“Aquela área tem um dos maiores índices de analfabetismo da cidade”, disse o coordenador de projetos da Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro, Antonio Correa, durante uma apresentação ocorrida em fevereiro no Instituto Estadual do Ambiente (Inea). “Um empreendimento desses pode alavancar a região.” Por região ele se referia a Deodoro, Guadalupe e Anchieta – bairros pobres, periféricos, localizados na Zona Norte da cidade –, e por empreendimento, ao autódromo para corridas de F-1 que a prefeitura do Rio pretende erguer, com aval do governo do estado, sobre a Floresta do Camboatá – último naco de Mata Atlântica em área plana da capital fluminense.
Em novembro passado, reportagem da piauí descreveu a área de 2 milhões de metros quadrados da floresta, que resistiu aos avanços da malha urbana por ter passado décadas sob os cuidados do Exército. O local é hoje habitado por capivaras, tatus, jacarés, papagaios, corujas e por pelo menos 180 mil árvores – que correm o risco de morrer, terraplanadas, em função do projeto de autódromo apresentado à prefeitura pelo consórcio Rio Motorpark, presidido por um empresário com um histórico de calotes chamado JR Pereira.
Àquela época, o Rio Motorpark ainda não havia dado início à produção do EIA-Rima, o Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental, que precisa ser submetido ao escrutínio do Inea para que qualquer obra de grande porte seja autorizada no Rio de Janeiro (o Inea é a autarquia do governo do estado responsável por gerenciar processos de licenciamento ambiental). Era ele, o EIA-Rima, que estava finalmente sendo apresentado naquela terça-feira de fevereiro, para um público de cerca de quarenta pessoas.
Após a breve introdução feita pelo urbanista Correia, a palavra foi passada ao biólogo Diego Rafael dos Santos Peixoto, funcionário da Terra Nova – a empresa contratada pelo consórcio para tocar o Estudo de Impacto Ambiental. Primeiro Peixoto fez uma comparação superficial da floresta do Camboatá com outras quatro áreas onde o autódromo poderia ser erguido (todo licenciamento ambiental precisa apresentar soluções alternativas, segundo uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama). Explicou que as quatro opções – todas em zonas periféricas da cidade, assim como o Camboatá – não haviam sido visitadas: “Não fizemos levantamento de fauna e flora desses locais porque usamos dados secundários, da base municipal.” Explicou também que esses dados haviam levado a equipe a concluir que nenhuma das alternativas era viável, fosse por conterem habitações, linhas de energia, nascentes, ou por precisarem ser compradas. O valor pela área do Camboatá – 104 milhões de reais, atualizados – foi empenhado pelo governo federal anos atrás.
A Floresta do Camboatá, por sua vez, havia sido visitada várias vezes ao longo de quatro meses – tempo suficiente para que a equipe da Terra Nova fizesse uma avaliação mais detalhada da flora, da fauna e do relevo local, concluindo, por exemplo, que as duas nascentes que constavam da base de dados da prefeitura já não existem mais. “Lá existem áreas alagadas, mas não nascentes. E essas áreas alagadas nem são naturais”, prosseguiu Peixoto. Explicou que o estudo havia identificado nove espécies ameaçadas de extinção – o que poderia inviabilizar a obra, por causa da lei da Mata Atlântica –, mas acrescentou que duas dessas espécies, de plantas, já estavam fadadas a morrer, com ou sem a existência do autódromo. O biólogo terminou a apresentação com o argumento nada científico – e bastante usado pela prefeitura e pelo consórcio Rio Motorpark – de que, sem o autódromo, a região está fadada a ser favelizada. Foi aplaudido por quase todos na sala.
Se o caso do novo autódromo do Rio de Janeiro fosse levado a um hipotético tribunal, o rito estaria dividido em duas partes, ambas protagonizadas pelo Inea. A primeira parte ficaria sob os cuidados da Coordenadoria de Estudos Ambientais, um subgrupo do instituto ao qual caberia o papel de juiz relator, dando um parecer favorável ou não ao EIA-Rima. A segunda parte ficaria a cargo da Comissão Estadual de Controle Ambiental, outro subgrupo do Inea, formado por quinze conselheiros vindos de instituições tão díspares quanto Ibama, Uerj, Firjan e Cedae. Esses quinze conselheiros ficariam encarregados de dar, pelo voto, o veredito final.
A banca de advogados contrária à floresta – ou favorável ao EIA-Rima – seria representada pelos biólogos da empresa Terra Nova, que ali estariam a serviço do consórcio Rio Motorpark (a obra do autódromo é orçada em 697 milhões de reais). Já a defesa ficaria a cargo de alguns poucos engenheiros ambientais, ativistas e biólogos que trabalham de graça para o Movimento SOS Floresta do Camboatá.
Na semana passada, o grupo que defende a floresta terminou um relatório de 50 páginas em resposta ao EIA-Rima elaborado pela Terra Nova. O documento alega que o Estudo de Impacto Ambiental foi feito “de maneira açodada”, resultando num texto “facilmente confundido com um folheto de propaganda do autódromo”. Assim resume: “Tudo indica que o estudo tenha sido feito de trás para frente, ou seja, a alternativa de menor impacto teria que ser a Floresta do Camboatá, então construíram uma matriz de comparação que coadunasse com esse resultado.” Alguns pontos levantados:
- O estudo adotou dois pesos e duas medidas para avaliar as cinco localidades. Para as quatro alternativas, dados burocráticos da prefeitura, de origem secundária; para o Camboatá, dados primários, com visita ao local.
- Foram respeitados os dados da prefeitura que indicavam a presença de nascentes nas quatro alternativas; no Camboatá, a presença de nascentes foi questionada, justamente por causa das visitas.
