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Desensinando a pescar

Diante do descontrole do garimpo na Amazônia, governo recomenda que indígenas evitem comer peixe por causa da contaminação pelo mercúrio

Marta Salomon | 14 jul 2021_09h57
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Amazônia, a nova Minamata?, pergunta o título do novo documentário de Jorge Bodanzky, que teve um trecho exibido em evento paralelo do Festival de Cannes, no início do mês. Bodanzky acompanhou o trabalho de equipes de pesquisadores em aldeias mundurukus, no Pará, em 2019, e busca um paralelo entre o que acontece na Amazônia e o desastre na cidade japonesa de Minamata, onde a contaminação por mercúrio matou milhares de pessoas nos anos 1950. Uma dessas pesquisas com os mundurukus também deu origem a um processo no Ministério Público Federal, no qual o Ministério da Saúde recomenda que indígenas passem por reeducação alimentar para evitar peixes contaminados pelo metal usado na produção de ouro.

A recomendação do Ministério da Saúde aparece em ofício encaminhado em abril ao Ministério Público Federal em Santarém, em resposta ao alto nível de contaminação dos indígenas por mercúrio. Das 109 amostras de sangue analisadas no estudo comandado pelo neurologista Erik Jennings, apenas uma registrava nível de mercúrio considerado normal. “Os profissionais dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas possuem papel de suma relevância para orientar a população quanto aos riscos e propor medidas de reeducação alimentar para reduzir a ingesta de mercúrio”, diz o documento a que a piauí teve acesso. Em suas mais de 120 páginas, o documento reconhece a dificuldade de pôr a medida em prática, já que os peixes são a base da alimentação do povo Munduruku.

Procurado, o Ministério da Saúde informou que treinou quarenta profissionais de saúde em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz para atuarem na orientação alimentar aos indígenas na região do Tapajós, “no sentido de restringir o consumo, especialmente de peixes carnívoros, e consumir apenas água tratada”. Em nota à piauí, o ministério informou que busca “estratégias e parcerias para mitigar problemas gerados pela atividade garimpeira”.

A Bacia do Tapajós é a maior produtora de ouro de garimpo no Brasil. Nos registros da Agência Nacional de Mineração (ANM), o município paraense de Itaituba aparece em segundo lugar no ranking de arrecadação do tributo cobrado sobre a produção de ouro no país. No ano passado, o garimpo movimentou oficialmente 3,5 bilhões de reais no município, segundo o órgão regulador. Em 2021, na metade do ano, as operações de garimpo já somavam mais de 2,2 bilhões de reais. Itaituba só perde para Paracatu (MG), base de operação da mineradora canadense Kinross. Nas imagens do filme de Bodanzky, o rio Tapajós e seus afluentes aparecem como rios de lama, produto de toneladas de sedimentos que o garimpo despeja nas águas, junto com metais pesados, depois de derrubar árvores e cavar o solo da floresta com retroescavadeiras. Em 2021, pedidos de autorização para garimpo em território indigena bateram recorde – todos feitos por não indígenas.

 

“Como é que as pessoas vão viver sem seu principal alimento? Não tem como”, reagiu a líder indígena Alessandra Korap Munduruku, depois de ler o documento. Alessandra recebeu no ano passado o prêmio Robert F. Kennedy de direitos humanos, pela defesa da cultura indígena. Ela acha importante levar a informação sobre a contaminação dos peixes às comunidades, mas não vê chance de convencer um “parente” a devolver ao rio os tucunarés pescados e passar fome. Também teriam de ser evitados pacus, jaraquis, traíras, aracus, matrinchãs e caratingas, entre os peixes mais consumidos e que se alimentam de outros peixes. “Tem é de parar de dizer que o garimpo traz recursos para a Amazônia, parar de dizer que vai legalizar o garimpo nas terras indígenas: o garimpo traz doença para a floresta e as pessoas”, resumiu.

“Não é uma solução factível”, endossa o procurador da República Gustavo Kenner Alcântara, do Ministério Público Federal em Santarém. Ele considera “gravíssimo” que o Estado, por meio do Ministério da Saúde, avalie mudar a dieta de populações indígenas para conter o impacto ambiental e social do garimpo, o que seria equivalente a reconhecer a morte dos rios, na sua opinião. O Ministério Público defende que a produção de ouro do garimpo seja suspensa até que haja controle dos danos: “Temos de escolher se vai acabar o garimpo ou o rio e a forma de vida das pessoas.”

