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    Nina Hoss, em Barbara. Foto: Divulgação

colunistas

Descobertas e decepções

Dois filmes excelentes, um alemão, outro americano, revelam, por contraste, as deficiências de novos lançamentos do Brasil

Eduardo Escorel | 06 set 2023_08h00
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Visto pela primeira vez na plataforma de streaming MUBI, com dez anos de atraso, um filme alemão excepcional realça uma deficiência recorrente no cinema brasileiro, da qual não faltam exemplos, inclusive um com lançamento marcado para breve.

Em Barbara, de Christian Petzold, lançado em 2012, além da atuação magnífica de Nina Hoss, sobressai entre outras virtudes a qualidade do roteiro, escrito por Petzold com a colaboração de Harun Farocki. A narrativa que transcorre na Alemanha Oriental a partir de 1980 é conduzida mais pela ação dos personagens em silêncio e menos pelos diálogos.

Entre nós, pelo contrário, o que se diz costuma dominar os filmes de modo absoluto, como acontece em Pérola, de Murilo Benício, prestes a ser lançado, realizado a partir do roteiro de Adriana Falcão, Marcelo Saback e Jô Abdu, baseado na peça de Mauro Rasi. Um falatório ininterrupto conduz a história e explica tudo, seguindo tradição que tem origem no rádio e veio a ser consagrada nas novelas televisivas. É com esse palavrório sem fim que a maravilhosa atriz Drica Moraes é obrigada a lidar, sendo induzida a errar o tom.

Petzold, premiado em 2012 com o Urso de Prata atribuído ao Melhor Diretor no 62º Festival de Berlim, conduz Barbara com maestria no que foi chamado de “um outro tipo de filme de resistência”: “Em parte, isso ocorre porque diz respeito a uma dissidente que, com raiva discreta e obstinada, rechaça o totalitarismo, mas também porque Petzold recusa clichês cinematográficos com a mesma veemência com que rejeita a ortodoxia política”, escreveu Manohla Dargis, crítica de cinema do New York Times. “Ao mesmo tempo específico em termos regionais e estudioso de todo o cinema, ele [Petzold] recorre a inúmeras tradições e as torna suas. Seu amor precoce por Hitchcock, por exemplo, é evidente nas pontadas de desconforto que se insinuam em seu trabalho, criando um clima frio de paranoia e um medo frequentemente justificado de ameaça iminente.”

Para Filipe Furtado, por sua vez, o que faz de Barbara uma grande obra é “…a consciência que o filme exibe de que, a despeito de todos os problemas, há pessoas que vivem e seguirão vivendo ali [na Alemanha Oriental]. Barbara não é um filme que pergunta ‘como vivem aqui?’, mas um que afirma ‘vive-se aqui’, o que é algo completamente diferente (…). Barbara se encerra também numa troca de olhares [sem uma palavra] que se reconhecem – um momento tão privado entre duas pessoas quanto possível, e também o único gesto político de resistência aceitável para sair do estado policial, ontem e hoje.”

 

Não faltam decepções no cinema brasileiro atual. Outra, causada por Elis e Tom, Só Tinha de Ser Com Você, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, foi realçada pela visão de All the Beauty and the Bloodshed (2022). O documentário de Laura Poitras sobre a fotógrafa e ativista Nan Goldin recebeu o Leão de Ouro, concedido ao Melhor Filme no 79º Festival de Veneza, em setembro do ano passado.

 

Nan Goldin, no documentário All the Beauty and the Bloodshed. Foto: Divulgação

 

Poitras lança mão de vasto e heterogêneo material que ela articula na montagem com habilidade para conjugar passado e presente no relato de vida feito por Goldin na primeira pessoa. Reúne desde material de arquivo e obras da fotógrafa feitas com projeções de slides até imagens da campanha para responsabilizar a família Sackler, donos da Purdue Pharma que fabrica o opioide OxyContin, por terem viciado usuários e causado milhares de mortes por overdose nos Estados Unidos.

Nesse caso, a comparação com Elis e Tom… – a ser lançado, por coincidência, no mesmo dia que Pérola – só reforça como o filme brasileiro desperdiçou uma preciosa filmagem feita em Los Angeles, em 1974, da discórdia inicial entre a cantora e o músico – que, passado esse momento, protagonizaram um encontro musical sublime. Ao entremear esse valioso material de arquivo com uma série de entrevistas gravadas décadas depois, os diretores Oliveira e Azulay banalizam o que o documentário tem de melhor, aproximando-o, por um lado, de uma reportagem jornalística feita para a televisão e distanciando-o, por outro, da visão mais profunda que o cinema poderia proporcionar.

Não se trata aqui de comparar filmes tão diferentes entre si, mas apenas de indicar a reação que Barbara e All the Beauty and the Bloodshed causaram quando assisti aos outros dois. O empenho político do filme alemão e do americano realçaram a frivolidade de Pérola e a oportunidade desperdiçada de Elis e Tom.

O que atenua decepções como essas são raros filmes como A Invenção do Outro, de Bruno Jorge, comentado aqui há duas semanas. Reproduzo a seguir o final de uma entrevista de Jorge publicada no jornal O Estado de Minas em novembro de 2022:

À parte os hiatos, o cinema brasileiro se consolidou nas últimas décadas como arte estatal, e o que chamamos de cinema independente é intrinsecamente dependente de forças e burocracias dos governos. O cinema instrumento se torna ponto de partida, e os filmes são concebidos e formalizados a partir da estrutura moral desses Estados, acarretando em consequências políticas e estéticas em comum entre as obras. Um dos fatos evidentes dessa uniformidade é a enorme hegemonia do “cinema de identidade e oposição”, reproduzindo na arte os limites de compreensão da vida política. Essa identidade é o maior recurso ao “uno”. Os países ocidentais, por razões históricas, sempre deram privilégio à necessidade de buscar essa unidade: de um lado o “uno” e do outro o que não pertence a esse “uno”. Já a América Latina tem uma trajetória radicalmente distinta, da mais profunda miscigenação. E é justamente por essa mistura incessante e múltipla de uma variedade em movimento que nunca poderemos ser esse “um”.

[…]

Somos o “entre”. E quando enxergamos “unos” monolíticos, petrificados em suas identidades e, ainda, relacionados pela via única da oposição, acabamos por importar diagnóstico e formas de como devemos refletir os nossos próprios objetos da cultura. Isso não é pouca coisa. O ciclo se fecha quando justificamos que o cinema brasileiro “vai bem” ao citar a mesma aceitação internacional. Por fim, jamais podemos negligenciar no resultado dos filmes de hoje (e em nada no mundo atual) a força do sistema narcísico de recompensas proveniente do pertencimento ao grupo e amplificado pelas redes sociais. São poucas as obras que conseguem sobreviver a essas injeções de dopamina. Sobra como alento o fato de que, com uma provável e renovada ajuda do Estado para os próximos anos, há boas chances de aumentar a fatia do audiovisual brasileiro no mercado global da ética.

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