- Ainda assim, o EIA-Rima aponta que “a não observação de nascentes” no Camboatá decorreu não de uma busca completa, e sim do “difícil acesso”, que impossibilitou “observar as áreas de nascentes”. Ou seja: talvez elas existam, só não foram observadas.
- A mesma lógica valeu para os rios. Os dois córregos que cruzam o Camboatá foram descritos como sujos, após observações. Os córregos das demais localidades não foram visitados, impossibilitando uma comparação razoável.
- O EIA-Rima contabilizou nove espécies em extinção no Camboatá, mas esqueceu de incluir outras nove que constam da lista municipal de espécies ameaçadas (há listas municipais, estaduais, nacionais e internacionais – e todas devem ser levadas em conta num Estudo de Impacto Ambiental).
“O levantamento em si até que foi bem feito”, explicou o engenheiro florestal Beto Mesquita, um dos dezesseis autores do relatório elaborado pelo Movimento SOS Floresta do Camboatá. “Coletaram bastante dado, enviaram uma equipe grande ao local. O problema foi na metodologia de análise das alternativas, que foi absurdamente enviesada.”
Um exemplo: o número de espécies ameaçadas não foi escolhido como critério de comparação entre as alternativas, mesmo o Camboatá sendo uma floresta com ao menos nove espécies em extinção, e as demais alternativas sendo descampados com poucas plantas e animais. “Como o critério das espécies ameaçadas seria favorável ao Camboatá, ele não foi incluído na comparação. Como o das nascentes era desfavorável, foi. Simples assim”, explicou Mesquita. Para piorar, a Terra Nova encomendou quatro laudos de notório saber para provar que, mesmo suprimindo a vegetação em 74%, o autódromo não representaria um risco às espécies em extinção do Camboatá.
Um desses laudos foi encomendado à bióloga Camila Mattedi, doutora em herpetologia pelo Museu Nacional da UFRJ. Após visitar a floresta durante uma manhã, ela escreveu que o autódromo “não representará ameaça específica negativa e irreversível para a sobrevivência da população” de 37 jacarés-de-papo-amarelo, contanto que eles sejam realocados. Perguntei-lhe, por telefone, se ela sabia que esse laudo estava sendo usado para justificar a construção do autódromo. “A pergunta que me foi feita não era se haveria ou não o autódromo, mas qual seria o impacto em cima dessa população caso houvesse o autódromo”, respondeu. “Eu propus o melhor cenário, mas não sabia que isso seria usado para validar a obra.”
Procurado por telefone e e-mail, o biólogo Camilo Pinto de Souza – coordenador do EIA-Rima e dono da Terra Nova – não atendeu ao pedido de entrevista.
Na semana passada, o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel publicou um decreto suspendendo por quinze dias qualquer atividade, “ainda que previamente autorizada, que envolva aglomeração de pessoas”, de forma a evitar a contaminação da população pelo coronavírus. Em função disso, o Inea publicou um comunicado, nesta segunda-feira pela manhã, cancelando a audiência pública agendada para dali a dois dias, quando ocorreria a discussão aberta do EIA-Rima – rito que antecede a decisão final do colegiado. É com base no que seria dito na audiência e no que será escrito no relatório do “juiz relator” (a Coordenadoria de Assuntos Ambientais do próprio Inea) que os quinze conselheiros vão decidir que destino caberá à floresta do Camboatá.
Só que horas depois, na tarde da mesma segunda-feira, o advogado Rogério Rocco, do ICMBio, publicou um texto em sua página no Facebook: “Atenção! Urgente! Foi dado um golpe na democracia e na saúde pública pelo governo Witzel. Recebi nesse instante um alerta de fontes de dentro do Inea de que chegaram ordens do gabinete do governador para manter a audiência pública que seria realizada na quarta-feira para analisar o projeto do novo autódromo na floresta do Camboatá.” O comunicado anterior do Inea, que mencionava o decreto de Witzel para justificar o cancelamento, foi então retirado do ar e substituído por um novo, corona-free, em que o evento era reconfirmado.
Avisado da chicana jurídica, o Ministério Público do Estado enviou um ofício ao Inea, redigido por quatro promotores, recomendando que a audiência voltasse a ser cancelada – e assim permanecesse – enquanto perdurassem “as medidas temporárias de prevenção ao contágio” do coronavírus. No início da noite, o Inea suspendeu mais uma vez o evento, ressuscitando, no site, a antiga nota que citava o decreto estadual.
Num cenário ideal, a decisão do Inea deveria ser guiada pelos critérios ambientais que dão nome ao instituto. No cenário real, ela será feita por um colegiado subordinado ao governador Wilson Witzel, que já defendeu publicamente a construção do autódromo. Talvez por isso o engenheiro Cláudio Dutra tenha pedido exoneração da presidência do Inea, em outubro do ano passado, sendo substituído pelo administrador Carlos Henrique Vaz, que não tinha experiência na área ambiental. “Preferi sair a aceitar certas condições”, disse Dutra, à época, em uma entrevista ao site (o)eco. Em dezembro, quem saiu foi a bióloga Ana Lúcia Santoro, exonerada por Witzel da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Para o seu lugar, o governador escalou o deputado federal Altineu Côrtes, do Partido Liberal, que assim como Vaz, jamais havia ocupado um cargo na área ambiental. Em fevereiro, a nova dupla recebeu integrantes do Movimento Pró Autódromo na Secretaria de Meio Ambiente. “Estamos fazendo um grande esforço, junto às nossas equipes técnicas, para destravar os licenciamentos ambientais do estado”, declarou o agora secretário de Meio Ambiente Altineu Côrtes, antes de se deixar fotografar segurando uma camiseta com a logomarca do Movimento Pró Autódromo.