A atriz Alexandra Borbély interpreta a personagem Maria no novo longa de Ildikó Enyedi FOTO: DIVULGAÇÃO
Corpo e Alma, a educação sensual de Maria
Premiado em Berlim, inquietante longa húngaro é um regalo visual sem afetação e com fino senso de humor
Em Berlim, no início do ano passado, Corpo e Alma surpreendeu ao ganhar o Urso de Ouro, principal prêmio do Festival, apesar de não ter sido considerado favorito durante a Mostra. Em dezembro, mais uma vez na capital alemã, depois de acumular algumas láureas durante 2017, Alexandra Borbély recebeu por sua Mária, principal personagem feminina de Corpo e Alma, o prêmio de Melhor Atriz da Academia de Cinema Europeu.
Apostando no magnetismo do filme, a Netflix adquiriu todos os direitos de exibição de Corpo e Alma na América do Norte, onde estreará em fevereiro. E, com exceção do Brasil, ele também estará disponível, através da Netflix, na América Latina, no Oriente Médio (menos em Israel e na Turquia), na África do Sul, Índia, Paquistão, Afeganistão, Butão, Bangladesh, Sri Lanka e Mongólia.
Continuando sua premiada trajetória, na próxima terça-feira, 23 de janeiro, depois de ter sido pré-selecionado entre nove das 92 produções inscritas, Corpo e Alma poderá estar entre os cinco finalistas a serem anunciados pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em Hollywood, como concorrente ao Melhor Filme em Língua Estrangeira. Em termos de prestígio, ganhando ou não o Oscar em março, terá sido um dos filmes mais bem-sucedidos da temporada, mesmo com resultado de bilheteria modesto em seu país de origem, a Hungria, e no restante da Europa.
Após estrear no Brasil às vésperas do Natal, em apenas quatro semanas Corpo e Alma já estava confinado, no Rio, a um dos redutos habituais de filmes de qualidade – a microssala de 66 poltronas e dois lugares para cadeirantes, em Botafogo, com uma única sessão noturna por dia.
É verdade que não se trata de mais uma banal história de amor rósea. Mesmo assim, a notória qualidade do filme permitia esperar que fosse visto, no Brasil, por público menos restrito.
O abate explícito de gado, com uma cabeça decepada e sangue escorrendo em profusão, tudo filmado em detalhe, talvez responda, em parte, pelo número reduzido de espectadores que vem assistindo a Corpo e Alma. É uma pena. Apesar da insistência algo excessiva dessas cenas de violência contra animais, nada é gratuito no filme. O propósito do abatedouro é estabelecer um contraponto com um casal de cervos, também vistos algumas vezes a mais do que parece necessário. Essa oposição serve de suporte para o desfecho otimista com o encontro amoroso libertador de Endre (Géza Morcsányi) e Mária, ambos até então pessoas solitárias e confinadas que têm a revelação de sua afinidade ao terem sonhos idênticos. Em termos singelos, a diretora e roteirista Ildikó Enyedi chega a declarar que “a vida é dura, mas vale a pena”.
O sentido metafórico da contraposição entre o gado e o casal de cervos, ou entre o abatedouro e a floresta, é um tanto enigmático. Para compreender seu significado é preciso recorrer às entrevistas de Enyedi, nas quais ela explicita: de um lado, há o gado – seres enclausurados, de vida breve, vítimas de crueldade extrema, abatidos para se tornarem alimento; de outro, há os cervos que vivem em liberdade, na floresta, sem servir de insumo à indústria alimentícia, capazes de cumprir o ciclo natural da existência.
Sétimo longa-metragem de Enyedi, Corpo e Alma só foi realizado após uma pausa forçada em que ela ficou dezoito anos sem filmar. Condições de produção adequadas custaram a ser obtidas depois de Simão, o Mágico (1999), seu filme anterior. Isso, mesmo tendo ganho, em 1989, a Câmera de Ouro no Festival de Cannes, prêmio dado ao melhor filme de diretor estreante – no caso, My Twentieth Century. Foi só com o financiamento integral da produção de 6,5 milhões de dólares, pelo Fundo de Cinema Nacional Húngaro, que Corpo e Alma pôde, finalmente, ser produzido.
Enyedi demonstra talento visual incomum em Corpo e Alma. Assistir ao filme é um regalo visual. Sem quaisquer artifícios, todos os planos são bonitos, bem enquadrados e fotografados. A modéstia pessoal de Enyedi, evidenciada em suas entrevistas, se reflete na simplicidade do filme, destituído de qualquer afetação. A esses traços se soma um fino senso de humor, calibrado na justa medida, que contribuem para o encanto de Corpo e Alma – uma educação sentimental que inclui o aprendizado emotivo e sensual de Mária.
Enyedi declarou que a “parte difícil [da sua carreira] veio depois de 2000 […] Nesses longos anos devastadores”, durante os quais não fez nenhum filme, ela se sentiu “como um operário metalúrgico desempregado. Mais e mais desinformada, perdida, sem contato com minha própria realidade. […] Mas, mesmo se certos períodos foram realmente sombrios, eu tenho a sorte de ter uma personalidade capaz de me perder, de submergir no momento. O tempo que passei com minha família, só um daqueles cafés da manhã bem cedo com meu marido falando com paixão sobre literatura, ou caminhadas, passeios de bicicleta com meus filhos, manteve minha atenção nas coisas que realmente importam – que eu devo ser agradecida por estar viva, por viver em um canto tranquilo do nosso globo e com pessoas que amo profundamente”.
Para Enyedi, Corpo e Alma “não tem nada que permita prever um grande sucesso em festival, é uma história em tom menor, sobriamente passional. Eu fiquei muito emocionada e feliz em sentar, com 27 integrantes da minha ótima equipe, na escuridão do cinema Berlinale Palast, ouvindo as reações de todas aquelas pessoas desconhecidas ao drama, humor e às emoções – exatamente como nós esperávamos. Eu me senti viva de novo, existindo de novo, porque eu queria compartilhar algo importante para mim e eu senti que fui total e profundamente compreendida. Eu creio que todo ser humano anseia por isso, os tímidos tentam criar algo, mostrando-se através desse trabalho para sua comunidade menor ou maior”. (A entrevista completa está disponível aqui.)
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