A interrupção imediata do garimpo já havia sido recomendada em outubro de 2020 por cientistas, a partir dos resultados preliminares de pesquisa sobre os impactos do mercúrio coordenada pelo médico Paulo Basta, da Fiocruz. A pesquisa detectou a presença de mercúrio em todas as amostras de cabelo recolhidas em aldeias mundurukus. Com base na análise de tecidos dos peixes da região, os pesquisadores calcularam que a ingestão média diária de mercúrio é de 4 a 18 vezes maior que os limites seguros indicados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos e acima dos limites tolerados pelas Nações Unidas. O relatório da pesquisa registra problemas nos testes de desenvolvimento cognitivo de 15,8% das crianças da etnia, no que seria a face mais perversa da doença.

Na mesma época em que os pesquisadores recomendaram a interrupção do garimpo, o Ministério de Minas e Energia concluía um Grupo de Trabalho destinado a estimular a atividade garimpeira. Sobre o mercúrio, o documento produzido pelo GT Garimpo apenas sugere ações “de conscientização ambiental”, para promover o uso “controlado, racional e tecnicamente adequado do mercúrio”. O texto lembra que o Brasil é signatário da Convenção de Minamata, tratado internacional que limita o uso do mercúrio, mas não fala em banir o mercúrio da atividade. O garimpo do ouro é considerado o principal obstáculo à implementação da convenção no país.

Coordenadora do inventário nacional das emissões e liberações de mercúrio no Brasil, Zuleica Castilhos diz que tecnologias alternativas ao uso de mercúrio atendem a uma escala de mineração incompatível com a atividade garimpeira na Amazônia. Até mesmo pelo aumento do preço do mercúrio, os garimpeiros tentam recuperar um volume maior do produto usado para separar o ouro, em vez de lançá-lo no meio ambiente. Mas, para isso, precisam investir em equipamentos e aprender a usá-los, de forma a controlar as emissões. O inventário que Castilhos coordenou, publicado em 2018 pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), estima a emissão em um ano de até 161 toneladas de mercúrio na produção legalizada e ilegal de ouro. 

A Funai alega que não está entre suas competências cuidar da saúde indígena, mas defendeu que a regulamentação do garimpo em terras indígenas “trará transparência e lisura” ao processo. “Cabe esclarecer que, desde 1988, existe previsão constitucional para a pesquisa e a lavra das riquezas em terras indígenas, o que depende de regulamentação na forma da lei. Trata-se, portanto, de uma determinação constitucional e que necessitaria ser regulamentada, eis que retrata a vontade do constituinte”, afirmou a Funai em resposta às recomendações do Ministério da Saúde para lidar com a contaminação dos mundurukus.

 

Trecho do documento enviado pelo Ministério da Saúde ao MPF e assinado pela coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena Rio Tapajós, Cleidiane Ribeiro, aponta a “falta de envolvimento” da Funai como um dos obstáculos enfrentados no trabalho de orientar os mundurukus sobre os efeitos nocivos do mercúrio. O primeiro obstáculo listado, porém, foi a intimidação dos profissionais de saúde “por parte de indígenas que praticam ou apoiam a atividade garimpeira”. A coordenadora também menciona a dificuldade de os indígenas acreditarem nos efeitos da contaminação por mercúrio. “Essa visão negacionista acaba se estendendo aos impactos sociais e ambientais gerados pela atividade garimpeira, o que se deve principalmente ao fato de esta ter se tornado a principal fonte de renda da população indígena em algumas localidades.”

A contaminação por mercúrio na Amazônia parece menos aguda do que a registrada em Minamata, no final dos anos 1950, avalia o neurologista Jennings, diante da evolução aparentemente sutil da doença, que pode atacar vários órgãos e sobretudo o sistema nervoso. O lançamento de mercúrio na Baía de Minamata foi a causa do desastre no Japão e também demorou anos até a morte e o diagnóstico das vítimas.

“Os efeitos da contaminação podem demorar anos para aparecer, mas são irreversíveis”, reforça Jorge Bodanzky. O cineasta pretende voltar à Amazônia ainda neste ano, depois de terminar a parte do documentário rodada atualmente no Japão, para apresentar o resultado do trabalho aos indígenas, embora não veja os mundurukus como únicas vítimas da contaminação por mercúrio. O problema não está restrito aos rios da Bacia do Tapajós nem aos indígenas, argumenta. “São atingidas populações ribeirinhas e até populações urbanas de Santarém que consomem peixes, é um problema generalizado na Amazônia.”

O lançamento do documentário está previsto para este ano – 47 anos depois de Iracema – uma Transa Amazônica, dirigido por Bodanzky e Orlando Senna. Feito sob encomenda para uma televisão alemã, Iracema difundiu as primeiras imagens de queimadas na Amazônia, em plena ditadura militar. Foi censurado no país e premiado no exterior.

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