todos os dias”.

Slavoj Žižek criticou a ilusão simplificadora de Moore no site Spectator USA (01/11), em texto reproduzido dois dias depois no blog da Boitempo Editorial. O “novo desejo” que Moore menciona “decerto não é o desejo do próprio Coringa”, diz Žižek – “no final do filme, o anti-herói é impotente, e suas irrupções violentas não passam de explosões de raiva frágeis, manifestações de sua fraqueza básica. O paradoxo é que você se torna verdadeiramente violento (no sentido de representar uma ameaça ao sistema existente) somente quando renuncia à violência física. Isso não significa que as ações do Coringa são fúteis – a lição do filme é termos que passar por esse grau zero para nos libertar das ilusões inerentes à ordem existente”. O argumento de Žižek contra Moore resulta irrefutável: “No final do filme, Coringa é um novo líder tribal sem programa político, ele é apenas uma explosão de negativismo […] Não há nenhuma esquerda militante no universo do filme, é apenas um mundo achatado de violência e corrupção globalizada. […]”

A canção que precede os créditos de encerramento, por exemplo, leva a crer que o motivo principal do fenomenal êxito de Coringa possa estar na ausência de qualquer laivo de reconhecimento da legitimidade da revolta de humilhados e ofendidos. Isso, aliado à postura passiva diante dos males do mundo sugerida através dos versos de That’s Life (Isso é a vida), de Dean Kay e Kelly Gordon, na voz de Frank Sinatra, que acompanham a muito comentada sequência final do filme.

Mesmo algemado, rindo diante da psiquiatra (April Grace), o Coringa diz que ela “não entenderia” se ele contasse a piada na qual estava pensando e que achava tão engraçada. Em seguida, o Coringa é visto de costas, andando no corredor do hospital e seus passos deixam um rastro de sangue. Na última elipse da narrativa, é sugerido que ele acaba de matar a psiquiatra (sem esquecer a ressalva feita acima).

Há uma interpretação não assinada dos versos de That’s Life disponível na internet que os classifica como encorajadores. A canção seria “relacionada de alguma forma a quase todo mundo. A vida tem seus altos e baixos mas com perseverança total e perspectiva positiva os momentos mais desoladores podem ser transformados em felicidade potencial”, diz o texto. Mesmo essa análise, porém, reconhece que “há aqueles por aí que ficam felizes quando acabam com a felicidade dos outros. Essa triste realidade apenas realça a importância de tratar todos com certo grau de bondade. Todos merecem felicidade, até nossos assim chamados ‘inimigos’. Com frequência nós desconhecemos muitas das tensões e desafios que aqueles à nossa volta estão suportando. Mesmo se estamos cercados de negativismo e tristeza, há sempre um lado bom. Pode ser da nossa natureza humana considerar a vida apenas de uma perspectiva pessoal limitada. Percebendo que o mundo não gira em volta de cada um de nós, individualmente, podemos ser levados a viver a vida a serviço uns dos outros”.

Aceita apenas essa interpretação de That’s Life como uma exaltação à solidariedade humana de fundo cristão, fica difícil entender por que a canção foi incluída na trilha de Coringa. Os versos não teriam também outro sentido possível, indicado no título Isso é a vida? Em tradução literal feita por mim, a letra termina assim: “[…] Eu fui um fantoche, um pobre, um pirata,/um poeta, um peão e um rei/Estive por cima e por baixo, muitas vezes/ E eu sei uma coisa/Cada vez que estou com a cara no chão/Eu me levanto e volto à luta/Isso é a vida (isso é a vida) eu lhe digo,/não posso negar/Eu pensei em desistir, baby/Mas meu coração simplesmente não vai aceitar/E se eu não achasse que valesse tentar/Eu pularia…

Ou seja, a opção proposta parece oscilar entre persistir, conformando-se com a vida tal como ela é, ou pular…

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